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A eterna busca da felicidade



O autor, diante dos conflitos macro e microssociais globais, faz uma releitura do pensamento dos filósofos gregos que difundiram que o objetivo do homem é ser feliz

1. Sócrates (470-399 a.C.) aparece de certo modo como um conservador. Assume a defesa das normas tradicionais da cidade, venera a lei humana e reclama em seu favor, mesmo quando ela o faz morrer de modo injusto, uma obediência incondicional. É um conservador magistral que se alegra com o diálogo e a dialética. Aquilo a que ele visava era um conhecimento racional da realidade do mundo moral e das essências que esse conhecimento comporta. Esse conhecimento é obtido pela ciência e pela introspecção. É bem verdade que, em sua essência, a missão de Sócrates não era uma missão especulativa ou científica, mas prática. Sua missão era pôr os homens à prova. O único conhecimento que ele reivindica para si mesmo é o “de saber que nada sabe”. Ele força as pessoas a perceber que ignoram a si próprias e que não sabem o que dizem. Mas ao mesmo tempo lhes diz: “Conhece-te a ti mesmo, e é bem provável que julgues esse conhecimento e esse abismo do ‘ti-mesmo’ acessível ao olhar da razão.”


2. Justifica-se, portanto o lugar-comum, subscrito tanto por Sören Kierkegaard (1813-1855) como por Hegel, de que foi Sócrates o fundador da filosofia moral, ao menos para o pensamento ocidental. Em certas sentenças fulgurantes de Heráclito (540-470 a.C.), vê-se aparecer uma experiência moral singularmente rica. E Demócrito (460-370 a.C.) parece possuir um vocabulário moral de contornos bem marcantes. Antes de Sócrates, porém, não existiu uma filosofia moral propriamente dita ou um saber filosófico que tivesse por objeto próprio a conduta humana. Sócrates fundou paradoxalmente esse saber, não por uma doutrinação, mas à custa de dúvidas, de questões e de interrogações. Compreendeu, mesmo, tão bem o valor da razão prática, que ora parece excessivamente racionalista, ora excessivamente pragmático. Sua famosa ironia é a defesa e a expressão de sua complexidade e, sobretudo, como se vê, da experiência espiritual, incomunicável, que era o seu tesouro escondido. Para Sócrates, como para todos os gregos, uma questão suprema domina todo o campo da ética, a do bem supremo da vida humana, que é a eudemonia, a felicidade. Ela, porém, não é apenas ser favorecida pelos deuses, isto é, ter boa sorte, que depende das condições exteriores e dos acidentes propícios do acaso ou de uma busca empírica. A felicidade é, ao mesmo tempo, o proceder bem e o perfeito êxito no agir, a eupraxia, termo que contém em sua fecunda equivocidade o grande drama das especulações morais que dominarão o pensamento helenístico. Antes de tudo, tem-se a ideia do Bem. Essa ideia, natural à inteligência humana, como é a do ser, só emergiu à custa de muito esforço. Com Sócrates, afinal, a ideia do Bem liberta seu valor inteligível e faz surgir perante a razão um objeto proporcionado tanto à sua amplitude e espiritualidade como à liberdade da pessoa. Parece que a noção de Bem metafísico e Bem moral como que se confundiam, tanto como a noção de virtude e a de felicidade. No que diz respeito à vida humana, o Bem é agir bem e a conquista da felicidade é não falhar na vida. A arte moral não é a arte de bem viver tendo em vista alcançar a felicidade, e sim a arte de ser feliz porque se vive bem.


3. A felicidade se torna interior e é determinada racionalmente pelo que é o bem. Pela essência do ser humano é que se conhece a sua felicidade. Conhece-te a ti mesmo, desce até as profundezas onde habita o teu demônio interior e onde te tornas consciente das exigências de tua essência e do valor de tua alma que é um universo em si mesmo. Ser feliz não é possuir riquezas ou boa saúde. É ter a alma boa. A felicidade e a boa conduta são uma só e mesma coisa. As virtudes são, todas elas, conhecimentos firmes e verdadeiros. São ciências. Sócrates pensava, segundo Aristóteles (384-322 a.C.), “que todas as virtudes são ciências, e que todo pecador é um ignorante, ninguém é mau por querer o mal, mas porque não conhece o Bem”. Sócrates, porém, não faz a distinção necessária entre este saber usar, que é totalmente prático e dependente da prudência do homem virtuoso e não da sua ciência, e saber (por meio da ciência do moralista) de que modo é preciso usar. A insistência socrática sobre a ciência, a inteligência, a verdade especulativa em matéria moral, a própria teoria do conhecimento-virtude termina em critérios utilitaristas.


4. Fundou a filosofia moral no Ocidente. Sua inspiração despertou a inteligência para os princípios supremos da conduta humana. Os temas por ele ensinados vão alimentar, por séculos, o pensamento dos moralistas e as virtualidades contrastantes de sua conduta se atualizarão, nas grandes escolas gregas, em sistemas opostos. São aqueles que guiavam, em seus juízos morais, o bom cidadão de Atenas, na segunda metade do século V. O fim da vida humana é agora transcendente de modo absoluto. Essa transcendência do Bem e do objetivo já estava, sem dúvida, esboçada em certas virtualidades do pensamento socrático. No entanto, a oposição parece aqui das mais nítidas entre Sócrates e Platão. Enquanto para Sócrates a moral é a arte de ser feliz vivendo bem, para Platão, ao contrário, a moral é a arte de se preparar para uma felicidade que transcende à vida humana, pois desde a existência terrestre, e depois dela, a verdadeira vida está além da vida, a verdadeira felicidade, além da felicidade.


5. Releiam-se algumas das célebres passagens de Górgias: “Eu nego, Cálicles, que o cúmulo da vergonha seja o fato de ser esbofeteado injustamente ou o de ser mutilado em algum de seus membros, ou privado da sua bolsa. Sustento que é mais vergonhoso e pior o fato de agredirem e de mutilarem injustamente minha pessoa ou meus bens. Suponho que o fato de me roubarem, de me escravizarem, de cometerem qualquer injustiça contra mim ou contra as coisas que me pertencem é mais feio e prejudicial ao autor da injustiça do que a mim mesmo, sua vítima. É preciso evitar, com mais cuidado, cometer uma injustiça que sofrê-la.” Platão (428-348 a.C.) não afirma apenas que é um mal maior cometer a injustiça que dela ser vítima. A humanidade, na prática, não leva muito em conta esse axioma. Mas é verdade que ele se fixou em sua consciência “por razões de ferro e de diamante”. Sustenta também que “somos mais felizes e sentimos alegria maior ao sofrer uma injustiça do que ao cometê-la”. Do lado de cá, como do lado de lá do túmulo, a justiça tem por sanção a felicidade. O julgamento é pura e simplesmente um julgamento de valor. A ideia do Bem supremo do homem e a relação deste ou daquele ato a este bem não entram em consideração. Essa espécie de julgamento imediato, derivado de um conhecimento espontâneo, intuição moral ou senso moral, qualquer que seja o nome que se lhe dê, apresenta para um filósofo um problema. A justiça não é boa por servir para alguma coisa. É boa e pura, simplesmente.


6. Observa-se, a propósito de Sócrates, que o ético, na realidade, depende, em grande parte, dos valores e das normas comumente reconhecidas pelo seu tempo e pelo seu meio. Essa observação se aplica de modo geral a todos os filósofos, qualquer que seja o seu sistema moral. Platão, de certo modo, é uma das raras exceções. Ele transcende a mentalidade de seu meio quando ridiculariza a divisão da humanidade em gregos e bárbaros. Transcende-a também, e, sobretudo, quando propõe, do sábio que se refugia nas regiões eternas, uma ideia que de fato colocava o sábio além e acima da cidade. Platão depende da consciência comum do seu tempo. Dela recebeu a noção fundamental da Kalokagathia, assim como a convicção, a que acabo de aludir, de que a atividade política é a mais alta forma de atividade humana. Platão é tributário da noção de civilização que a Grécia de seu tempo professava e do ideal aberrante que ela desenvolvera de uma sociedade masculina heroica e fechada sobre si mesma. Ele partilha das ideias da aristocracia reacionária com a qual tem laços de família e tem precisamente esse pessimismo um pouco excessivo em relação à natureza humana, pelo qual se reconhece os que choram um passado perdido.


7. Enfim, sua moral está tão inseparavelmente ligada à sua política que pode ser caracterizada como uma moral da consciência (por oposição a Sittlichkeit hegeliana), girando ela mesma em torno da cidade e com ela harmonizada. A Grécia não conheceu o totalitarismo de um Estado que se considera como sendo a regra do bem e do mal e que caçoa da verdade por ser o deus insensato de um mundo e de uma ideologia imanentistas. Seu culto idolátrico da Cidade era o culto de uma cidade que guardava a sua fé nos valores transcendentes e a eles se subordinava. O absolutismo da cidade platônica é uma espécie de absolutismo teocrático: autocracia da sabedoria, por intermédio das leis. O filósofo príncipe é uma espécie de hierarca que governa uma sociedade político-religiosa em nome das leis eternas. Essa cidade que impõe a pena de cinco anos de prisão, mesmo para os heréticos reincidentes, a pena de morte aos que negam a adesão aos três artigos do seu credo filosófico, não deixa de se assemelhar à Genebra de Calvino. A cidade platônica é estritamente temporal e racional. Os ensinamentos de Platão visam a formar um homem, quando muito um pequeno grupo de homens reunidos em uma escola, formando uma seita fechada, uma ilhota cultural sadia no meio de uma sociedade apodrecida.


8. A questão fundamental, para Aristóteles, é ainda e sempre a do bem supremo ou soberano bem do homem. E esse bem supremo é ainda e sempre a felicidade. Trata-se de “viver de um modo bem-aventurado e belo”. A vida perfeita é antes de tudo teórica. Era Aristóteles realista demais para ignorar que a sorte, os favores do acaso e os seus imprevistos, os dons gratuitos da boa fortuna desempenham, indispensavelmente, seu papel, na felicidade do ser humano. A concepção aristotélica da felicidade ou da eudemonia não é certamente hedonista, já que o prazer nela só ocupa o terceiro lugar. É, antes, uma imanentização, uma secularização soberanamente humanista, nobre e racional do Bem supremo, segundo Platão. Como o próprio homem, a felicidade do homem é complexa. A ideia de dever, nos filósofos gregos, está menos intimamente ligada a um imperativo sagrado do que a uma apropriação soberana dos meios, exigida pelo homem para atingir seu fim e não fazer malograr sua vida. Essa apropriação dos meios é disseminada por todo o espírito racional e cultivado por quem tenha a preocupação de sua verdadeira felicidade. A ideia do erro está ligada, sobretudo, à ideia de um ato mal regulado ou insensato, que enfeia a vida e a afasta da felicidade. A noção de culpabilidade, que torna o homem indigno da existência e atrai sobre ele a cólera dos deuses, essa noção tão forte em Ésquilo apresenta-se agora muito atenuada.


9. Quanto ao conceito de norma, embora desempenhe um papel essencial, perdeu também o caráter sagrado que de origem possuía, passando a designar menos um mandamento divino do que uma regra de conduta exigida pela ordem da natureza e do cosmos. Em suma, não é o tu deves kantiano que aqui se nos apresenta, mas antes é o caminho da felicidade. A ética de Aristóteles vive à procura de um equilíbrio doutrinário e sistemático entre essas duas considerações primaciais: a consideração do fim e a dos valores. Escreve: quem escapa à vida social ou é um animal ou é um deus. A cidade de Aristóteles é governada pela justiça. A “cidade feliz” é aquela “que atua de modo reto”, e “nem o indivíduo nem a cidade são capazes de agir retamente sem virtude e sem sabedoria”. A filosofia política sustentará sempre esse tema da retidão moral e da justiça inerentes ao Bem comum da cidade até o tempo de Maquiavel. À filosofia moral de Aristóteles, que é a mais verdadeira e a mais autêntica, a mais leal das teorias éticas puramente filosóficas, falta eficácia e alcance existenciais para ser um sistema de meios dependentes de um fim que não possui o valor de um fim praticamente absoluto, nem o valor de um fim praticamente acessível, nem o valor de um fim praticamente obrigatório.


10. A ética aristotélica é a ética natural (puramente natural) e a ética “filosófica” (puramente filosófica), por excelência. No que diz respeito à orientação real da conduta humana, se perde na ineficácia. A idade clássica ou pré-kantiana da filosofia moderna não trouxe grandes novidades à filosofia moral. Da época do Renascimento à de Immanuel Kant (1724-1804), o quadro que a filosofia moral nos oferece é o de uma secularização ou “naturalização” progressiva da tradicional herança cristã. Isolava-se a razão da fé, assumindo a responsabilidade de organizar a vida humana: processo de emancipação, do ponto de vista racionalista, e de desintegração, do ponto de vista da unidade orgânica da cultura.



 

Álvaro Mayrink da Costa Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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