O Direito é um sistema de disciplina social, fundado na natureza humana, que, estabelece nas suas relações uma proporção de reciprocidade nos poderes e nos deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais e evolutivas dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público
I – Considerações introdutórias
1. O Direito é um sistema de disciplina social, fundado na natureza humana, que, estabelece nas suas relações uma proporção de reciprocidade nos poderes e nos deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais e evolutivas dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público. O estado de direito e a justiça social, que se exculpe na consciência atuante de nosso tempo, deve estadear-se em novas e corajosas estruturas jurídicas, superando de vez uma situação paradoxal, na qual os organismos forenses, menos por defeito das pessoas do que por deficiência de estrutura, parecem existir mais para apreciar simples questões de forma do que para dar resposta adequada e pronta aos conflitos de interesses.
2. É certo que o Direito se apodera da pessoa humana antes de seu nascimento e o mantém sob sua proteção até depois de sua morte. Mas certo também é que, sempre e a todo instante, o considera como parte de uma comunhão, que é a sociedade, fora da qual a pessoa humana, civilmente, não poderia viver. A regra de direito se caracteriza por ser geral e abstrata, de uma parte, e a sanção, por outra, identifica-a, distinguindo-a das demais regras de disciplina social, visto que é uma regra de disciplina de interesses delimitando esferas de poder. Humberto Ávila, em Teoria dos Princípios, conclui que “As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente respectivas e com pretensão de decibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige avaliação da correspondência, sempre conectada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiomaticamente abrangentes”.
3. Dentro da multiplicidade dos fatores sociais, o Direito atua, em sua função essencial de norma, muito menos como interesse coativo do que propriamente como instrumento prudente e harmônico de uma ordem jurídica. Assim, constitui um sistema complexo de normas e preceitos de conduta social, segundo os critérios de justiça e equidade. All Ross, um realista moderado, no Sobre el Derecho y la Justicia, advoga que as decisões judiciais não constituem o direito, propõem critérios verificáveis de quando deverão integrar o sistema jurídico posto.
II – A norma penal e sua interpretação
1. A única fonte de criação, direta ou indireta, principal ou secundária, em seu sentido estrito, é a lei, que desempenha papel criador. Os destinatários primários são os cidadãos; e, os secundários, os juízes, quando houver conflito, sendo o Estado o titular da coação penal. A norma penal comporta alternativamente uma das três modalidades: a) evitar uma conduta, derivada de certa consequência, vetando a produção de tal consequência, sob a ameaça de uma pena, desinteressando-se das várias modalidades que a conduta possa ser produzida; b) se a lei penal diz que a consequência danosa ou perigosa que se pretende evitar não se pode produzir de uma só forma, ou se julga não poder evitar certa consequência, que só ocorre em determinada circunstância, a norma conterá descrição particularizada tanto do comportamento do agente quanto da consequência que se deve verificar para concretizar o elemento objetivo do tipo; c) a lei penal pode pretender evitar determinada conduta em vista de eventuais, múltiplas ou diversas consequências, mesmo não tendo em mira qualquer situação particular destas consequências. Em tal caso, a figura legal contém só a descrição da conduta, sem se referir a qualquer evento.
2. O conceito de fonte do Direito Penal possui distintas acepções: a) fonte substancial; b) fonte formal. A primeira refere-se à origem dos preceitos repressivos, ao passo que a segunda hipótese tem duplo significado: a) fonte de manifestação ou conhecimento do Direito Penal; b) fonte de produção do Direito Penal. No primeiro caso, é representado pela norma penal; e, no segundo caso, pelo Poder Legislativo. Sob a égide do Estado de Direito e do estabelecimento dos direitos e garantias individuais, só o direito escrito é reconhecido como fonte legítima do Direito Penal. Os caracteres da lei penal, do ponto de vista ontológico, como fonte de cognição, são: a) ser exclusiva: visto que só ela cria tipos e estabelece sanções; b) ser obrigatória: todos devem acatá-la; c) ser iniludível: visto que as leis só se revogam por outras leis; d) ser igualitária: igual para todos; e) ser constitucional; f) ser autônoma: não há comunicabilidade entre os preceitos. As fontes de conhecimento são a forma ou modo como se manifesta a vontade da autoridade que dita a norma jurídica, isto é, o instrumento através do qual se expressa essa vontade. Dentre as fontes de conhecimento, encontram-se as: a) imediatas ou primárias; b) mediatas ou secundárias. As primeiras são as que possuem vigência obrigatória per se, ao passo que as segundas são aquelas cuja vigência obrigatória deve ser a sua inserção na fonte imediata.
3. No Direito Penal, a única fonte imediata de conhecimento é a lei penal. A norma penal é sempre o resultado da interpretação integral e unitária da vontade do Direito em relação a uma conduta. O texto normativo só atinge a sua completude quando o sentido expressado for produzido, como nova forma de comunicação, pelo intérprete. São fontes mediatas os atos administrativos quando constituam pressupostos ou condições de aplicabilidade de determinadas normas de direito. O Direito Internacional não pode ser fonte direta, pois a norma internacional não pode ser executada diretamente ainda que se trate de uma delicta iuris gentium. São fontes indiretas quando se faz referência à noção de alguns pressupostos ou condição de aplicabilidade.
4. A única fonte de criação em sentido estrito do Direito Penal é a lei, diante de dois efeitos fundamentais: a) a configuração de tipos de injustos penais só pode ser realizada através da lei; b) não há possibilidade de punição por meio de uma pena que não esteja prevista como delito ou contravenção vigente anterior à realização da conduta. No contemporâneo Estado de Direito o princípio da legalidade é uma garantia de segurança jurídica e implícito reconhecimento da liberdade. Os Códigos Penais são obrigados a utilizar conceitos, elementos ou características, cujo conteúdo normativo não pode ser aclarado convenientemente, requerendo para tanto a realização de uma operação lógico-jurídica de integração. Devem-se mencionar quatro situações básicas: a) características descritivas do tipo; b) conceitos juridicamente indeterminados; c) leis penais em branco; d) lacunas jurídicas. Os conceitos e as características descritivas do tipo estão contidos em palavras que em linguagem comum possuem um significado semelhante ao que têm em linguagem jurídica, ainda que empregadas em sentido próprio. O magistrado fica vinculado à norma de forma restrita, vedada interpretação sui generis do conceito. Os Códigos Penais são normas reguladoras, legais e técnicas, e não dicionários de sinônimos. Os conceitos juridicamente indeterminados possuem conteúdo que não são cognoscíveis de imediato; só em casos concretos, quando aumenta a liberdade do magistrado ao aplicar a norma. É censurável a profusão destes conceitos que, por ausência de boa técnica legislativa, aumenta o arbítrio do aplicador da norma. O grupo de casos em que a lei remete a valorações extrajurídicas constitui os tipos que contêm conceitos espirituais.
5. O costume é a norma criada e imposta pelo uso social. É formado pela constante e uniforme repetição de certo modo de atuar diante de determinadas situações. A repetição gera a permissividade social e a consciência social da obrigatoriedade jurídica. Diante de novos valores constitucionais ou da transmissão dos costumes pode-se questionar tipificações existentes. Luís Roberto Barroso, no Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, salienta que “A Constituição tem impacto sobre a validade e interpretação das normas de direito penal, bem como a sua produção legislativa na matéria”. O costume pode ser fonte: a) criadora; b) derrogatória; c) integradora. Não pode, sob qualquer hipótese, revogar uma lei penal. É uma função subsidiária, pois uma norma penal não pode resultar do costume, diante do princípio da legalidade, bem como não possui força derrogatória ou ab-rogatória. Há expressões contidas nos tipos penais em que o costume é preponderante como instrumento de interpretação (honra, decoro, reputação). Pode desempenhar uma função integradora da norma penal, reenviando, explícita ou tacitamente, a setores em que opera como fonte. Para que alguém responda por ato comissivo por omissão, é necessário averiguar se em seu lugar ter-se-ia o dever jurídico de garantia a não realização do resultado. Tal dever jurídico pode advir de normas consuetudinárias, atuando nos limites da função integradora da norma e jamais com força ab-rogatória. É aceito no Direito Penal formal brasileiro; é na verdade fonte primária do Direito, pois a lei nada mais é do que uma forma de captação e recepção do costume. O desuso não é forma renovadora e a doutrina atribui no jus non scriptum a maior importância na interpretação da lei, sobretudo na valoração dos fatos nos diversos ambientes sociais (pudor, bons costumes e decoro). Há possibilidade do erro de proibição quando da notoriedade da não repressão por parte do Estado e da sociedade.
6. Se a norma penal não contém a proibição do fato, ou ao menos alguma expressão que manifeste uma intenção inovadora, não é possível negar a validade do costume, tacitamente confirmado pela lei. Nos períodos da transição discute-se a matéria do desuso ou dos costumes discriminantes. A grande questão pode ser resumida na seguinte indagação: na ausência de ab-rogação expressa, a norma que deixaria de ser aplicada por certo tempo estaria sob o crivo de um desuso em virtude do costume ab-rogante? A questão é posta quando a não aplicação da norma é acionada pela opinio iuris, isto é, a convicção da juridicidade da desaplicação. Pietro Nuvolone escreve que a “incompatibilidade de uma norma com os princípios constitucionais não determina, portanto, problema de ab-rogação por desuso, mas sim um problema de delimitação da própria norma”. Dentro da função de certeza do direito, os costumes contra legem não recaem sobre a estrutura do ilícito. Stratenwerth, no Strafrecht, diante da crise do positivismo, sustenta um profundo processo de transformação, e propõe que se considere também no Direito Penal o direito consuetudinário, podendo ser produzido em três planos concretos: a) pode excluir a punibilidade, deixando de aplicar certos preceitos, principalmente na esfera de disposições que tenham alcançado validade temporal; b) permite desenvolver causas especiais de exclusão de pena, apresentando uma conduta típica como justificada ou como inculpável, através da apreciação de causas não expressamente reconhecidas na legislação escrita: c) solidifica um determinado sentido de interpretação dos preceitos penais, especialmente no círculo de validade das teorias da Parte Geral, ou em complemento de singulares tipos da Parte Especial, respeitada a característica acessória.
7. Não se devem confundir os limites da constitucionalidade com a interpretação da norma. No que tange às classes de costume e sua pretendida eficácia, haveria: a) contra legem; b) contra secundum legem; c) contra praeter legem. O hipotético fato de que o costume pode influir indiretamente na configuração posterior das leis não leva à errônea consideração desse fator como fonte do Direito. Vive-se no Direito Penal brasileiro sob o rígido princípio da reserva legal, onde a única fonte de criação é a lei. Certo está Henri De Page quando diz com propriedade: “O juiz, ao interpretar a lei, não pode tomar liberdades inadmissíveis com ela.” A jurisprudência só tem força obrigatória para o caso concreto, não podendo dar vida a imperativos jurídicos de caráter geral. Na literatura germânica é entendida como usus fori ou usus curiae e, como modalidade específica do costume, seria uma verdadeira fonte. Em nosso país, a jurisprudência não é fonte formal de Direito, é tão somente uma forma de interpretação. A atribuição da definição de crimes e contravenções é privativa do legislador federal, pois a competência para legislar sobre Direito Penal é privativa da União, ex vi do art. 22, I, da Constituição Federal.
8. Tem grande relevância as súmulas, súmulas vinculantes, repercussão geral e recursos repetitivos, conferindo-lhes a natureza de orientação e a sua obrigatoriedade seguida em futuros julgamentos, o que aponta a ideia de precedentes. A lógica do Case Law, ao delegar a elaboração do direito aos magistrados, deixa uma margem excessiva para a criação da ciência jurídica, através da verificação de caráter genérico e abstrato, sem levar em conta aspectos específicos do caso concreto. A letra da lei traz unicamente um marco, dentro do qual o jurista se conecta com alcance preciso da norma. José Roberto dos Santos Bedaque, no artigo “Precedentes vinculantes ou enunciado vinculante? Constitucionalidade?”, coloca que “A eficácia vinculante de uma determinada decisão, tal como prevista pelo legislador processual, implica a passividade de se adotar outro entendimento sobre aquela regra geral ou aquele conjunto de regras” e, conclui: “Os enunciados ou precedentes devem limitar-se à interpretação do ordenamento jurídico, não sendo admissível inovar o significado das expressões utilizadas pelo legislador. A Constituição confere a função jurisdicional o poder de identificar o significado das normas, não de criá-las” (grifei). Massimo La Torre lembra que, no direito peninsular, o termo precedentes é empregado em sentido amplo, significando qualquer decisão prévia possivelmente relevante para um caso a ser decidido, que decida um novo tema de direito de outra maneira, de uma forma completa e original. Nesta direção, os precedentes não são considerados vinculantes, bem como não constituem fontes do Direito, mas podem ser tratados como “fontes de fato”, meramente persuasivas. Alexandre Câmara, em sua tese doutoral “Levando os Padrões decisórios a sério”, corretamente denuncia que no STJ e o STF, “encontram-se incontáveis acórdãos em que se faz referência a ‘precedentes’ sem que qualquer confronto entre o caso anteriormente julgado e o novo caso em exame seja feita de forma analítica”. Por fim, repete-se que “o papel do precedente se torna mais importante se não existisse lei expressa ou se esta exige interpretação”.
9. Os bens jurídicos o são por força de uma chamada danificação social, encontrando-se na espiral hermenêutica a estrutura do seu modo de ser histórico. No melhor vetor doutrinário, pelo critério do bem jurídico, a danosidade social de um fato requer a lesão ou a possibilidade concreta de perigo de interesses fundamentais que afetem as condições materiais que contenham pressupostos indispensáveis para a vida em sociedade. A lei penal deve proteger os bens jurídicos relevantes que emanam da realidade social. O objeto é a disciplina social, a regulamentação obrigatória das relações sociais. Tais relações são de complexidade crescente, e as Constituições tendem a grupá-las, quanto ao interesse maior, em públicas e privadas. O Direito público, que está em constante elaboração à medida que se socializam as relações jurídicas, se subdivide em vários ramos secundários e, dentre estes, está o Direito Penal.
10. A interpretação é uma operação lógico-jurídica, que se destina a descobrir a “vontade da lei”, observados o ordenamento jurídico e as normas de cultura, a fim de possibilitar a aplicação concreta nos casos da vida real. Alguns autores posicionam a interpretação à margem da dogmática, em um apelo do Direito à Filosofia. Aliás, do trabalho interpretativo não se pode dissociar o subjetivismo. Ao se estudar os limites da interpretação no Direito Penal, abordando especificamente o sentido literal possível na linguagem corrente como limite da interpretação, afastada a concepção mecanicista do magistrado, operam-se diversas possibilidades do significado em uma verdadeira atividade de criação, longe do aforismo de Montesquieu (“Les juges ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi”), traduzido na época da Ilustração em que o magistrado nada tinha que interpretar, senão aplicar o inequívoco teor literal da lei.
11. A vinculação da interpretação ao limite do teor literal não é absolutamente arbitrária, derivando dos fundamentos jurídicos, políticos e penais do princípio da legalidade. Uma vez sancionada a lei penal, torna-se imperiosa a sua interpretação para transpor do abstrato ao concreto, a fim de valorar os preceitos jurídico-penais. Interpretar o Direito constitui uma via intermediária entre dizer o Direito e criar o Direito. Recorda-se que a tarefa interpretativa do magistrado não pode ser completamente livre, podendo aplicar normas gerais aos casos concretos, o que permite situar-se entre uma via intermediária entre opções extremas representadas pelos formalistas (o magistrado diria o Direito) e pelos realistas (criaria o Direito). O magistrado tem que interpretar o Direito. A função aplicadora não pode ser concebida como diferente da criativa.
12. Interpretar é materializar a vontade abstrata da lei, através do julgador, o qual realiza um juízo de valor, fruto da relação entre a conduta e a norma (fim do preceito e momento da aplicação). A interpretação – resultado ou produto – pode ser entendida de três maneiras: a) como produto noético; b) como resultado do ato linguístico; c) como resultado de uma atividade dianoética. O resultado da interpretação responde unicamente a uma determinada concepção da atividade interpretativa de alcance limitado, que pode ser a atribuição de um significado aceito ou criado de uma nova significação. É uma operação composta que exige estabelecer o significado abstrato (intenção) e o concreto ante o caso a resolver (aplicação). A lei penal não é carente de função; não se deve confundir função criadora e função criadora de Direito. Nem a jurisprudência nem a doutrina são fontes do Direito Penal, razão pela qual a interpretação não poderá ser criadora de direito. Mezger considera criadora a função de interpretar leis, afirmando que possui na aplicação um caráter individualizador e criador. O magistrado recria a regra objetiva ao vitalizá-la no processo de subsunção. A função criadora da interpelação é indubitável por sua natureza; interpretar consiste em materializar a vontade abstrata da lei, por intermédio da mente do julgador, pois quem julga realiza um juízo de valor, que é fruto da relação entre a conduta que se contempla e a norma.
13. A interpretação é uma atividade mental necessária para o atendimento de todo o significado contido no ato de querer, que é a norma, e não do legislador, de quem emanou. Calamandrei escreve que a lei é como um filho que sai da casa paterna para ir ao encontro da vida, para seguir a sua própria estrada, frustrando, talvez, ou superando toda expectativa do genitor. A lei é independente da vontade do legislador, como também do quadro de condições histórico-ambientais que a determinaram, devendo acoplar-se ao complexo social que flui ao tempo. Salienta Eros Grau, nos Ensaios e Discursos sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, que a atividade do intérprete não se resume em descrever o significado previamente existente, mas em construir esses significados. A missão da interpretação do magistrado é a de captar no sentido da lei com vistas à sua aplicação em um caso concreto, e a sua validez é determinada através de sua reversibilidade objetiva. Trata de descobrir o sentido objetivo que a lei possui na atualidade (teoria objetiva) e não a vontade do legislador histórico (teoria subjetiva). Luís Roberto Barroso, no Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, sustenta que “[...] No constitucionalismo democrático, o exercício do poder envolve a integração entre as cortes judiciais e o sentimento social, manifestada pela opinião pública ou instâncias representativas”, e conclui no sentido de que “A opinião pública é um fator extrajurídico relevante no processo de tomada de decisões dos juízes e tribunais”. A autorização para o referendo e convocar o plebiscito é da competência exclusiva do Congresso Nacional, ex vi do art. 49, XV, da Carta Política, constituindo ferramentas adequadas a dar origem às leis penais.
14. A analogia consiste em aplicar a um caso concreto não regulado pela lei, mas aparentemente semelhante, uma norma oriunda da própria lei (analogia legis) ou do ordenamento jurídico em seu conjunto (analogia iuris). A analogia é um procedimento para suprir as lacunas da lei, embora Manzini negue a existência de lacunas no ordenamento jurídico, pois deve considerar-se completo. Poder-se-ia dizer que a analogia é um critério de transposição harmônica da norma jurídica, daí a permissão da denominada analogia in bonam partem ou intra legem, diante do princípio da legalidade. A lacuna no Direito encontra sua raiz no contraste inevitável entre uma norma abstrata e uma existência concreta conforme a decisão judicial, constituindo uma ausência na normatividade jurídica. A questão das lacunas pressupõe um juízo de valor sobre normas jurídico-positivas e a fragmentação de todo o positivismo. As lacunas jurídicas podem ser: a) autênticas: a lei guarda silêncio diante de determinado pressuposto fático; b) inautênticas: surgem por não estar claro o exato conteúdo dos conceitos empregados na decisão legal; c) legais: são lacunas perceptíveis em relação ao direito positivo, admitindo aclarar através do direito supralegal; d) de Direito: em sentido estrito, são lacunas no Direito em absoluto que, de forma arbitrária ou por falta de uma instância competente para a decisão, não podem ser eliminadas.
15. Só é admissível a analogia interpretativa da lei penal in bonam partem, sendo vedada a configuração analógica ou consuetudinária dos tipos legais. A interpretação analógica em matéria penal não deve ser entendida em sentido absoluto. Não se trata de substituir o legislador pelo magistrado, o que traria a insegurança do direito. As chamadas escusas amplas se limitam à interpretação sistêmica. Há inúmeros casos de interpretação analógica em nossa legislação penal. Há controvérsia em relação à escolha entre a interpretação lógica e a teleológica; a primeira, dentro de um campo estático, ao passo que a segunda, dentro de uma área dinâmica, tendo como ponto de referência o escopo da norma. O fim é a tutela de um interesse ou de um valor éticossocial. Ora, a quaestio é aparente; toda norma se destina a atingir um fim colimado. O art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil diz que “na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. É interessante verificar que há normas penais em que o fim é claro, enquanto em outras há uma maior complexidade, em virtude do entrelaçamento de conceitos naturalísticos e normativos que encontram seu patamar na sensibilidade social e nos valores da comunidade em determinado tempo. Na interpretação evolutiva, a norma deve ser interpretada e aplicada segundo os reclamos do atual momento histórico, distinguindo-se o atuar proibido normativamente e as suas eventuais justificações, dentro dos limites entre o exercício do direito e o cumprimento do dever.
16. A questão mais relevante diz respeito à hipótese da homofobia. O min. Gilmar Mendes, em sua tese doutoral “Jurisdição Constitucional”, sublinha que “casos de omissão absoluta do legislador, que devem tornar-se cada vez mais raros, trata-se, na maioria das hipóteses, de omissão parcial do legislador, isto é, de uma lacuna da lei ou, especialmente, de uma exclusão do benefício incompatível com o princípio da igualdade”. Configura-se omissão do legislativo, escreve, “quando não cumpre com o seu dever, mas, também, quando o satisfaz de forma incompleta” – essa omissão vem a ser examinada no controle de normas.
* Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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