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As medidas de segurança e o Estado Democrático - Parte 1

Atualizado: 24 de jun. de 2021


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O autor elabora um estudo histórico, comparativo e crítico sobre as “Medidas de Segurança e o Estado Democrático”, objetivando projetar luz sobre o obscurantismo do tratamento dos doentes mentais do sistema penal brasileiro

I – Evolução histórica. Direito comparado.


1. A questão do Estado de Direito e das medidas de segurança passa diante de um plano lógico e de um plano histórico. O primeiro trata de estabelecer quais as relações conceituais entre “Estado de Direito” e “medidas de segurança”; ao passo que, o segundo, das relações concretas entre o ordenamento jurídico e os princípios constitucionais que formam os fundamentos garantistas e a disciplina normativa. Desde a Antiguidade as medidas cautelares eram conhecidas e aplicadas aos menores e aos doentes mentais. Os estudiosos do tema divergem quanto às origens mais remotas das medidas de segurança, ora apontando o Código de Manu, ora as Pandectas, citando que o imperador romano Marco Aurélio ao tomar ciência de um parricídio praticado por um doente mental, diante da perda da capacidade penal, determinou que fosse colocado em custódia para evitar a reprodução de outros atos e garantindo a ordem social. No Direito romano os doentes mentais eram considerados penalmente irresponsáveis; na Idade Média respondiam pelos seus atos, sendo-lhes atribuídas conotações demoníacas. Recorde-se que no Direito romano os menores impúberes ficavam sujeitos à verberatio, que consistia em uma medida de admoestação. Na época clássica os furiosus eram equiparados aos infans, e aplicadas medidas ad cautelam e jus securitatem proximorum. Sustentava o jurisconsulto Pompônio que o ato praticado por uma pessoa louca deveria ficar impune (impune est admittendun, quod per furorem alicuius accidit). Esta situação começa a alterar-se a partir do século XVI, e no século XVIII fala-se já da necessidade de tratamento dos doentes mentais, que, como doentes, não eram responsáveis pelos seus atos, e, no processo evolutivo, nem sempre foram insuscetíveis de culpa.


2. Na Idade Média, puniam-se criminalmente animais e, em certos casos, até objetos, razão pela qual não se pode fazer qualquer paralelo com o Direito Penal da atualidade. A ideia de medidas de segurança começou a germinar na Idade Média. No século XVI, notadamente na Constitutio Criminalis Carolina encontram-se as primeiras manifestações (Peinliche Gerichtsordnung), prevendo um internamento de segurança (Sicherungsverwahrung) por tempo indeterminado. No panorama do século XVIII, embora o Direito canônico afirmasse que os doentes mentais eram incapazes de delinquir, era tétrico o quadro, pois se não eram mortos eram encarcerados nas piores condições físicas e sociais, nos asilos de loucos. O Ospiìzio de San Michele (prisão-hospital), fundado pelo Papa Clemente XI, no ano de 1703, e o Reformatório de Elmira, pelo New York Act (1877), como pioneiro, formam a exceção. É de lembrar-se que os manicômios tiveram sua origem na Inglaterra (Criminal Lunatics Act, de 1800), após o Rei Jorge III ter sido vitimado por um atentado praticado por um doente mental, o qual foi internado por garantia pública por tempo indeterminado. Assinale-se o movimento liberal na Inglaterra com a instituição de manicômios criminais, em virtude da edição do Criminal Lunatic Asylum Act de 1860 e da edição do Trial of Lunact Act de 1863 e nesta direção o Inebriate Act de 1898 e o Children Act de 1908. Nos estabelecimentos penais americanos, desde 1844, praticava-se o isolamento dos doentes mentais. Mais tarde, poucos estados permitiram a transferência de doentes mentais infratores para os manicômios e, em 1859, New York abriu o primeiro hospital para criminal insane. Loke, Montesquieu e Voltaire proclamam no século XVIII os princípios do respeito à pessoa humana, e o livro do Marquês de Beccaria tem o poder de uma dedução rigorosa com a ruptura com um passado omisso, no qual o pensamento é perseguido e punível, o processo fundado no anônimo, o segredo e a confissão logrados pela tortura. É a ruptura com o Direito Penal para o qual inexistia diferença entre o delito e o pecado e no qual a pena não está regulada por uma ideia objetiva e moderada de retribuição, mas sim pela vingança através dos fins de expiação mediante o sofrimento físico.


3. No século XIX, visava-se a substituir a pena privativa de liberdade, diante da constatação de sua pouca eficácia frente ao crescimento da criminalidade, procurando uma resposta penal efetiva e completa de defesa social. As ideias positivistas preventivas contribuíram para a visão da execução das medidas de segurança como instrumento de inoculação e tratamento, diante de portadores de anomalias mentais considerados perigosos ao convívio social. Era necessário enfrentar o fracasso da pena em razão da necessidade imperativa da defesa social. Logo, surgem duas estratégias imediatistas: a) aumento das penas privativas de liberdade para infratores habituais; b) penas acessórias para reincidentes. Neste quadro, a pena privativa de liberdade continua como resposta penal retributiva e desponta uma nova ferramenta de enfrentamento do conflito com finalidade específica preventiva: a pena não teria mais como finalidade somente punir o autor do delito, mas procurar evitar a realização de novos injustos penais. A concepção unitária defendia que ambas as sanções, pena e medidas de segurança, formariam um só instrumento estatal através de uma pena de segurança, na dicção de Mezger, não se exigindo duas espécies de sanções na proposta unitária por meio de uma unificação das sanções no mesmo código. De outro lado, a concepção dualista defende que as penas e as medidas de segurança possuíam uma característica diferenciada, negando às medidas de segurança a configuração de sanção e descortinando nas penas motivos e finalidades diversas das medidas de segurança. Estas possuem características que diferenciavam da pena privativa de liberdade, ambas possuindo características autônomas e próprias. As diferenças, assinaladas no sistema dualista, são negadas por vetores da Escola Positiva Italiana, ao sustentar que possam existir diferenças secundárias, mas não há uma substancial (utilitarismo). Surge uma visão unitária, retributiva-preventiva, para atender os anseios de segurança social. Situava-se na doutrina do início do século XX a distinção entre a pena privativa de liberdade e as medidas de segurança como dois vetores paralelos e justapostos, mas não contraditórios, porque ao Direito Penal se reservava a repressão; ao passo que, destinava-se às medidas de segurança, a prevenção (que à época não seria propriamente penal, mas administrativa).


4. Eduardo Reale Ferrari, em Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito, deslumbra uma sanção preventiva de defesa social. Os anseios de substitutivos sancionatórios eficazes para a tranquilidade social faz surgir os novos contornos das medidas de segurança. Com Karl Stooss (1894) e Von Liszt surgem as medidas de segurança, codificadas penalmente como estratégia a suprir a ausência de responsabilidade penal por inexistência de culpabilidade pessoal. Pode-se afirmar que a orientação da União Internacional do Direito Penal, fundada em 1888 por Von Liszt, Prins e Van Hamel, trouxe reais dividendos para aparar os dissensos históricos que inspiraram Karl Stooss e vieram à luz entre 1884 e 1899 sob a denominação correta de Strafgesetzgebung der Gegenwart (“legislação penal da atualidade”). Registre-se que Stooss foi o sistematizador e Von Liszt, com sua teoria da pena-fim, o idealizador, das medidas de segurança. Assim, este com sua pena-defesa social advoga um tipo único de sanção abarcando fins preventivos e retributivos, ao passo que, aquele, defende a substituição da pena pela medida de segurança, para a proteção social e o tratamento do infrator perigoso. Quando, em 1894, Stooss compôs a Parte Geral do projeto suíço, transformado no Código Penal suíço de 1937, colocou junto à pena de natureza retributiva outro instrumento legal para o fundamento do injusto, denominado Sichernden Massanahmen (medida de segurança), destacando na sua natureza jurídica três diferenças básicas: a) a pena se estabelece e se impõe ao autor culpável em razão da realização do delito, ao passo que as medidas de segurança são impostas diante do dano ou perigo do autor, cujo caráter está relacionado com o fato punível; b) a pena é um meio de produzir sofrimento ao autor culpável, ao passo que as medidas de segurança são um instrumento assecuratório que vai acompanhado de uma privação da liberdade ou de uma intromissão nos direitos de uma pessoa sem o objetivo de causar-lhe sofrimento; c) a pena é determinada de acordo com a importância do bem jurídico lesionado, a gravidade do dano e a culpabilidade do autor, nos termos legais, e fixado o tempo de duração, ao passo que as medidas de segurança são determinadas na lei e com a sua finalidade, mas a sua duração é estabelecida em termos gerais, de tempo indeterminado, cessando quando lograda a ressocialização, emenda ou inocuidade. Completando, observa que as medidas de segurança não se impõem por uma ação determinada, mas pelo estado de uma pessoa.


5. Em uma fotografia do direito comparado à época, vê-se que as medidas de segurança aparecem na legislação germânica no anteprojeto do Código Penal de 1909, inspirados nos postulados da Escola de Política Criminal, objetivando proteger a sociedade e ao mesmo tempo o autor do injusto penal. Na busca histórica poderia apontar os Projetos de 1913 e 1919, nos quais tiveram a denominação medidas de correção e segurança (Massregeln der Besserung und Sichering), que não tiveram sucesso, e a realidade colocava como imperativo demonstrar a necessidade de luta contra a delinqüência nas suas formas mais perigosas, daí ser promulgada a Lei de 24 de novembro de 1933 contra os infratores habituais e perigosos; e diante de medida de correção e segurança onde se incluía a castração como um sistema protetor do povo contra o perigo da delinquência sexual. Com a introdução do Tätertyp, o perfil do violador da norma se descreve como um sujeito perigoso cujos atos típicos são índices do seu estado (doença mental), diferenciando-se as penas privativas de liberdade das medidas de segurança na compatibilidade do perigo futuro e da indeterminação temporal de duração. Caminhava-se para a subjetividade do Direito defendida por Mezger e Bockelmann; contudo, a imposição de uma medida de segurança tinha como pressuposto a prática de um injusto penal, sendo, portanto, todas as medidas pós-delitivas.


6. A medida de segurança de castração foi abolida na Alemanha, pela lei promulgada em 30 de janeiro de 1946. A sexta Lei da Reforma, de 26 de janeiro de 1998, do Código Penal alemão estabelece seis espécies de medidas de segurança: a) internamento em residência psiquiátrica; b) internamento em estabelecimento de desintoxicação; c) internamento em estabelecimento de segurança; d) vigilância orientadora; e) retirada da posição de conduzir veículos; f) proibição de exercer um ofício. No que interessa ao estudo do direito comparado, a regra do § 62 (princípio da proporcionalidade) traduz que se poderá, com o significado dos atos cometidos ou esperados pelo autor, precisar o grau de perigo que parta dele. A internação em residência psiquiátrica, tanto no estado de incapacidade como no de culpabilidade atenuada, decorrerá da apreciação conjunta do autor e sua ação, devendo-se esperar, como consequência de seu estado, atos ilegais, e que por isso seja perigoso para a sociedade. A nova codificação passou a tratar com especial atenção a aplicação das medidas de segurança para drogados em estabelecimento de segurança (“quando alguém for condenado por um delito premeditado a uma pena temporal de, ao menos, dois anos, o tribunal disporá junto à pena de um internamento em um estabelecimento de segurança em determinadas situações”).


7. Na Áustria, as medidas de segurança foram reguladas pela Lei de 3 de junho de 1932, embora desde a Lei de 24 de maio de 1885 fossem internados os vagabundos e mendigos. Na Bélgica, em abril de 1930, o Parlamento aprovou a Lei de defesa social, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1931, seguindo as linhas gerais do Projeto de 1926, objetivando a readaptação e educação social dos infratores em estado perigoso, mas não a sua eliminação. Aliás, desde a Lei de 27 de novembro de 1891, dava-se o internamento de mendigos em casas de refúgio e em depósitos de mendigos. Na Dinamarca, o Projeto do Código Penal de 1923 admitia a substituição da pena privativa de liberdade por medidas de segurança para certas categorias de infratores normais em aparência, mas insensíveis à influência da pena, a julgar por sua conduta. O Código Penal dinamarquês de 15 de abril de 1930, que entrou em vigor em 1933, admite as casas de custódia e as casas de trabalho.


8. Quanto à França, em virtude do fenômeno da reincidência, deu-se a promulgação da Lei de 27 de maio de 1885, que visava a eliminar o reincidente perigoso, transferindo-o para o território colonial de forma perpétua e irrevogável. A Lei de 6 de julho de 1942 estabeleceu o internamento dos renegados em território metropolitano com uma duração mínima de três anos, daí podendo outorgar-se a liberdade condicional. Com a Lei de 3 de junho de 1938, os declarados penalmente irresponsáveis passaram a ser internados em asilos de alienados. Contudo, a primeira legislação francesa sobre medidas de segurança surgiu em 15 de maio de 1934 e classificava-as: a) privativas de liberdade; b) restritivas de liberdade; c) de ordem patrimonial. As medidas privativas de liberdade consistiam no internamento em sanatório, relegação (constituía-se na internação em um estabelecimento de trabalho sobre regime de readaptação social) e colocação em depósito de mendigos. É de notar, que na França as medidas de segurança que formavam majoritariamente medidas de neutralização, são contemporaneamente em sua maior parte medidas de tratamento e assistência. O Centro Francês de Defesa Social preparou em 1955 um projeto relativo aos doentes mentais infratores adotando o sistema misto. A medida preconizada era denominada “detenção de defesa social”, com característica “médico-repressiva”.


9. Na Inglaterra, o Prevent of Crime Act promulgado em 1908 distingue a internação em um instituto Borstal mediante tratamento educativo-correcional a jovens e a preventive detention aplicável depois da execução da pena, que deveria durar no mínimo cinco e no máximo dez anos, destinada aos reincidentes mais perigosos. Contudo, o projeto de Criminal Justice Bill reduzia o regime correcional de quatro a dois anos de duração, para condenados de 21 a 30 anos de idade, mas não se chegou a transformar em lei. Só pelo Criminal Justice Act de 1948 é que se estabeleceu uma distinção entre a educação correcional e a detenção preventiva. Os doentes mentais (quit but insane) declarados pelos tribunais seriam internados com kings pleasure lunatics em manicômio criminal.


10. Na Itália, surge em 1921, com o Projeto preliminar do Código Penal, baseado em princípios positivistas, a substituição da impunidade pela periculosidade como pressuposto da justiça penal, sob a genérica denominação de sanções que abrigavam as medidas aplicáveis aos imputáveis e aos inimputáveis. Mussolini definiu em seu programa a pena como meio de defesa social com função intimidativa e correcional, indicando a necessidade de promover meios preventivos e terapêuticos para combater a delinquência. Surgem os postulados dualistas por Rocco e é promulgado o Código Penal em 19 de outubro de 1930. Estas medidas foram frutos da necessidade da conservação do Estado. Com a queda do regime fascista, surge a Comissão de Reforma Penal, Biagio Petrocelli, pelo decreto de 2 de janeiro de 1945, sendo acordada a manutenção da dualidade das penas e das medidas de segurança, reflexos institucionais dos fins repressivos e preventivos do ordenamento. O projeto apresentado em 1949 estruturava a periculosidade criminal e as medidas administrativas de segurança. Cogita-se da acumulação sucessiva e não alternativa, em que primeiro se executa integralmente a pena privativa de liberdade (retributiva) e após, a medida de segurança (preventiva), no caso dos denominados delinquentes habituais. São sanções sucessivas pelo mesmo fato violando o princípio do ne bis in idem. Tal projeto, sem inovar, procurava um melhoramento do Código dualista, em direção científica superada. A legislação peninsular, quando trata da aplicabilidade das medidas de segurança, diz que só podem ser aplicadas em pessoa socialmente perigosa, inimputáveis ou não puníveis, bem como aquelas que diante da lesividade do bem jurídico exista a probabilidade do cometimento de novos atos previstos na lei como crime (“periculosità sociale” e “periculosità presunta”). Assim, os indicadores de individualização da pena são os mesmos indicadores de avaliação judicial de aplicação das medidas de segurança.


II – A questão da doença mental.


1. A doença mental, pressuposto biológico da inimputabilidade, engloba todas as alterações mórbidas da saúde mental independentemente da causa. No estudo do transtorno psíquico patológico, que compreendem transtornos psíquicos debitados a causas corporais-orgânicas, incluem-se as psicoses endógenas ou congênitas (esquizofrenia, paranoia, psicose maníaco-depressiva) ou exógenas (demência senil, paralisia geral progressiva, epilepsia), como também as neuroses e os transtornos psicossomáticos, sendo que estes, como formas de reação psíquico-criminal determinadas por conflitos internos ou intensas pressões motivas do exterior, dificilmente atuam sem sentido da realidade, salvo nos períodos de breve crise (histeria). A antiga questão dos intervalos de lucidez perde o destaque legislativo em razão de ser uma manifestação complexa interrompida do estado patológico. A disritmia cerebral não constitui excludente.


2. Nos denominados transtornos psíquicos patológicos (psicoses exógenas) faz-se referência às enfermidades oriundas de transtornos exógenos (psicoses traumáticas por lesões cerebrais; psicoses por infecção, como a paralisia progressiva; as doenças convulsivas orgânico-cerebrais, como a epilepsia; casos de desintegração da personalidade com patamar orgânico-cerebral, como a arteriosclerose cerebral e a atrofia cerebral; a meningite cerebral, os tumores cerebrais e as afecções metabólicas do cérebro). A privação indeterminada é a privação perpétua, o que representa a violação da dignidade humana e a lesão frontal ao princípio da proporcionalidade, sendo fundamental a submissão ao princípio da legalidade. Talvane de Moraes, em “Medidas de Segurança e Tratamento Psiquiátrico”, defende a expressão clássica “doença mental” substituída em texto legal por “transtorno”, que é ampla e vaga.


3. O desenvolvimento mental incompleto abriga os menores de 18 anos, bem como os surdos-mudos não educados e os indígenas (sentido impróprio), que ainda não se tenham adaptado ao convívio de nosso grupo social. O indígena é imputável, desde que seja aculturado e possua desenvolvimento mental, que lhe permita compreender a ilicitude de seus atos. O fato de o indígena se encontrar em processo de integração não o torna inimputável. No caso do não aldeado, que vive em grande centro urbano, só lhe é conferida a atenuante, isto é, a fixação da pena no mínimo legal e o seu cumprimento no regime semiaberto. O Projeto de Reforma (2012) estatui que se aplique as regras do erro sobre a ilicitude ao indígena, quando este o pratica um injusto penal agindo de comum acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo. O magistrado deverá levar em consideração, para esse fim, o comprovado no laudo de exame antropométrico. No parecer Vital do Rêgo (2014), “Deverão ser respitados os métodos aos quais os povos indígenas recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros, desde que compatíveis com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos”. A pena de prisão será cumprida na unidade mais próxima da habitação da população indígena ou local de funcionamento do órgão federal de assistência. Conforme a gravidade do fato, a culpabilidade e as sanções impostas pela respectiva comunidade indígena, o magistrado pode deixar de aplicar a pena ou reduzi-la até 2/3 terços. No desenvolvimento mental retardado situam-se os oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais), que apresentam anomalias no processo de desenvolvimento mental e déficit intelectual. Roxin conclui que o melhor paradigma é a capacidade de compreensão e de inibição.


4. O transtorno profundo da consciência abarca deficiências de capacidade de controle que não possuem causa patológica ou psicologicamente anômala (estados hipnóticos e estados passionais graves). Os transtornos psíquicos patológicos não devem excluir a capacidade de culpabilidade de qualquer conduta (a mesma pessoa pode ser inimputável em determinado momento e não sê-lo em relação a outros fatos). A inimputabilidade é avaliada através de perícia médico-legal que será realizada sempre que existir dúvida quanto à saúde mental do imputado, não ficando o julgador adstrito às conclusões do laudo de exame de sanidade mental, mas deve sempre se valer de nova avaliação pericial, pois o magistrado não é psiquiatra. Na Reforma de 1984, preferiu-se não definir a imputabilidade, conceituando-a através de critério biopsicológico-normativo. Não é suficiente o estado patológico, que é mera presunção de imputabilidade. O primeiro pressuposto é a imputabilidade penal, a sanidade mental do autor do fato punível; e, o segundo, a maturidade. A expressão correta doença mental é abrangente das enfermidades que vulneram as funções intelectivas e volitivas. Os tribunais reconhecem a inimputabilidade originária de doença mental, nos casos de senilidade, epilepsia, esquizofrenia e embriaguez patológica. Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. O nosso legislador não adotou o modelo peninsular que se refere à capacità di intendere e divolere, mas parcialmente o suíço, visto que não aduziu ou d’une grave altération de la conscience. A ausência absoluta da capacidade de querer e entender retira a capacidade penal do autor do fato punível. Os clássicos e os neoclássicos partiram da ideia do livre-arbítrio, estimando que a responsabilidade penal estivesse fundada sobre a responsabilidade moral; ao passo que os positivistas, não adeptos do livre-arbítrio, declararam que a responsabilidade penal é uma responsabilidade social, uma responsabilidade legal.


5. Evolui-se, após, para a adoção de uma atitude de neutralidade, colocando de lado a questão do livre-arbítrio. As legislações antigas são mais influenciadas pelos neoclássicos, subordinando a responsabilidade do delito à condição de que a ação seja livre. Já os modernos subordinam os fatos à consciência e à vontade. Se o autor do fato punível for mentalmente são e desenvolvido, e possuir capacidade para avaliar o caráter ilícito do fato cometido e determinar-se de acordo com esse entendimento, possuirá capacidade psíquica de culpabilidade. Com efeito, o momento de tal entendimento é o da prática do fato, isto é, na linguagem normativa, “ao tempo da ação ou omissão” (conduta). O inimputável por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado é o sujeito ativo do delito que, em razão de tal quadro de ausência de capacidade psíquica de culpabilidade, é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento no momento da conduta. Como é também pressuposto da culpabilidade, a inimputabilidade retira a reprovação do atuar desvalorado. Sendo o réu impropriamente absolvido pela inimputabilidade, não há que se indagar para todos os efeitos da circunstância genérica pertinente à reincidência. Não se pode perder de vista que a sentença é condenatória (absolvição imprópria). Pondera em nível normativo que ao inimputável aplica-se a medida de segurança.


6. O Código Penal estabelece que o reconhecimento da inimputabilidade conduza à absolvição por ausência de culpabilidade, sendo imposta, diante da periculosidade presumida, a medida de segurança detentiva de internação obrigatória em “hospital de custódia” (sustenta-se a retirada dos hospitais psiquiátricos do sistema prisional, transferindo para o sistema de saúde) e tratamento psiquiátrico, se o tipo penal objetivamente adequado (violação normativa) for sancionado com pena de reclusão, salvo se presente causa de justificação. Juarez Cirino dos Santos, no Direito Penal (2014), sustenta que o inimputável não pode atuar sobre o abrigo do erro de proibição ou em situações de exculpação, por incapacidade intelectual “para entender o caráter do fato” sob o cobertor da não exigibilidade de conduta diversa. Se, ao contrário, a sanção privativa de liberdade for de detenção, o magistrado submeterá o inimputável a tratamento ambulatorial e, em qualquer fase, poderá determinar a internação (o laudo de exame de sanidade mental é que deverá indicar a espécie de medida de segurança no caso concreto), se tal providência for imperativa para fins curativos e não repressivos. Mesmo que o fato seja apenado com reclusão, sendo desnecessária a internação, deve o magistrado admitir a indicação médica do regime ambulatorial. Na questão da pena de reclusão ou de detenção e a internação e o tratamento ambulatorial deve-se observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Assim, vincula-se a periculosidade do agente.


7. Na hipótese dos doentes mentais inimputáveis há a realização do injusto penal (tipicidade-ilicitude) isentos de pena pela ausência da culpabilidade, isto é, inexistência do crime, na denominada “absolvição imprópria”. Igualmente, ocorre na hipótese de absolvição própria pela insuficiência de provas (autoria ou materialidade) e no caso da legitima defesa e do estado de necessidade. A decisão absolutória não exime a imposição da medida de segurança, ex vi do art. 386, parágrafo único, III, do CPP, e diante da Súmula 422 do STF: “A absolvição criminal não prejudica a medida de segurança quando couber, ainda que importe em privação de liberdade”. O magistrado, repita-se, no Estado de Direito, na luta contra o arbítrio, deve ponderar que ainda que a pena cominada seja de reclusão, impo-se avaliar a desnecessidade da internação, concedendo o tratamento ambulatorial progressivo em obediência aos princípios da adequação, razoabilidade e proporcionalidade. Afastando-se sempre, diante do fato bagatelar. É de se registrar a demora injustificável do processo para a imposição de medida de internação e o estado atual do paciente (STJ, REsp 912.668/SP, 6ª T., rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18.3.2014). Há laudos periciais que informam objetivamente a desnecessidade da internação em respeito aos princípios da individualização, razoabilidade e proporcionalidade. O simples tratamento psiquiátrico ambulatorial (medicamentoso) é o necessário e, talvez, suficiente nas condições pessoais do paciente. A maior pressão para a internação vem da própria família que não deseja arcar com o ônus social (preconceito) e econômico do tratamento. Diante do caos do sistema penitenciário, o Superior Tribunal de Justiça tem possibilitado disponibilizar “estabelecimento adequado”. Para cumprir medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (outro modelo de hospital-presídio) o paciente não deverá aguardar a vaga em casas de custódia.


8. A Lei nº 10.216, de 16 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e abre um pálido caminho para superar o modelo hospitalcêntrico, causador da exclusão social do doente mental, não pôs termo à internação involuntária mesmo sem ordem judicial. Zaffaroni, na A Questão Criminal, escreve que “O resultado prático mais importante da antipsiquiatria foi a desmanicomialização, ou seja, a redução da institucionalização ao mínimo para evitar a deteriorização das pessoas”. O Projeto de Reforma (2012) se limita a doença mental o desenvolvimento mental incompleto, esquecendo-se do “ou retardado”. Já a Proposta de Alteração da Lei de Execução Penal (2013) dá um avanço à contemporaneidade desmanicomial ao extinguir os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico colocando-os sob a égide das secretarias estaduais de saúde. Há um avanço com a necessidade de autorização médica e a notificação compulsória do Ministério Público, nos casos em que o internamento ocorra contra a vontade do paciente. A declaração de incapacidade através da interdição civil objetiva a proteção do enfermo ou deficiente mental. A legislação penal, após a Reforma de 1984, faz aplicar a medida de segurança, diante do sistema vicariante, de internação em hospital de custódia e tratamento, ou em tratamento ambulatorial no caso de inimputabilidade, e dá opção ao magistrado de diminuir a pena ou de convertê-la por uma daquelas duas medidas de segurança, se o condenado necessitar de “especial tratamento curativo”, na hipótese de semi-imputabilidade.


9. A psicopatia é uma das entidades clínicas mais controvertidas devido à confusão existente entre aspectos conceituais e terminológicos. Nas últimas décadas, há uma evidência clínica para definir indivíduos que, a causa de seu caráter frio, manipulador e impulsivo, de sua agressividade e violação persistente das normas sociais, entram em conflito permanente com o entorno social. Aduz-se que na literatura do século XIX destaca-se uma variada terminologia em torno do conceito de psicopatia (sociopatia, personalidade dissocial ou transtorno antissocial da personalidade). Os principais sistemas contempor|âneos de classificação psiquiátrica utilizam as denominações transtorno dissocial e transtorno antissocial da personalidade. Rafael Torrubia Beltri/Àngel Cuquerella Fuentes, no “Psycopathy: a controversial clinical entity but a forensic psychiatry nesessity”, destacam que a psicopatia não pode ser considerada como um fator causal direto da violência. Sobre o tema, reporto-me ao artigo “Psicopatas. Mitos e Realidades”, no portal do Instituto Mayrink da Costa (execucaopenal.org).


10. O diploma legal prevê o direito de acesso ao melhor tratamento consentâneo com as suas necessidades, e que pode não ser a internação, sendo a recuperação pela reinserção à família o objetivo a ser alcançado. A expressão da legislação penal “por tempo indeterminado”, mesmo com o prazo mínimo de três anos, herança do positivismo de Garofalo, em Criminologia, com base no conceito de terribilidade, fere os princípios constitucionais de legalidade e igualdade. Há vedação constitucional da internação por prazo indeterminado (proibição da pena de caráter perpétuo), sendo uma forma de sanção penal, tem o limite igual ao das penas privativas de liberdade que é de 40 (quarenta) anos (art. 75 do CP). Hoje, a Súmula 527 do Superior Tribunal de Justiça dita: “O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado”. Quando se trata de senilidade, em que o paciente não tem condições de retorno ao convívio social deverá ser interditado pelo magistrado civil, não permanecendo no sistema prisional. Em resumo, na hipótese de conversão, o internado deverá cumprir o restante da pena privativa de liberdade imposta em medida de segurança pelo princípio da coisa julgada. Se findo o tempo, e o doente mental não tiver condições objetivas que permitam o progressivo reingresso social, exigindo-se a continuidade do tratamento, configura-se a hipótese na forma dos arts. 1.767 e 1.768 do Código Civil. Deve-se, por fim, em relação aos doentes mentais que cometeram injustos penais e possuem a presunção de periculosidade serem normativamente diferenciados daqueles que não os praticaram. Aliás, neste campo, a cessação de periculosidade não abarca os injustos bagatelares.


11. Não se pode deixar de mencionar neste tópico a desinternação progressiva e a progressão das medidas de segurança, diante do amparo constitucional da igualdade de todos perante a lei, e, analogicamente, da individualização de qualquer sanção-medida. As saídas terapêuticas resultam na oportunidade de o paciente se integrar fortalecendo sua relação família e sociedade. O regime de hospital-noite, ao paciente que permanece, diretamente, fora das dependências do hospital de custódia, pernoitando na instituição, com o efetivo controle e acompanhamento do tratamento, possibilita uma concreta análise individual no processo progressivo de inserção social. Busca-se quebrar os hábitos do hospitalismo, agravando a patologia, originando um estado de dependência contínua. O tratamento ambulatorial é uma autêntica medida alternativa, substitutiva ao aprisionamento deletério do enfermo ou deficiente mental. Pela Lei de Execução Penal, o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico destina-se aos inimputáveis e semi-imputáveis referidos no art. 26 e parágrafo único do Código Penal. Trata-se de um hospital-presídio que desenvolve dois objetivos: o tratamento e a custódia do internado. O estabelecimento deve apresentar características hospitalares específicas para atender ao seu objetivo primeiro e prioritário – o tratamento do doente mental.


12. No hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, também é internado o apenado que, no curso da execução da pena privativa de liberdade, vier a eclodir doença mental ou apresentar perturbação da saúde mental, por conversão da pena em medida de segurança. Na primeira hipótese, a execução é regida pelas normas pertinentes às medidas de segurança; ao passo que na segunda ocorrerá o fenômeno da detração pela computação do tempo de internamento na duração da pena privativa de liberdade que lhe fora imposta. Reitera-se que a medida de segurança não poderá ter prazo superior ao restante da pena de prisão substituída em respeito à coisa julgada. Se ao término da medida de segurança substitutiva o condenado por suas condições mentais não puder retornar ao convívio social, o juiz da execução o colocará à disposição do Juízo cível para as medidas de proteção adequadas ao caso concreto (interdição). Na hipótese da inexistência de estabelecimento adequado ou de falta de vagas, o internado deverá ser remetido para outro hospital, quer da rede pública ou particular.


13. Ressalta Nilo Batista, em “Apontamentos para a história da legislação penal brasileira”, que o Código Penal de 1940 previa, sob o regime de duplo binário, a aplicação da medida de segurança detentivas para os inimputáveis, diante da prática de injustos penais, periculosidade do autor ou tentativa inidônea com autor perigoso (art. 76 do CP). Os inimputáveis ou semi-imputáveis por doença mental eram presumidos perigosos. A caducidade da presunção ocorria quando a sentença fosse prolatada dois anos depois do fato, para os imputáveis, ou cinco anos para as demais hipóteses legais (art. 78, § 1º). Registra-se a influência do Código Rocco, a regra da aplicabilidade da lei vigente ao tempo da execução das medidas de segurança (art. 75) tinha como raiz o art. 200 do Código Penal italiano. Anote-se que na hipótese de erro de tipo permissivo (art. 17) havia a isenção de pena, que também se aplica às situações de inimputabilidade (art. 22), ao passo que a expressão “não há crime”, nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, que configura a excludente de ilicitude (art. 19). Em breve resumo, Alcântara Machado diz que o projeto teve como modelo o Código Rocco. Recorde-se que o esquema neokantiano predominou na doutrina penal (1920 a 1933), quando surge o nazismo (“culpabilidade pela conduta de vida do autor”). Os anos 40 foi dominado pelo debate entre o positivista italiano Felippo Grispigni e o neokantiano Edmund Mezger. Após a segunda guerra mundial (1945), Welzel faz surgir o finalismo, na tentativa da volta ao neokantismo para apostar no realismo. Nos tempos contemporâneos, há uma volta ao neokantismo com Roxin e Jakobs. Zaffaroni, em Dogmática Penal e Criminologia Cautelar, aborda a temática da atualidade pertinente ao “protesto social e o direito penal” e, conclui “Todas essas legislações que tentam resolver situações de violência e distúrbios por meio de tipologias, em suma, acabam sendo arbitrárias. Não se pode esquecer que se vive em uma sociedade estratificada, quem não tem poder é vulnerável ao poder punitivo. Zaffaroni, corretamente conclui em seu livro (2020), criticando com acerto em que se finge viver em uma sociedade absolutamente igualitária “esquecendo que o princípio da igualdade tem um inconveniente: a verdadeira diferença de poder econômico e de classe”.



 

Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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