Habemos Constituição!
- Álvaro Mayrink *
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A crise do cumprimento da pena privativa de liberdade, diante da gravidade da violação do bem jurídico, é uma exigência dos princípios da legalidade e da proporcionalidade ainda que numa sociedade desigual. Não se pode imaginar que o legislador crie leis inconstitucionais para abrigar poderosos processados e/ou condenados num estado democrático de direito
Álvaro Mayrink da Costa[1]
1. Claus Roxin (1931-2025), jurista alemão, professor emérito da Universidade de Munique, um dos mais brilhantes penalistas contemporâneos, que esteve por várias vezes no Brasil, defende os limites à faculdade de punir que devem ser deduzidos das finalidades do direito penal, que tem como objetivo garantir a convivência pacífica na sociedade. Gize-se que “a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas”. Conclui que o direito penal é desnecessário, quando se pode garantir a segurança social e a paz pública através do direito civil, administrativo ou outra medida punitiva extrajurídica.[2] Desde os inícios teóricos do direito penal nos fins do século XVIII, uma das questões mais relevantes foi a da pena, problema ligado ao caráter público do direito penal e que originou o denominado direito penal subjetivo. Por tal razão, se une a teoria da pena à concepção de Estado, pois não tem o mesmo significado a concepção da pena sob um Estado absoluto ou diante de um Estado democrático e as diversas formas evolutivas que teve em um Estado de Direito. Roxin defende uma teoria unitária ou unificadora dialética para a superação das críticas às teorias absolutas ou relativas da pena, fazendo distinguir cada uma das três fases essenciais (criminalização, aplicação e execução), observando que o Estado tem o dever de garantir a vida em comum de todos os cidadãos, destacando-se a natureza subsidiária do direito penal. É pacífico que, do ponto de vista jurídico, o direito penal constitui um sistema pelo qual se regula o injusto, como pressuposto, e a pena, como consequência, sendo a questão central, que se inicia e se esgota no fundamento e no fim da pena (efeitos relevantes macro e microssociais). As denominadas teorias da pena são pontos de vista que buscam explicar, legitimando ou justificando, a existência do direito penal. Há basicamente três doutrinas que procuram explicar a razão existencial das penas: a) as teorias absolutas (retribuição penal e jurídica); b) as relativas (prevenção geral, positiva e negativa; prevenção especial, positiva e negativa); e, c) de união ou ecléticas (aditiva e dialética). Tais denominadores, trazidos pela classificação de Anton Becker (1772-1843), não obstante o tempo, completados por conceitos de Bentham (1748-1832), de prevenção geral e especial e com a distinção atual elaborada por modernos penalistas, de prevenção geral negativa e prevenção geral positiva, são grupos de teorias numerosas e convivem em certos pontos fundamentais e se separam de forma profunda em outros. Nas (a) teorias absolutas, globalizam-se as ideias liberais,[3] individualistas e idealistas, impregnadas de uma forte ordem ética que chega quase ao divino. Sustenta que a pena não é um meio extrínseco, alheio à sua própria noção, mas mera resposta ao injusto penal, transpassando os limites da intimidade caracterizada: punitur, quia precatum est (punido porque pecou). É a retribuição do injusto no sentido religioso (expiação) ou jurídico (compensação) da culpabilidade, necessária para realizar a justiça ou restabelecer o Direito (mal justo contra o injusto). As teorias absolutas (retribuição, expiação ou justiça) defendem que a pena é unicamente castigo ao delinquente pelo injusto penal cometido e não persegue outra função (preventiva ou social) posterior.
2. Na doutrina, é tradicional explicar as teorias da justiça (com a expiação moral se libera o culpável de sua culpa alcançando sua dignidade pessoal) e da expiação (restabelecendo a ordem e alcançando a justiça) equiparando-as às absolutas ou retributivas. As teorias absolutas ou de retribuição foram estudadas inicialmente pelos filósofos Kant e Hegel e, modernamente, por Binding (1841-1920). Kant (1724-1804) em sua Metaphysuk der Sitten parte da distinção entre pena judicial (poena forensii) e pena natural (poena naturalis) e diz que se exige um digno castigo, pois a lei penal é um imperativo categórico, e só impondo-se a pena em sua concreta medida a justiça poderá ser alcançada. Seu pensamento resume-se em que a pena deverá ser: a) efetivamente imposta; b) justa ao injusto penal cometido. Em seu artigo “Sentido e Limites da Pena Estatal”, Roxin, ao abordar a chamada teoria da retribuição, diz que seu patamar é a culpabilidade do autor compensada através da imposição de um mal pessoal, buscando tão-só a realização da justiça (existe para que a justiça impere). Cita Kant ao formulá-la de modo expresso: “Mesmo que a sociedade civil com todos os membros decidisse dissolver-se, teria, antes, de ser executado o último assassino que estivesse no cárcere, para que cada um sofresse o que os seus atos merecem, e para que as culpas do sangue não recaíssem sobre o povo que não haja insistido no seu castigo.” Conclui Roxin, com três argumentos contrários: a) a teoria da retribuição deixa na obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e como profissão de fé é irracional e contestável, não sendo vinculante; b) fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado; c) revela não só uma debilidade teórica, mas também um perigo prático. Os fins da pena só têm relevância para a vida societária, anotando-se que as teorias absolutas pecam pela ausência de cientificidade, arrematando Roxin que deixam na obscuridade os pressupostos da punibilidade, uma vez que os seus fundamentos não estão comprovados.
3. Claus Roxin sustenta que as decisões valorativas político-criminais se introduzem no sistema do direito penal, de tal forma, que a clareza e a previsibilidade nada devam à versão formal-positivista de Von Liszt. A submissão ao direito e à adequação a fins político-criminais não podem contradizer-se. Lembra que o positivismo, como teoria jurídica, caracteriza-se por banir do direito as dimensões do social e do político. É a política criminal que se importa com os conteúdos sociais e os fins do direito penal, encontra-se, pois, fora da esfera de âmbito do jurídico. Em seu desenho descritivo, aponta que a teoria finalista da ação, ao voltar-se para as estruturas ônticas e para a realidade social, fez a aproximação da dogmática penal da realidade e desenvolveu a teoria da ação e do tipo a plasticidade de verdadeiras descrições dos acontecimentos. Conclui, que o finalismo, por via do seu método lógico-sistemático, criou um sistema que se diferencia da tripartição clássica positivo-causal, mas não há espaço autônomo a diretrizes político-criminais na dogmática. Dá relevância ao campo da metodologia jurídica: a) e ordem e clareza conceitual; b) prioridade à realidade; c) orientação político-criminais. Sobre as reflexões científicas e de consideração para a construção sistemática cita Johann von Goethe (1749-1832): “Antigos fundamentos se honram, mas não se pode abdicar do direito de, em algum lugar, começar tudo outra vez”. Roxin escrevia, em Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal (1973), que a sistemática do direito penal não estava esgotada em suas possibilidades, o que necessita é ser repensada, desde os seus fundamentos - estamos sempre no recomeço.[4]
4. Já no que tange à prevenção geral positiva limitadora, seus defensores expressam-se pelo limitar o poder punitivo do Estado. Para tal vertente, o direito penal atuaria como uma forma de controle social, caracterizado pela sua formalização. A pena deveria manter-se nos limites do direito penal do ato e da proporcionalidade e tão-só ser composta através de um procedimento presidido pelas garantias constitucionais. Para Roxin, na aplicação da pena está inscrita a ideia de prevenção geral (positiva ou negativa) e especial, pois intimidará o apenado diante da possibilidade de reincidir e manterá a macrossociedade mais segura durante o cumprimento da pena. Cita-se Winfried Hassemer: “através da pena estatal não só se realiza a luta contra o delito, como também se garante a juridicidade, a formalização do modo social de sancionar o delito”. Segundo o mencionado penalista, a prevenção geral positiva seria a reação estatal diante dos atos puníveis, protegendo, ao mesmo tempo, a consciência social da norma. A ressocialização e a retribuição seriam esses instrumentos de realização do fim geral da pena: prevenção geral positiva. Hassemer abandona uma prevenção geral intimidadora (prevenção geral negativa) e se inclina por uma prevenção geral ampla (prevenção geral positiva ou integradora) que só venha a perseguir a estabilidade da consciência do Direito, buscando converter o direito penal em um dos controles sociais. Jakobs sustenta a prevenção especial positiva ou integradora, com um caráter absoluto (reafirmação da consciência do direito) que não se diferencia do retribucionismo, pois a pena supõe o exercício na confiança na norma, na fidelidade ao Direito e na aceitação das consequências.
5. Concluindo, a teoria da retribuição deve ser observada tão-somente em relação ao princípio da proporcionalidade da pena diante da culpabilidade do autor do injusto. O critério de proporcionalidade entre o injusto e a pena, embora historicamente sempre tenha sido a justiça, passa a aproximar a retribuição da prevenção especial e geral. Nunca é demais reafirmar que, na aplicação feita pelo magistrado, a pena não pode ultrapassar os limites do justo (culpabilidade e proporcionalidade). O fim da prevenção especial perdeu o seu conteúdo puramente naturalístico. A função de ameaça é per se intimidativa e se dirige erga omnes aos destinatários da norma. Em tema de ressocialização, discute-se a teoria do direito penal voltado para as consequências: (a) deveria questionar não só a proteção aos bens jurídicos, mas também voltar-se à tutela dos cidadãos predispostos à sua violação. Salienta Hassemer que o direito penal voltado às consequências deveria constituir-se em um direito penal da recuperação e do tratamento, um verdadeiro direito penal de ressocialização. É óbvio que o fim da pena em ultima ratio é a reintegração do infrator à macrossocidade, estando a pena privativa de liberdade ligada viceralmente à execução penal. Portanto, a reinserção com sucesso para evitar a reincidência depende do binômio Estado-cidadão, depois de um correto processo de execução penal. Há que se exorcizar o estilo de vida para que o apenado fique adequado aos modelos normativos da macrossociedade, sob pena de prostrar o ideário da “ressocialização” (inserção social).
6. A ideia abolicionista surgiu na Holanda com destaque da proposta de Louk Hulsman (1923-2009), em Penas Perdidas.[5] Alessandro Baratta (1933-2002) sustentou que a sociedade deve estar estruturada segundo as divisões de classe para poder garantir as necessidades reais dos direitos humanos, ao que Luigi Ferrajoli (1940) aduz que só por via de uma política criminal alternativa crítica ao sistema, deslegitimado e negando eficácia de instrumento punitivo estatal poder-se-ia observar a improcedibilidade da abolição da prisão, diante da utilidade e necessidade da paz e tranquilidade social. Os sonhos abolicionistas procuram abolir as prisões e o direito penal, substituindo-os por intervenções comunitárias e uma justiça social popular menos desigual e mais justa, onde o direito penal ao prestigiar a classe social dominante e mais elevada é seletivo e reforça a desigualdade. Imaginam a abolição do direito penal, através da desconsideração e despenalização, extinguindo-se os estabelecimentos penais e adotando-se as garantias iluministas. Lembra-se a indagação de Francesco Carnelutti (1879-1965), em sua Teoría General del Reato (1933), “no sé si algún día la humanidad llegará a la perfección que le permita abolir la pena”. O campo de atuação do direito penal se adequa ao quadro da estabilidade das sociedades contemporâneas.
7. Tobias Barreto de Meneses (1839-1889)[6] foi um filósofo, poeta, crítico e jurista brasileiro e fervoroso integrante da Escola do Recife, um movimento filosófico de grande força calcado no monismo e evolucionismo europeu. Foi o fundador do condoreirismo brasileiro. Repetindo Tobias Barreto, “o conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político”. O delinquente é definido como o inimigo interno, enquanto soldado é o inimigo externo. Antes de Carl Schmitt (1888-1985), em El concepto de lo político (1985), Tobias Barreto observava, em Direito, menores e loucos (1926), que “quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não procurou, o fundamento jurídico da guerra”. Defendeu a questão do direito de punir, que não seria filosófica, nem jurídica, e sim política e, disserta: “o que é verdade no direito em geral acentua-se com maior peso quando o direito de punir, cujos processus histórico tem sido mais rápido e mais cheio de transformações trazidas ainda hoje, na fase, que recordam de suas origens bárbaras e traços que recordam a sua velha mãe – a necessidade brutal e intransigente.”
8. Günther Jakobs (1937), filósofo e professor emérito de direito penal e Filosofia do Direito da Universidade de Bonn, destaca que a pena deve ser necessária para a manutenção da ordem social, pois, sem tal necessidade, seria um mal inútil. Sustenta, em resumo, que a pena é útil para a consecução de seus fins sociais se não perde a sua funcionalidade. A pena representaria a reafirmação do ordenamento jurídico e não as finalidades úteis da norma. Para tal segmento, a teoria da prevenção geral positiva não é relativa ou utilitarista, mas uma releitura da teoria absoluta hegeliana, punindo-se para reafirmar o conceito de justiça. De forma simbólica, o fim da pena seria o restabelecimento da ordem macrossocial. No modelo de Roxin há adesão à prevenção geral positiva limitadora e não à prevenção geral integradora, que é relativa, ficando a prevenção limitada pela ideia de subsidiariedade, uma função dentre as demais funções, excluída a prevenção geral, ao passo que Jakobs legitima o ordenamento jurídico e as expectativas sociais numa perspectiva puramente normativa.
9. No campo da modernidade, fala-se em um direito penal funcional para a edição de uma política criminal em contraponto com a dogmática abstrata. Hoje, nas bases mínimas, não podem deixar de constar as garantias processuais do Estado de Direito e um correto processo de execução penal desmistificando o ódio ao autor do injusto penal, buscando a possibilidade de futura inserção do egresso, produto da marginalização macrossocial ativada pela microssociedade, à macrossociedade (ainda que utópico). Sublinhe-se, por último, que parte da doutrina vislumbrou na prevenção geral positiva um retorno às concepções puramente retributivas, seguindo estruturalmente a postura kantiana. As propostas buscam uma estabilização social da norma e a confiança na mesma. Tal postura não adota as propostas iniciais retribucionistas, o limite da culpabilidade desaparece, pune-se o rebelar-se contra a norma ou a lesão a um bem jurídico, a qual pode conter qualquer conteúdo de valor. Roxin fala em prevenção geral positiva desde postulados garantistas, ao reconhecer a finalidade da pena como prevenção geral positiva, na busca da paz pública e na reafirmação das regras de convivência, sem perder sua função integradora, que se desenvolve com a prevenção especial, com a culpabilidade como limite da pena. Não se podem limitar as finalidades da pena a um único objetivo. Todas as ideias, estudos e teorias levam à conclusão de que são três os fundamentos do direito de punir: a) a defesa social; b) o ideal de reforma do infrator; c) a intimidação geral e especial. A pena tem o caráter aflitivo em razão de privar o apenado do efetivo exercício de seus direitos e bens fundamentais e torna-se retributiva na proporção em que, na sua qualidade e quantidade, teoricamente representa o desvalor da lesão ao bem jurídico praticado pelo autor do ato punível. Aí, constitui-se em um mal (resposta estatal) que deverá ser suportado pela opção feita pelo autor diante de obrar reprovável perante o conjunto normativo. É um instrumento hábil utilizado pelo Estado diante da intolerabilidade comportamental para garantir a paz social. A pena se legitimaria por seus fins privativos e tutelares e se justificaria por sua necessidade, sendo seu fundamento observado pelos endereços ético-social, utilitário, político e sociocriminológico. Contemporaneamente, desaparece o caráter utópico da ressocialização que através do tratamento objetivava a recuperação absoluta do apenado. Efetivamente, constitui-se em uma etapa romântica do penitenciarismo, partindo da própria imprecisão terminológica (penitência).
10. Indaga-se se o Estado teria o direito de enclausurar pessoas para manipulá-las, tendo como escopo torná-las dóceis à sua postura. É certo que a periculosidade (risco alto de conflito) se constitui na possibilidade da prática de ato futuro que venha a lesionar o ordenamento jurídico. A questão vaga em um mar de imprecisões e conduz à violação do princípio da reserva legal. As ideias nucleares de periculosidade e ressocialização foram objeto de reparos diante dos deveres de solidariedade impostos à macrossociedade, assumindo os riscos do desviante, como a periculosidade per se é degradante ao não referenciar a condição da pessoa humana, adotando uma postura negativa igual ao das coisas e animais. A pena, em sentido lato, é sempre um castigo que deve ser aplicado e suportado, observados os direitos e deveres do apenado, pela violação do ordenamento jurídico, na medida e proporcional à sua culpabilidade, diante do que o infrator livremente optou realizar, restabelecendo-se a paz jurídica. Argumenta-se que a Reforma de 1984 manteve como linhas estruturais básicas o binômio: punir e humanizar. A pena busca, mediante condicionamentos naturais e uma metodologia de informação, conscientizar o apenado a aceitar os valores da macrossociedade, separando os questionamentos que possam traduzir um impasse existencial entre o delinquente e os valores impostos e aceitos pela comunidade social dominante. A inserção social é a finalidade da pena em idealístico e tem merecido justas críticas dos penalistas. Contudo, é inegável que é o objetivo mais importante, desejo em relação ao fiel cumprimento da punição, e propiciar a integração do condenado ao convívio social seria a própria aspiração da macrossociedade. Submetido ao regime penal adequado, a punição representa um meio teórico de adequação do apenado aos valores sociais dominantes, isto é, cumprida a pena imposta, o condenado deveria estar em condições de viver em liberdade sem entrar em conflito com os valores jurídico-sociais. Infelizmente, a prisão é deletéria e não reeduca, razão pela qual a taxa de reincidência destrói a ideologia da recuperação.
11. Na verdade, nossas prisões estão desaparelhadas e pouco ou nada oferecem ao apenado para motivá-lo à mudança de atitude. Se os indivíduos colocam em risco a proteção da massa social, o objetivo-alvo primeiro da pena é procurar preservar a segurança pública – a defesa social (eficácia dissuasiva). Quando os antigos penalistas usavam o clichê de que a pena tinha a natureza retributiva e a finalidade preventiva, equivale a repetir que seus fins são retributivos e preventivos. A questão carece de significação política, pois a legislação penal é expressão de uma determinada organização política. A punição se converte em uma arma de terror que petrifica os homens e perpetua o gozo e os benefícios do poder. Os conceitos de retribuição e prevenção constituem uma verdadeira e perfeita antítese, sendo, pois, inconciliáveis. A maioria dos tribunais ainda sustenta que a verdadeira função da pena é a retribuição, senão a manutenção da ordem jurídica. Em outras palavras, a proteção da sociedade dominante contra todas as condutas que coloquem em risco a sua estrutura e existência, a preservação dos bens jurídicos, com o objetivo de defesa social. Tal defesa atua pela prevenção geral, isto é, através da chamada eficácia dissuasiva pertinente à ameaça da pena, que seria o fim especial da sanção. É uma velha postura simplista para mascarar os problemas de fundo pela fantasia das palavras. Diante da prevenção especial todo condenado (portador do desvio social que demanda correção) necessita ser adaptado, educado, inserido, socializado, isto é, reformado, para ser reinserido no modelo da macrossociedade.
12. O direito penal possibilita um conhecimento adequado que permite um trato inteligente, oportuno e profícuo da realidade. Santiago Mir Puig (1947-2020)[7] sustenta que num Estado social e democrático deve-se garantir a proteção real e efetiva a todos os cidadãos, prevenindo comportamentos lesivos para os bens jurídicos, estes entendidos como possibilidade de participação nos sistemas sociais fundamentais, à medida que os cidadãos os considerem graves (intoleráveis). Portanto, o direito penal orienta a função privativa dentro dos princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos de proporcionalidade e de culpabilidade. O modelo de prevenção especial foi abandonado, entre os anos 1960 e 1970, em razão da ineficácia da ressocialização e da realidade das prisões no mundo (depósito de presos). Aduza-se que a pena considerada como meio de prevenção especial encontra dificuldades sob diversos enfoques, e Francesco Carrara (1805-1888) já advertia, no século XIX, que os propósitos de punir, curar, reeducar e corrigir são absolutamente incompatíveis. O mito da ressocialização está findo (delinquentes do colarinho branco). A pena é um instituto jurídico em que a resposta penal deve ser proporcional ao juízo de reprovação do autor pela prática do ato punível. Assim, consideramos pena justa aquela oportuna e necessária em que o juiz penal mantiver na sua aplicação e execução a devida e racional proporcionalidade técnica em relação à natureza, à quantidade e ao desvalor do ato. A proporcionalidade da pena é o grau de reprovabilidade do obrar diante dos parâmetros normativos como exigência fundamental do sistema de justiça. A pena teoricamente não se constitui intrinsecamente em um mal, pois limita a esfera jurídica dos condenados à punição e como tal deve ser sentida e consequentemente suportada; porém sua essência executória está na possível reinserção futura do infrator ao meio social aberto por adquirir normas de cultura e se ajustar aos padrões sociais impostos. É quase pacífico que a justificação da pena tem seu endereço na necessidade da manutenção do controle social, objetivando a paz pública.
Quo vadis!
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).
[2] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal, trad. Luís Greco, Rio de Janeiro, Renovar, 2006.
[3] O liberalismo abarca o ocidente no século XIX, bem antes do advento das democracias contemporâneas, sendo que o direito ao voto veio a se expandir ao curso do século XX. Surgem os princípios liberais clássicos (direitos individuais, civis e políticos, secularismo e livre mercado). Os regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos acolhem-no. A democracia veio depois. O pioneirismo liberal instala-se em alguns governos através do consentimento de uma minoria que desfrutava de privilégio de plenos poderes jurídicos. O título de democracia liberal é uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para acomodar-se ao que se denominou de democracia de massas. Na esfera econômica passou a admitir as intervenções estatais, principalmente nos governos autoritários. A definição de liberalismo, como fenômeno histórico, oferece grande complexidade e dificuldades específicas. Sua história está diretamente ligada à história da democracia. Nenhum pensador liberal se opõe a que o Estado limite a liberdade natural ou o espaço de arbítrio de cada indivíduo. Há a preocupação de conciliar o máximo espaço de arbítrio individual com a coexistência dos arbítrios alheios, com fundamento no princípio da liberdade jurídica. De outro lado, limitar a liberdade natural, como um instrumento, o direito, quer seja expressão de um querer comum (Kant). O liberalismo no enfoque da interpretação filosófica reduz a liberdade individual, ao passo que o político pretende garantir as liberdades empíricas do indivíduo. Nicola Matteuccio, no Dizionario di Politica, conclui que o pensamento político-liberal contemporâneo tem a consciência de responder aos desafios do socialismo. Aponta-se, provavelmente, que John Stuart Mill (1806-1873) foi o primeiro teórico do liberalismo a ressaltar no contexto da condição liberal do Estado, algumas constâncias colocadas pelo socialismo pré-marxista europeu, no sentido de uma repartição justa da produção entre os membros da sociedade e a eliminação dos privilégios pelo nascimento e a substituição gradual do egoísmo do indivíduo. Mill foi o precursor da ideologia liberal socialista. Vê-se na teoria do delito a herança do positivismo, cunhada por Von Liszt, um dos maiores teóricos do Estado de Direito liberal. Roxin, em sua crítica, diz que “O positivismo, como teoria jurídica, caracterizou-se em banir da esfera do direito as dimensões do social e do político”. Completa: “A política criminal que se importa com os conteúdos sociais e os fins do Direito Penal, encontra-se fora do âmbito jurídico”. Roxin, em Política Criminal e Sistemas Jurídico-Penal, sustentava: “Atualmente, porém, a tarefa da lei não se esgota mais na função garantista”.
[4] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, trad. Luís Grecco, Rio de Janeiro, Renovar, 2000.
[5] HULSMAN, Louk/DE CELIS, Jacqueline B. Penas Perdidas. O Sistema Penal em Questão, Niterói, Luam, 1993.
[6] BARRETO, Tobias. “Fundamentos do Direito de Punir”, in Revista dos Tribunais, n. 727, ano 85, São Paulo, 1996.
[7] MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal del Siglo XXI, España, Consejo General del Poder Judicial, 2008.
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