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O autor faz um desenho crítico da sociedade no século XXI e o papel do direito penal como instrumento de contenção social. Sustenta que, ao curso do século XXI, continua-se sujeito às guerras, aos conflitos políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e tecnológicos, marcados por respostas mais violentas ou não, dependendo da instabilidade global. Gize-se que é importante o combate constante à violação normativa e a preservação dos direitos da pessoa humana
1. Ao reconhecer a dignidade da pessoa humana supõe-se evitar no campo do possível à imposição de pena e para isso é necessário que o Estado ofereça possibilidades mais amplas para que os injustos não sejam cometidos e, ao mesmo tempo, que as penas fiquem limitadas ao estritamente necessário. A função da pena predominará em casos-limite, sobre os fins da pena e, nestes casos só servirá como princípio garantidor limitativo passivo. É um grave erro crer que o denominado discurso das garantias é um luxo ao qual se pode renunciar em tempos de crise menos ainda considerar que se trata de uma tese conservadora. Pelo contrário, deve-se prevenir contra reformas promovidas por burocratas ou políticos de plantão, que se alimentam da emergência de turno apresentando-as, como pós-modernas. Seria absurdo, negar neste momento a existência, de um avanço autoritário mundial em matéria penal, que coloca em crise os estados de Direito, mas não se pode cair em pessimismos, deixando-se levar pelo espírito do tempo e aceitá-lo, pois isto, é permitir que o direito penal se deteriore, degradando-se pelo discurso legitimante, e reduza seu conteúdo pensante. A resistência político-penal à admissão ao conceito de inimigo no Estado de direito é frontal, ainda que as limitações do poder jurídico não permitam eliminá-lo. Não se propõe introduzir e ampliar o uso do conceito de inimigo no direito penal, senão admiti-lo em compartimento estanque, perfeitamente delimitado, para que não se estenda e contamine todo o Direito Penal.
2. Procura-se ainda, no arborescer do século XXI, não pensar num preço tão caro, tendo em conta que na prática, opera em uma medida mais extensa, o que importaria em muitos casos até uma redução em seu âmbito. O que se discute é a diminuição dos direitos dos cidadãos para individualizar o dos inimigos. Conclui Zaffaroni, que se legitimarmos essa lesão aos direitos de todos os cidadãos, se conceder ao poder a faculdade de estabelecer até que medida será necessário limitar os direitos, que está em suas próprias mãos, o Estado de Direito terá sido abolido. Não se ignora os efeitos negativos da pena, reconhece-se como um mal que só pode ser imposto na medida em que se torna necessário para garantir a tutela de um bem maior. Se a violência, risco e ameaça se converte em fenômenos centrais da percepção social, a ideia de prevenção perde seu endereço e se consolida como instrumento efetivo e altamente intervencionista da política frente à violência do delito. A sociedade ameaçada se vê colocada contra a parede e na sua percepção não pode dar ao luxo de um direito penal entendido como proteção da liberdade necessitando de uma “Carta Magna do Cidadão”, como arsenal de luta e efetiva contra o delito e a repressão da violência. O desviante se converte tendenciosamente no inimigo e o direito penal, no direito penal do inimigo.
3. A prevenção geral positiva não fundamenta o direito penal nem a pena isoladamente, mas de maneira limitada pelo princípio da culpabilidade e acompanhada da missão de proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais. A prevenção geral positiva limitadora tende a uma maior racionalidade diante das tradicionais funções da pena, a relativização do efeito intimidante e a evitação de irreais otimismos em relação ao efeito ressocializante da execução da pena. Representa um progresso em relação ao limite da atuação do Estado (proteção dos bens jurídicos e a limitação do princípio da culpabilidade). Não se pode esquecer a função preventiva especial positiva no momento da execução da pena. A missão do direito penal que baliza a função da pena no Estado Democrático de Direito é a proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais. Diante do princípio do pluralismo político emerge o princípio de tolerância determinado que os indivíduos suportem as diferenças não lesivas, pautadas no princípio da intolerabilidade, no cotidiano da vida social, e que serve de suporte para os princípios da ofensividade e da lesividade. O direito penal tolerante cria espaços livres de direito abrigando condutas toleradas na linha de Luigi Ferrajoli ao referir-se a maiores e menores vínculos garantistas estruturais quanto a quantidade e a qualidade das proibições e das penas estabelecidas, há dois extremos: o direito penal mínimo e o direito penal máximo.
4. O direito penal mínimo, “condicionado e limitado ao máximo corresponde não só ao grau máximo de tutela da liberdade dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”. Diz Ferrajoli que um direito penal é racional e concreto à medida que suas intervenções são previsíveis, isto é, motivadas por argumentos cognitivos. Já o direito penal máximo incondicionado e ilimitado, se caracteriza por sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e penas, constituindo-se como um sistema de poder não controlável racionalmente pela ausência de parâmetros certos e racionais. O direito penal é ferramenta própria de proteção de bens jurídicos relevantes e a aparição de novas realidades propiciam a existência de novos bens jurídico-penais, bem como a deterioração de realidades abundantes, tornando-se bens escassos. Não se pode esquecer as realidades como a proteção do meio ambiente, do consumidor, a evolução sociocultural, a proteção ao patrimônio artístico (bens coletivos e interesses difusos), abrindo-se espaço para uma expansão do Direito Penal. Aduza-se o papel do crime organizado desde a violação da ordem econômica aos capitais procedentes do narcotráfico. Vive-se como “sociedade de risco” (Risikogessellschaft). A institucionalização da segurança, bem analisada por Silva Sánchez, em A expansão do Direito Penal, mostra uma sociedade de enorme complexidade na qual a interação individual alcançou níveis desconhecidos como a configuração do risco de origem humana como fenômeno social estrutural.
5. O progresso tecnológico e a competitividade geral a necessidade de intervenção diante dos riscos do cidadão na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações, além do papel de consumidor, usuário e beneficiário de serviços públicos. Vê-se o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada transnacionais que configuram riscos de alta relevância para o Estado e os indivíduos. Aduza-se o fenômeno da criminalidade de massa, diante da população de rua, com os bolsões de miséria e marginalidade a alimentar a onda dos tradicionais movimentos de lei e ordem.
6. Há quatro décadas a maioria é consciente de que o trato com o “inimigo” não é realizado pela construção indiscriminada de unidade de segurança máxima (prisionalização), “regimes disciplinares diferenciados”, “enfrentamentos” com mortes diárias em largas escalas nas comunidades carentes, com a hiper dramatização da criminalidade, a fim de justificar o espetáculo midiático do encarceramento e das violações de sigilopela febre da quebra da privacidade ilimitada, pelo uso desapropriado das algemas, sem cuidar da saúde e da escolaridade e criar oportunidade de emprego a todos e aos egressos para evitar a reincidência. Diante da revolta social e da intolerabilidade dos ataques aos bens jurídicos na atual conjuntura, agita-se através da mídia o tema do “Direito Penal do inimigo”, a terceira via do direito penal, como ferramenta emergencial em situação dita de “guerrilha urbana”, buscando através do quadro fático de casos excepcionalidade do conflito urbano, permitir, através do retrocesso da roda da história, renascer restrições secularmente superadas aos princípios de legalidade e seus corolários, legitimando a intervenção estatal que fratura o modelo garantista. O tripé é “garantista”, pois se situa na absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia no contexto emergencial. A expansão do direito penal deve ser observada no liminar do século XXI com grandes cautelas diante das sociedades de risco, pois as reações devem ser ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não ofereçam perigo de contaminação do direito penal da ‘normalidade’. Lamentavelmente, os estados vêm de forma indiscriminada admitindo a perenne emergência, que tende a “crescer e estabilizar-se, no século XXI”. Não se pode imaginar como direito penal “eficiente” reduzir ao mínimo os pressupostos da punibilidade mediante a ampla utilização dos injustos de perigo abstrato, facilitar os pressupostos da imputação ou agravar os meios de coação. Acrescenta-se a intenção a curto prazo de resolver o déficit com um arsenal de agravações (more of the same) num âmbito crescente de efeitos puramente simbólicos do direito penal, que servem para o crédito político do legislador ter respondido com a celeridade os medos e as grandes perturbações sociais, atendendo os imediatos anseios midiáticos com os severos meios do direito penal. Kant dá à dignidade humana valor absoluto e concede respeito da humanidade a todas as pessoas, o que exclui o direito penal do inimigo.
7. À discussão da questão penitenciária antecede o discurso das raízes da sociedade criminógena. Daí, a relevância da resenha revisional das causas e concausas da criminalidade no meio social (família, escola, trabalho, cultura e estrutura político-social do Estado contemporâneo). Robert Alexy, na Theoris der Grundrechte, lembra que “um programa minimalista objetiva garantir ao indivíduo o domínio de um espaço mínimo vital e de status social, ao que se denomina de direitos mínimos e pequenos direitos sociais”. A dignidade humana é marcada pela cultura de uma sociedade, respeitá-la e protegê-la é dever do Estado. Não se pode esquecer que, na macrossociedade do direito mínimo existencial à moradia, à educação escolar, à formação profissional e à assistência médica, para começar a pensar em controlar o conflito social e reduzir na microssociedade as vulnerabilidades da crise da prisão.
8. Para o enfrentamento da superlotação, da ociosidade e da promiscuidade no sistema carcerário, há um longo caminho a trilhar nas próximas décadas do século XXI. Não é apenas questão de gestão prisional. Observa-se a falta de planejamento que se constitui em uma atividade permanente e racional, sistematizando um processo de tomada de decisões, na solução da questão penitenciária. Ressalte-se que em todo o planejamento é possível identificar a coexistência de ações políticas (determinação das finalidades de esforço) e técnicas (consecução dos fins). Diante da má administração do sistema carcerário, o Brasil corre o risco de sanções e exposição negativa na ordem internacional, pois a Corte Internacional de Direitos Humanos determinou, em duas medidas provisórias, que fossem adotadas providências para garantir a vida e a integridade física das pessoas presas. A visão do Ministério Público sobre o sistema prisional brasileiro (2016) é de que “a inação com relação à criação de novas vagas no sistema prisional configurou a prática de improbidade administrativa”. O Conselho Nacional de Justiça constatou que alguns entes federativos devolveram verbas recebidas do DEPEN para a construção e reforma de estabelecimentos penais, o que é absolutamente incompatível que os Governadores, diante do “inferno do cárcere”, tenham o desplante de recusar verbas federais para a melhoria das condições de vida e de respeito à dignidade da pessoa humana. O modelo cultural brasileiro é o do esquecimento no cárcere, violados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena em um Estado Democrático de Direito. As raízes do superencarceramento estão nas causas e concausas da criminalidade, que se encontram na própria macrossociedade.
9. Como conclusão, repele-se a existência de dois direitos penais, um tradicional, para os cidadãos, e outro excepcional, para as não-pessoas. Registre-se a contradição frontal entre o finalismo e o “direito penal do inimigo”, pois aquele concebe o homem como pessoa responsável, ao passo que este, nega a personalidade de determinadas pessoas. Não se pode fazer reverter a roda da história buscando em seu museu ferramentas superadas. O século XXI se caracterizará pela diminuição da incidência da pena privativa de liberdade substituída por outras medidas penais, que fogem ao modelo tradicional, educadoras e menos aflitivas, respeitados os direitos e deveres das pessoas humanas. A construção de prisões cederá à construção de escolas, reservando-se aquelas tão-só aos completamente inadaptáveis com as regras de conveniência da macrossociedade. A criação de patronatos e da assistência efetiva aos egressos. A humanização das prisões e o respeito à pessoa humana do encarcerado e, com isso a redução das rebeliões. O estado conquistando o espaço público. As prisões modernas terão menor capacidade, menos guardas, maior disciplina, plena assistência ao encarcerado, diante do processo tecnológico do século XXI. Não se pode esquecer ao analisar as características do sistema contemporâneo a presença dos efeitos de um duplo contraditório de criminalização e descriminalização que teve início já no século XIX, anotando-se como principais fatores explicativos: a) a necessidade sócio-política de satisfazer através de novos meios de repressão os conflitos nascidos do desenvolvimento tecnológico, econômico e social; b) a aparição de novos valores coletivos a proteger; c) o desenvolvimento do Estado técnico-burocrático e a entrada de plúrimas regulamentações. Daí, a tendência à infração das normas penais. A crise da prisão é a crise da sociedade: inexiste sociedade sem desvios de conduta e delitos. O direito penal, como instrumento de controle social, jamais desaparecerá. Ao curso do século XXI, continua-se sujeito às guerras, aos conflitos políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e tecnológicos, marcados por respostas mais violentas ou não, dependendo da instabilidade global. Gize-se que é importante o combate constante à violação normativa e a preservação dos direitos da pessoa humana.
Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Parabens Prof. Álvaro Mayrink da Costa.
Oferecendo sempre comentários realistas e compreensivos, com tinturas humanistas, na compreensão do comportamento individual e singular dos indivíduos mergulhados na sociedade humana. As regras devem cuidar da coletiividade, sem desconhecer a singularidade de seus componentes individuais.
Caro amigo. Você é um jurista que nos honra com sua amizade.
Abraço do amigo
Talvane