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A crise da pena de prisão e o mito da ressocialização:


Estudo da presença do Direito Penal nas sociedades contemporâneas, polarizadas ideologicamente -


Imagem: Niels Andreas – 2.out.1992/Folhapress
O autor rediscute a importância dos fins da pena e redesenha o papel do Direito Penal como instrumento de ultima ratio na sociedade contemporânea. Discute o choque de realidade na busca da cidadania em sociedades marcadas pela desigualdade e o uso abusivo do poder pela classe dominante

1. Desde os inícios teóricos do Direito Penal nos fins do século XVIII, uma das questões mais relevantes foi a da pena, problema ligado ao caráter público do Direito Penal e que originou o denominado Direito Penal subjetivo. Por tal razão, se une a teoria da pena à concepção de Estado, pois não tem o mesmo significado a concepção da pena sob um Estado absoluto ou diante de um Estado democrático e as diversas formas evolutivas que teve em um Estado de Direito. Roxin defende uma teoria unitária ou unificadora dialética para a superação das críticas às teorias absolutas ou relativas da pena, fazendo distinguir cada uma das três fases essenciais (criminalização, aplicação e execução), observado que o Estado tem o dever de garantir a vida em comum de todos os cidadãos, destacada a natureza subsidiária do Direito Penal. É pacífico que, do ponto de vista jurídico, o Direito Penal constitui um sistema pelo qual se regula o injusto, como pressuposto, e a pena, como consequência, sendo a questão central, que se inicia e se esgota no fundamento e no fim da pena (efeitos relevantes macro e microssociais). As denominadas teorias da pena são pontos de vista que buscam explicar, legitimando ou justificando, a existência do Direito Penal.


2. Há basicamente três doutrinas que procuram explicar a razão existencial das penas: a) as teorias absolutas (retribuição penal e jurídica); b) as relativas (prevenção geral, positiva e negativa; prevenção especial, positiva e negativa); e, c) de união ou ecléticas (aditiva e dialética). Tais denominadores, trazidos pela classificação de Anton Becker (1772-1843), não obstante o tempo, completados por conceitos de Bentham (1748-1832), de prevenção geral e especial e com a distinção atual elaborada por modernos penalistas, de prevenção geral negativa e prevenção geral positiva, são grupos de teorias numerosas e convivem em certos pontos fundamentais e se separam de forma profunda em outros. Nas teorias absolutas, globalizam-se as ideias liberais,[1]individualistas e idealistas, impregnadas de uma forte ordem ética que chega quase ao divino. Sustentam que a pena não é um meio extrínseco, alheio à sua própria noção, mas mera resposta ao injusto penal, transpassando os limites da intimidade caracterizada: punitur, quia precatum est (punido porque pecou). É a retribuição do injusto no sentido religioso (expiação) ou jurídico (compensação) da culpabilidade, necessária para realizar a justiça ou restabelecer o Direito (mal justo contra o injusto). As teorias absolutas (retribuição, expiação ou justiça) defendem que a pena é unicamente castigo ao delinquente pelo injusto penal cometido e não persegue outra função (preventiva ou social) posterior. Na doutrina, é tradicional explicar as teorias da justiça (com a expiação moral se libera o culpável de sua culpa alcançando sua dignidade pessoal) e da expiação (restabelecendo a ordem e alcançando a justiça) equiparando-as às absolutas ou retributivas. As teorias absolutas ou de retribuição foram estudadas inicialmente pelos filósofos Kant e Hegel e, modernamente, por Binding (1841-1920). Kant (1724-1804) em sua Metaphysuk der Sitten parte da distinção entre pena judicial (poena forensii) e pena natural (poena naturalis) e diz que se exige um digno castigo, pois a lei penal é um imperativo categórico, e só impondo-se a pena em sua concreta medida a justiça poderá ser alcançada. Seu pensamento resume-se em que a pena deverá ser: a) efetivamente imposta (executada); b) justa ao injusto penal cometido (proporcional).


3. Em seu artigo “Sentido e Limites da Pena Estatal”, Roxin, ao abordar a chamada teoria da retribuição, diz que seu patamar é a culpabilidade do autor compensada através da imposição de um mal pessoal, buscando tão-só a realização da justiça (existe para que a justiça impere). Cita Kant ao formulá-la de modo expresso: “Mesmo que a sociedade civil com todos os membros decidisse dissolver-se, teria, antes, de ser executado o último assassino que estivesse no cárcere, para que cada um sofresse o que os seus atos merecem, e para que as culpas do sangue não recaíssem sobre o povo que não haja insistido no seu castigo.” Conclui Roxin, com três argumentos contrários: a) a teoria da retribuição deixa na obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e como profissão de fé é irracional e contestável, não sendo vinculante; b) fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado; c) revela não só uma debilidade teórica, mas também um perigo prático. Os fins da pena só têm relevância para a vida societária, anotando-se que as teorias absolutas pecam pela ausência de cientificidade, arrematando que deixam na obscuridade os pressupostos da punibilidade, uma vez que os seus fundamentos não estão comprovados.


4. No século XIX, a atitude de Feuerbach se constitui em uma exceção, ao defender uma teoria pragmática de presunção geral, identificando a concepção final de pena segundo sua teoria da coação psicológica com a pena justa kantiana, aproveitando, pois, o critério de Kant porque se adequava à pena-fim de sua proposta. Feuerbach, em seu Lehrbuch, sustenta que “o fim da aplicação (da pena) é fundamentara eficácia da ameaça legal, na medida em que sem ela tal ameaça seria ineficaz”. Em síntese, para ele o fim último da aplicação da pena é a “mera intimidação dos cidadãos através da lei”. Seguindo a crítica de Naucke, se o injusto é a lesão do Direito como instituição final, a reação diante do injusto não deve ser a retribuição no sentido kantiano, mas uma atividade final que evite futuras lesões do Direito. A união da teoria absoluta de Kant com as teorias utilitaristas dominantes à época serviu para que o conceito de pena-fim se destinasse à tutela da paz entre os cidadãos. Salienta-se que outras teses retribucionistas foram lançadas, como de Carrara, em seu Programma, ao assinalar que o fim-princípio da pena é o restabelecimento da ordem externa da sociedade,[2] enquanto Mezger (1883-1912) sustenta que a pena se constitui na irrogação de um mal que se adapta à gravidade do fato cometido contra a ordem jurídica. Neste desenho, portanto, a retribuição seria, necessariamente a privação dos bens jurídicos. Mais recentemente, têm-se as posições retribucionistas dos finalistas como Welzel (1904-1977) e Maurach (1902-1976) (retribucionista de linguagem contraditória).


5. A teoria da retribuição, segundo diversos doutrinadores, oferta três formulações, em síntese: a) teoria da retribuição divina; b) teoria da retribuição moral; c) teoria da retribuição jurídica. As críticas aos postulados retribucionistas partem de Roxin, que ataca afirmando que os mesmos não explicam quando o Estado deve sancionar o atuar, olvidando a fundamentação da autorização estatal de punir e, como tal, desprezando a teoria da expiação, pois deixa sem esclarecer os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados seus fundamentos. Defende que as cominações penais só estão justificadas se objetivarem a proteção preventiva geral e subsidiária de bens jurídicos. Conclui que o delinquente é obrigado a suportar a pena em atenção à macrossociedade e quem não desejar aceitar a justificativa da pena, de que todos têm que responder por seus atos na medida de sua culpa, co-assumir responsabilidades por seu destino (princípio da igualdade), terá que negar a existência de valores públicos e, com eles, o sentido e missão do Estado. Winfried Hassemer (1940-2014) observa que em uma época como a nossa não se pode advogar uma pura teoria retributiva, o que levaria a renunciar a uma justificação da pena do ponto de vista de seus efeitos práticos (diante do delinquente e da macrossociedade), teorizando que a justificação pelas consequências desejadas é uma parte de nossa de nossa racionalidade. Na visão de Jesús Maria Silva Sánchez, no caso de retribuição, as razões de sua superação como fundamento básico da intervenção jurídico-penal sobre pessoas e bens dos cidadãos são claramente culturais (ou ideológicas). O Estado social e democrático de Direito deve garantir o bem dos cidadãos, respeitando a dignidade do condenado como pessoa humana, pois o Direito Penal não possui o escopo de realizar vingança; tutelando os bens jurídicos, objetiva-se integrar o condenado dentro de mútuas possibilidades. O moderno pensamento jurídico-penal de orientação preventista abandonou a ideia de retribuição, salvo no conceito de culpabilidade.


6. Cria-se o temor da perda da liberdade e de todos os direitos relativos à cidadania, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Porém, não se pode dizer que a pena não tenha seu efeito intimidativo para a maioria de seus destinatários, pois o que se combate é a generalização de penas rigorosas para a garantia do efeito intimidatório, o que cria um contra-efeito. O projeto alternativo ao Código Penal alemão (1962) aderiu às teses de Von Liszt, para o qual a função da pena e do próprio Direito Penal seria a proteção dos bens jurídicos através da incidência da pena na pessoa do delinquente, com a finalidade de evitar delitos posteriores. A pena deveria constituir-se em um instrumento de defesa da sociedade, sob uma visão pragmática e humanizadora. Como Roxin, Muñoz Conde ataca a questão da ressocialização do delinquente, priorizando o questionamento da estrutura social, pois, diante do quadro da atualidade, consistiria na grande farsa montada por nossa hipocrisia, isto é, reeducar e ressocializar o condenado para o reingresso na macrossociedade; com o sistema prisional atentatório à dignidade da pessoa humana, o que constitui uma flagrante contradição. Na visão de Jakobs, a pena garantidora das expectativas sociais teria como finalidade o restabelecimento da ordem externa da sociedade, objetivando a confirmação da vigência da norma, atuando mais sobre os outros do que sobre os culpados, a fim de tranquilizá-los tanto a respeito dos próprios delinquentes como a respeito de seus temidos imitadores.


7. As teorias unitárias consistem genericamente na luta contra a criminalidade, expressadas por noções de (a) prevenção geral e (b) especial. A pena deve proteger a sociedade, e sua aplicação deve contribuir para evitar novas infrações realizadas por outras pessoas (princípio da exemplaridade). É o sentido básico da prevenção geral. Controle mínimo, mas autoritário. Como escreve Michel Foucault, os iluministas que descobriram as liberdades também inventaram a disciplina. Nas palavras de Nobert Hoerster (1937) “a prevenção geral é um instrumento de controle social e como tal muito valorativa”. Como destaca Roxin, o ponto débil da doutrina da prevenção geral é o compartilhamento com as teorias da retribuição e da correção, sem aclarar o âmbito do punível. Para Hoerster, a prevenção geral serviria para justificar a intervenção punitiva do Estado. Crítico, Bustos Ramírez (1935-2008) diz que a teoria da prevenção geral ou cai na utilização do terror e na transformação dos indivíduos em animais, ou na suposição de uma racionalidade absoluta do homem no balanceamento entre o bem e o mal, na sua capacidade de motivação, na qual é uma ficção como é o livre arbítrio. Já a prevenção especial consiste em que a pena aplicada e executada deve evitar a comissão de novos injustos penais por parte do condenado. Roxin desenha ser inadmissível infligir um mal como mero fim retributivo; ao contrário, é possível o estabelecimento da pena para a paz jurídica (sentido construtivo). Sustenta que não cabe eliminar completamente da fase executória o ponto de partida da prevenção geral. É oportuno registrar que as chamadas teorias unificadoras acolhem o princípio da retribuição e da culpabilidade como estratégias limitadoras da pena no sentido jurídico, buscando nos limites do injusto penal os fins de prevenção geral e especial. Tal divisão, extremamente sumária e de consequências insuficientes, não atende, no plano realístico, ao escopo das sanções penais. As teorias mistas ou ecléticas são marcadas pelo endereço retributivo, sendo concomitantemente um meio de educação e correção. Compreendem ambos os critérios, defendendo que a pena deve observar o passado e o futuro, retribuindo o injusto penal perpetrado e prevendo em seu próprio tempo a realização de outras ilicitudes. O caráter de intimidação é uma característica conjuntural. Segue o princípio punitur qui peccatum est et ne peccetur. Sem dúvida, é o apelo das legislações e posições dogmáticas modernas.


8. Nos segmentos modernos busca-se a melhora do condenado, que constitui o objetivo mais elevado da política criminal. Mediante a aplicação da pena, procura-se influenciar no apenado a reinserção social harmônica e, por consequência, a não-reincidência. Para os seus defensores a pena deve ter uma função educativa, a fim de transformar o delinquente em um novo homem, respeitador da ordem social e da lei. Embora a reinserção social harmônica e futura esteja escrita, como já vimos, em vários diplomas legais, normativos e constitucionais, é inimaginável que a prisão possa produzir cidadãos domesticados pela disciplina punitiva para conviverem nos padrões ditados pela macrossociedade dominante e, ainda depois de estigmatizados e desqualificados para o labor produtivo, disputarem o mercado formal de trabalho. O discurso oficial legitimador das funções objetivas da pena não resiste à avaliação crítica. Contudo, indaga-se sobre o critério a ser adotado para a efetivação de tal ação estratégica: moral ou judicial? A eficácia da pena está em relação direta com a estatística de reincidência. É um critério formal e superficial em razão da cifra negra. Por outro lado, o critério moral é mais difícil de constatar, diante da imperatividade de uma nova postura, não mais frequentando o meio desviante e aceitando os padrões da sociedade dominante. A inserção efetiva do indivíduo exige uma base de observação técnico-operativa durante um período relativo, não apenas na execução da pena (cumprimento da progressão dos regimes prisionais, trabalho extramuros, visita periódica ao lar (livramento condicional), mas também através do apoio do serviço social ao egresso). Não se pode olvidar a pressão social ao egresso, rejeitando-o e estigmatizando-o. A macrossociedade teme que o liberado reincida e não acredita em sua mudança de postura crítica em relação a ela. O conceito de recuperação é sempre questionado. Há necessidade da implantação de uma mudança radical em relação ao binômio: sociedade dominante ou macro e egresso, que só pode ser realizada por um Direito Penal com caráter construtivo e humano, isto é, um Direito Penal democrático, que se apóie numa nova cultura em relação ao egresso, o que se torna difícil em uma sociedade de riscos e da própria marginalização que opera a instituição total.


9. É relevante a questão da prisão como um problema de ressocialização versus desassocialização. Francisco Muñoz Conde, no Derecho Penal y Control Social (2005), escreve que a ressocialização do delinquente (reeducação, reinserção social, comportar-se no futuro com responsabilidade social, diante de uma vida sem delitos) impõe a execução de penas e medidas privativas de liberdade, obedecendo a uma função reeducadora e correcional. Von Lizst e os correcionalistas consideravam como uma função mais elevada e principal que se pode atribuir a todo o sistema penitenciário moderno. Fala-se do “mito da ressocialização”, de uma utopia, um engano que nunca chegará. Diz que o termo ressocialização se converte em uma palavra da moda que não se define bem o seu conteúdo, ainda que pareça um paradoxo, porém não é só a indeterminação do termo que se critica, mas a própria ideia de ressocialização. Lembra-se de Durkheim, quando afirma que “a criminalidade é um elemento de uma sociedade saudável” e se considera que essa mesma sociedade produz e define a criminalidade. Muñoz Conde, ao falar de ressocialização, entende que só tem sentido quando a sociedade na qual se pretende reintegrar um fator é uma sociedade com uma ordem social e jurídica justa, e indaga: não deveria começar a ressocialização da sociedade? Parson também ressalta a importância que tem para o processo ressocializador as relações interativas entre o sujeito e a sociedade. Lembra que “no processo de interação, de estruturas complementares da ambivalência no sistema de motivações do ego e do alter deve ser buscada a função da realidade cumulativa da conduta desviada. Enfim, ressocializar sem questionar ao mesmo tempo o conjunto social normativo em que se pretende incorporá-lo significa aceitar como perfeita a ordem social vigente, sem questionar nenhuma de suas estruturas relacionadas com o delito cometido.


10. A ressocialização só é possível quando o apenado a adotar as regras do meio social e o encarregado de ressocializá-lo têm o mesmo fundamento moral que a norma social de referência. As críticas e as ideias de ressocialização não se dirigem somente contra a ressocialização como tal, senão também contra o meio empregado para consegui-la: “o tratamento penitenciário”. Gize-se que é muito difícil educar para liberdade e em condições de não liberdade. Pelas condições de vida existentes na prisão, pelos perigos para os direitos fundamentais e pela falta de meio de instalações e pessoal capacitado durante o tempo da execução. A prisionalização assenta negativamente as possibilidades de ressocialização durante o cumprimento da pena privativa de liberdade. Erving Goffman (1922-1982),[3] entende que a classificação dentro das instituições totais formam parte de um fenômeno mais amplo e complexo que se denomina cerimônia da degradação. No mesmo sentido, as conclusões de Merton, em Social Theoryand Social Structure, que chegam as teses de self-sulfillingtrothecy, em efeito, as consequências do processo internacional não podem ser apreciadas unicamente com base nas expectativas e reações que o indivíduo e terceiros têm em relação a uma situação determinada. A classificação dos reclusos é mais um elemento de distribuição, estigmatização ou marginalização que um instrumento potencial das relações do condenado com o seu grupo e, portanto, facilitador da ressocialização. Como ressocializar um delinquente violento sem criticar ao mesmo tempo uma sociedade que continuamente está desencadeando e exercendo uma violência brutal (guerras, direitos humanos) contra outros grupos mais débeis ou marginalizados, indaga Muñoz Conde.


11. A intimidação ainda está presente dentre as estratégias universais, bem como o exercício da exemplaridade. Entendo que o Direito Penal moderno deverá abandonar a estratégia pura da intimidação, por ser injusta e inumana a medição das penas que devem sofrer uns para temor de outros. A pena deve ser sempre aplicada na medida da culpabilidade, evitando os exageros (proporcionalidade) e objetivando vias sociais construtivas, buscando o equilíbrio de todos os princípios por meio de restrições recíprocas. Serve à ordem comunitária, e a ideia de prevenção especial fica limitada à justa medida pelos princípios da subsidiariedade e culpa. Outrossim, as penas “exemplares” possuem eficácia discutível ou inexistente (a pena de morte). A prevenção especial possui como ponto referencial o fato de o autor do injusto ser portador de um desvio comportamental social, impondo correção, que incumbe à pena diante das plúrimas características. Repete-se na nova modelagem da teoria da prevenção por intimidação a velha formulação feita por Feuerbach no início do século. O Direito Penal oferece, então, contribuição para o aperfeiçoamento da macrossociedade através do fornecimento da resposta penal para os violadores do direito de terceiros, previamente anunciada, a fim de impor o desencorajamento. A desmotivação do autor do injusto penal é óbvia nos limites de uma reação humana proporcional, observadas as garantias do devido processo legal. Winfried Hassemer, ao analisar de forma crítica, diz que a intimidação como forma de prevenção viola a dignidade humana, pois converte uma pessoa em instrumento de intimidação do grupo, cujos efeitos são duvidosos, pelas categorias imprecisas, como (a) o inequívoco conhecimento por parte de todos das penas cominadas e das condenações e (b) a obediência dos cidadãos vassalos à ordem e à lei em decorrência da cominação de penas. Conclui que, para a relativa eficácia da prevenção geral, seria necessário que as citadas condições (a + b) estivessem presentes e interdependentes. Seria uma posição ilusória, não tendo a teoria da prevenção por intimidação ultrapassado a etapa do chamado Direito Penal das consequências.


12. No início deste século observa-se a revolta social e a intolerabilidade zero diante do ataque aos bens jurídicos, alimentando o tema do direito do inimigo, a terceira via do Direito Penal como ferramenta emergencial em situação de guerrilha urbana que, pelo quadro fático do conflito, permitiria restrições ao princípio da legalidade e seus corolários e da irretroatividade, legitimando a intervenção, que fraturaria o modelo garantista. Por fim, o princípio da intimidação é humilhante para a sociedade. Em um Estado democrático, as normas não podem ser respeitadas pelos cidadãos pelo terror. A intimidação, mediante a ideia de que existe uma lei penal e a possibilidade de sua aplicação exercendo uma função de coerção geral, objetivando a manutenção da paz social não faz sentido em sociedade democrática. Pela intimidação, quando não pelo próprio terror, a ameaça da pena, o exemplo pela sua aplicação e a certeza por sua execução garantiriam a defesa social. É a satisfação do grupamento societário e da vítima em particular. A justiça humana não tem patamar no absoluto, carece de fins utilitários, de ser necessária e útil para ser legítima. O fim da pena deverá sobrepor-lhe. A prevenção geral é uma função pedagógica? O fim é evitar ou prevenir a criminalidade do autor do injusto penal ou a sua reincidência; é um fim de prevenção especial. A pena, se possuir o fim de prevenção geral, será obviamente intimidativa, pois deve possuir eficácia de afastar todos em geral da futura ação delitiva. A nosso sentir, a prevenção geral é inadequada por sua generalidade, mesmo que o Estado tenha especial interesse na intervenção dos processos sociais como única maneira de remediar a questão, pois o que se cuida é de diferenciar os processos e controlá-los em sua especificidade. Nos tempos contemporâneos, a prevenção especial assumiu particular relevo delegado pelo positivismo. O fim da pena seria evitar a futura criminalidade do apenado e, para tanto, deveria adequar-se à sua personalidade, atuante pela intimidação e pela emenda, se possível a inserção social, ou até pela eliminação quando ineficaz a adaptação social. O fim da pena estaria ligado à prevenção futura de forma a servir de exemplo aos demais, mediante a inserção ao meio social e colocando o infrator em condições de não reincidir. Não se pode olvidar que há condenados que não necessitam ser educados, bem como há os incorrigíveis.


13. Todavia, deve-se fazer a distinção nos tempos contemporâneos entre (a) a prevenção geral negativa, que é a tradicional, que obra de forma indiscriminada sobre a macrossociedade como um freio inibitório à realização de injustos penais, e (b) uma prevenção geral positiva, em que a pena exerce na macrossociedade seu poder, não inibidor de tendências e impulsos delitivos, mas sim de reforçamento, dando confiança e adesão social, no plano normativo, devendo os participantes conduzir-se com patamar em uma situação institucionalizada de segurança coletiva e confiança mútua. Acorda-se a consciência do indivíduo do desvalor do atuar violador da norma e se reafirma a presunção da manutenção dos bens jurídicos. Aflora a indagação de se a prisão pode melhorar alguém, cuja resposta é sabidamente negativa, por suas características e efeitos deletérios. O que sustenta a prevenção especial positiva é a legitimação de uma função positiva de melhoramento do encarcerado. Zaffaroni defende a impossibilidade estrutural sob o manto das ideologias de ressocialização, reinserção, reincorporação, deslegitimadas diante dos dados da ciência social. Em síntese, a pena nunca será um bem para quem a sofre. Como já foi observado, as teorias positivas da pena se dividem em absolutas e relativas, sendo que estas se dividem em de prevenção geral e prevenção especial; as de prevenção geral, por sua vez, se subdividem em positivas (mantêm a fidelidade ao direito) e negativas (atemorizam a população vulnerável); as de prevenção especial também se subdividem em positivas (socialização) e negativas (inoculação, eliminação). O retorno de Von Liszt, ressuscitando a ideia da ressocialização e reeducação do apenado, bem como a intimidação daqueles que não necessitam ser intimidados e a neutralização dos incorrigíveis, situa-se no tripé: a) intimidação; b) correção; c) inoculação.


14. A denominada prevenção especial objetiva tão-só o indivíduo que já delinquiu não volte a reincidir. O objetivo alvo, o delinquente, embora tenha realizado injustos de grave potencial ofensivo, diante de seu perfil (ocasionais), não exige reeducação ou intimidação, muito menos inoculação, pois a possibilidade de reincidência é nula. Na verdade, retorna-se aos séculos XIX e XX, com a direção do programa pelo juiz penal no momento da aplicação da pena, por meio da sentença penal, que será realizado no processo jurisdicionalizado da execução penal, com a finalidade de alcançar a imaginária harmônica integração social do condenado. Diante da sabida ineficácia corretiva e dos efeitos deletérios da própria pena de prisão, repete-se a farsa com a frase simplista: “Ainda não temos nada melhor do que a prisão”. Nos anos 60 e 70 do século passado, a prevenção especial perdeu significado, como se observa na França e na denominada escola da nova defesa social, de Marc Ancel (1902-1990). A ressocialização do autor do injusto penal foi bem recebida pelo Código Penal alemão de 1966 (ideologia do tratamento) que dominou a doutrina até os anos 1970, quando então foi constatado não ter atingido os resultados esperados. A Reforma do Código Penal alemão de 1975 traduz as modernas tendências de política criminal, com a substituição progressiva das penas privativas de liberdade de curta duração, a redução de sentenças condenatórias, a isenção de penas e a institucionalização de estabelecimentos de terapia criminal. As teorias unificadoras ou mistas (ecléticas) buscam a conciliação pela via unitária, isto é, o injusto é o fundamento da pena pela qual se persegue um fim que está fora de sua própria órbita. Com o fracasso das teorias retributivas surgem as teorias mistas. Seu maior mérito estava na conciliação das exigências retributivas e preventivas, dominantes ainda no debate atual do início do século XXI, unindo o fundamento e o fim da pena, deixando de lado a prevenção especial com a socialização do autor típico. As teorias de união (Spielraumtheorie e Rahmentheorie) procuram equacionar os princípios da culpabilidade e da prevenção, perdendo espaço a intimidação e a inoculação, propostas por Von Liszt, dando lugar às posições de Schmidhäuser (1920- 2002) (teoria da diferenciação) e Claus Roxin (teoria dialética da união). A proporcionalidade entre o injusto e a sanção é a primeira causa que se deduz do fundamento retributivo da pena. As teorias mistas ou de união podem ser anotadas: a) a teoria neo-retributiva-preventiva; b) a teoria diferenciadora; c) a teoria dialética da união; d) a teoria modificadora da união. A teoria mista retributiva-preventiva defende que a pena busca ao mesmo tempo punir o infrator e prevenir novos injustos penais. Não se pode deixar de registrar que as teorias ecléticas são o produto da longa controvérsia científica que objetiva unificar os fins na busca de uma solução pacificadora de equilíbrio. Critica-se na direção de que ao procurar agradar a todos não consegue agradar a ninguém.


15. A teoria unificadora dialética é desenvolvida por Roxin (prevenção geral positiva de natureza relativa), para o qual são fins da pena, simultaneamente, a prevenção geral e a prevenção especial, devendo excluir-se a retribuição como objetivo-alvo da pena (nivela os pontos de partida individuais mediante um procedimento de limitação mútua). Para ele, a teoria unificadora dialética busca evitar exageros unilaterais e dirigir a pena para vias construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante restrições recíprocas. Diz que pode denominar-se dialética quando acentua o caráter antitético dos diversos pontos de vista reunidos em uma síntese. Uma teoria da pena deve ter por objetivo corresponder à realidade. Em Direito Penal só poderá fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido da prevenção geral, se preservar a individualidade de quem está sujeito. A pena serve aos fins da prevenção geral e da prevenção especial, limitada na medida da culpabilidade. A teoria modificada de Gössel vê entre os fins da pena, enquanto consequência jurídica de caráter retributivo, uma missão de reafirmar o Direito, podendo “consignar-se qualquer tipo de prevenção”. O caráter retributivo é o elemento definidor da pena e as sanções jurídico-penais não são clamadas a cumprir só uma função de retribuição ou de prevenção; hão de cumprir fins corretos e adequados. Nos tempos atuais, os penalistas se dedicam a procurar encontrar alternativas para a teoria dos fins da pena. Acabaram por rejeitar a tese unificadora e a chamada (d) teoria da prevenção geral positiva ou integradora, que é o produto das insatisfações e de um discurso dialético. Encontra-se na teoria da prevenção geral positiva duas vertentes: (a) a prevenção geral positiva fundamentadora e (b) a prevenção geral positiva limitadora. No que tange à teoria da prevenção geral positiva fundamentadora, não se pode esquecer o papel de Welzel ao afirmar que o Direito Penal, marcado pela natureza ético-social, cumpre neste campo papel mais relevante do que o da tutela dos bens jurídicos. O Direito Penal atuaria com a função de garantir a orientação das normas jurídicas, as quais procuram estabilizar as experiências sociais; enfim, uma orientação ao atuar do cidadão no campo do que deve observar em suas inter-relações sociais. As críticas a tal vertente partem de Santiago Mir Puig (1947-2020). Declaram que a tese é desnecessária e que não explica por que a estabilização de expectativas deve ser presidida pela imposição de um castigo.


16. Baratta chega a afirmar que a tese é conservadora e legitimadora do sistema atual. Para Mir Puig, a teoria sistêmica é um produto retributista. A questão da função de prevenção geral positiva gerada do Direito Penal simbólico resulta das pressões corporativistas, sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, alimentadas pela mídia e repercutidas nas redes sociais, na busca de “soluções imediatas”, e contemplativas no campo econômico e ecológico. Diante da insustentabilidade da prevenção geral negativa, que defende no plano político e teórico, sustenta Zaffaroni, a legitimação das penas cada vez mais graves, o que jamais alcançará a dissuasão de uma sociedade em que o conflito é estrutural, e, desta forma, não tem efeito dissuasivo, mas estimulante a uma maior elaboração delitiva; a prevenção geral positiva produziria um efeito positivo sobre os criminalizados, não através da intimidação, mas como valor simbólico reforçador de sua confiança no sistema social, em geral, e no penal, em particular. Conclui, que “el delito seria una suerte de mala propaganda para el sistema, y la pena seria la forma en que el sistema hace su publicidad neutralizante”. Para parte da doutrina, a teoria não constitui uma alternativa que atenda às exigências da teoria da pena. Claus Roxin advoga que as decisões valorativas político-criminais introduzem-se no sistema do Direito Penal, de tal forma, que a clareza e a previsibilidade nada devam à versão formal-positivista de Von Liszt. A submissão ao direito e à adequação a fins político-criminais não podem contradizer-se. Lembra que o positivismo, como teoria jurídica, caracteriza-se por banir do direito as dimensões do social e do político. É a política criminal que se importa com os conteúdos sociais e os fins do Direito Penal, encontra-se, pois, fora da esfera de âmbito do jurídico. Em seu desenho descritivo, aponta que a teoria finalista da ação, ao voltar-se para as estruturas ônticas e para a realidade social, fez a aproximação da dogmática penal da realidade e desenvolveu a teoria da ação e do tipo a plasticidade de verdadeiras descrições dos acontecimentos. Conclui que o finalismo, por via do seu método lógico-sistemático, criou um sistema que se diferencia da tripartição clássica positivo-causal, mas não há espaço autônomo a diretrizes político-criminais na dogmática. Dá relevância ao campo da metodologia jurídica: a) e ordem e clareza conceitual; b) prioridade à realidade; c) orientação político-criminais. Sobre as reflexões científicas e de consideração para a construção sistemática cita Goethe: “Antigos fundamentos se honram, mas não se pode abdicar do direito de, em algum lugar, começar tudo outra vez”. Roxin escrevia, em Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal (1973), que a sistemática do Direito Penal não estava esgotada em suas possibilidades, o que necessita é ser repensada, desde os seus fundamentos - estamos sempre no recomeço.[4]


17. Já no que tange à prevenção geral positiva limitadora, seus defensores expressam-se pelo limitar o poder punitivo do Estado. Para tal vertente, o Direito Penal atuaria como uma forma de controle social, caracterizado pela sua formalização. A pena deveria manter-se nos limites do Direito Penal do ato e da proporcionalidade e tão-só ser composta através de um procedimento presidido pelas garantias constitucionais. Giza Roxin, na aplicação da pena está inscrita a ideia de prevenção geral (positiva ou negativa) e especial, pois intimidará o apenado diante da possibilidade de reincidir e manterá a macrossociedade mais segura durante o seu cumprimento. Cita-se Hassemer: através da pena estatal não só se realiza a luta contra o delito, como também se garante a juridicidade, a formalização do modo social de sancionar o delito. Assim, a prevenção geral positiva seria a reação estatal diante dos atos puníveis, protegendo, ao mesmo tempo, a consciência social da norma. A ressocialização e a retribuição seriam esses instrumentos de realização do fim geral da pena: prevenção geral positiva. Hassemer abandona uma prevenção geral intimidadora (prevenção geral negativa) e se inclina por uma prevenção geral ampla (prevenção geral positiva ou integradora) que só venha a perseguir a estabilidade da consciência do Direito, buscando converter o Direito Penal em um dos controles sociais. Jakobs defende a prevenção especial positiva ou integradora, com um caráter absoluto (reafirmação da consciência do Direito) que não se diferencia do retribucionismo, pois a pena supõe o exercício na confiança na norma, na fidelidade ao Direito e na aceitação das consequências. Logo, a teoria da retribuição deveria ser observada tão-somente em relação ao princípio da proporcionalidade da pena diante da culpabilidade do autor do injusto. O critério de proporcionalidade entre o injusto e a pena, embora historicamente sempre tenha sido a justiça, passa a aproximar a retribuição da prevenção especial e geral. Nunca é demais reafirmar que, na aplicação feita pelo juiz, a pena não pode ultrapassar os limites do justo (culpabilidade e proporcionalidade). O fim da prevenção especial perdeu o seu conteúdo puramente naturalístico. A função da ameaça é per se intimidativa e se dirige erga omnes aos destinatários da norma.


18. Em tema de ressocialização, discute-se a teoria do Direito Penal voltado para as consequências. Assim, deveria questionar não só a proteção aos bens jurídicos, mas também voltar-se à tutela dos cidadãos predispostos à sua violação. Salienta Winfried Hassemer que o Direito Penal voltado às consequências deveria constituir-se em um Direito Penal da recuperação e do tratamento, um verdadeiro Direito Penal de ressocialização. Imagina-se que o fim da pena em ultima ratio é a reintegração do infrator à macrossociedade, estando a pena privativa de liberdade ligada visceralmente à execução penal. Portanto, a reinserção com sucesso para evitar a reincidência depende do binômio Estado-cidadão, depois de um correto processo de execução penal. Há que se exorcizar o estilo de vida para que o apenado fique adequado aos modelos normativos da macrossociedade, sob pena de prostrar o ideário da “ressocialização” (inserção e adaptação social). Cumpre lembrar que a ideia abolicionista surgiu na Holanda com destaque da proposta de Louk Hulsman (1923-2009), em Penas Perdidas (1982). Alessandro Baratta sustentou que a sociedade deve estar estruturada segundo as divisões de classe para poder garantir as necessidades reais dos direitos humanos, ao que Ferrajoli aduz que só por via de uma política criminal alternativa crítica ao sistema, deslegitimado e negando eficácia de instrumento punitivo estatal poder-se-ia observar a improcedibilidade da abolição da prisão, diante da utilidade e necessidade da paz e tranquilidade social. Os sonhos abolicionistas procuram abolir as prisões e o Direito Penal, substituindo-os por intervenções comunitárias e uma justiça social popular menos desigual e mais justa, onde o Direito Penal ao prestigiar a classe social dominante e mais elevada é seletivo e reforça a desigualdade. Imaginam a abolição do Direito Penal, através da desconsideração e despenalização, extinguindo-se os estabelecimentos penais e adotando-se as garantias iluministas. Lembra-se a indagação de Francesco Carnelutti (1879-1965), em sua Teoría General del Reato (1933), “no sé si algún dia La humanidad llegará a La perfección que le permita abolir la pena”. O campo de atuação do Direito Penal se adequa ao quadro da estabilidade das sociedades contemporâneas. A teoria agnóstica da pena sustenta não possuir qualquer função ou justificação jurídica, sendo tão-só um ato político de poder, visto que não se pode justificar o injustificável. Zaffaroni, ao abordar os elementos orientadores e a teoria negativa da pena, escreve que “um conceito negativo ou agnóstico de pena significa reduzi-la a um mero ato de poder que só tem explicação política”. Daí “o único exercício de poder que o Direito Penal pode programar (decisões das agências jurídicas) não deve exceder o âmbito do reduzido poder Jurisdicional exercido sobre a criminalização secundária”. Repetindo Tobias Barreto (1839-1889), “o conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político”.


19. Para Zaffaroni, “as teorias manifestas da pena legitimam, junto ao poder punitivo, a orfandade da vítima e o consequente direito do Estado a protegê-la” (mera proteção discursiva). Conclui que isolar as funções reais da pena do poder punitivo é construir uma formalização jurídica artificial: “o maior poder do sistema penal não reside na pena, mas sim no poder de vigiar, observar, controlar movimentos e ideias, obter dados da vida privada e pública, processá-los, arquivá-los, impor penas privativas de liberdade sem controle jurídico, controlar e suprimir dissidências, neutralizar as coalizões entre desfavorecidos”. A pena, como a guerra, não possui fundamento jurídico, é um fato real, produto de um ato de poder. Seria irracional exigir-se o impossível. A nosso aviso, a “ideia de ressocialização” como um dos fins da pena deve ser entendida na execução penal como o exercício de medidas de apoio ao apenado e à modelagem de seu comportamento no curso de execução, buscando incentivar a autodisciplina e a redução dos fatores deletérios do próprio mal da pena, que é a prisão. É necessário que a macrossociedade não atue utilizando seus agentes de controle para manipular permanentemente o ódio e a vingança contra o apenado, estimulando o processo de agressão recíproca (estado de guerra). Há necessidade de ser observada a realidade que o Direito Penal voltado às consequências só pode operar com a sua integração à Criminologia. Günther Jakobs (1937) destaca que a pena deve ser necessária para a manutenção da ordem social, pois, sem tal necessidade, seria um mal inútil. Sustenta, em resumo, que a pena é útil para a consecução de seus fins sociais se não perde a sua funcionalidade. A pena representaria a reafirmação do ordenamento jurídico e não as finalidades úteis da norma. Para tal segmento, a teoria da prevenção geral positiva não é relativa ou utilitarista, mas uma releitura da teoria absoluta hegeliana, punindo-se para reafirmar o conceito de justiça. De forma simbólica, o fim da pena seria o restabelecimento da ordem macrossocial. No modelo de Roxin há adesão à prevenção geral positiva limitadora e não à prevenção geral integradora, que é relativa, ficando a prevenção limitada pela ideia de subsidiariedade, uma função dentre as demais funções, excluída a prevenção geral, ao passo que Jakobs legitima o ordenamento jurídico e as expectativas sociais numa perspectiva puramente normativa.


20. No campo da modernidade, fala-se em um Direito Penal funcional para a edição de uma política criminal em contraponto com a dogmática abstrata. Hoje, nas bases mínimas, não podem deixar de constar as garantias processuais do Estado de Direito e um correto processo de execução penal desmistificando o ódio ao autor do injusto penal, buscando a possibilidade de futura inserção do egresso, produto da marginalização macrossocial ativada pela microssociedade, à macrossociedade (ainda que utópico). Sublinhe-se, por último, que parte da doutrina vislumbrou na prevenção geral positiva um retorno às concepções puramente retributivas, seguindo estruturalmente a postura kantiana. As propostas buscam uma estabilização social da norma e a confiança na mesma. Tal postura não adota as propostas iniciais retribucionistas, o limite da culpabilidade desaparece, pune-se o rebelar-se contra a norma ou a lesão a um bem jurídico, a qual pode conter qualquer conteúdo de valor. Roxin fala em prevenção geral positiva desde postulados garantistas, ao reconhecer a finalidade da pena como prevenção geral positiva, na busca da paz pública e na reafirmação das regras de convivência, sem perder sua função integradora, que se desenvolve com a prevenção especial, com a culpabilidade como limite da pena. Não se pode limitar as finalidades da pena a um único objetivo. Todas as ideias, estudos e teorias levam à conclusão de que são três os fundamentos do direito de punir: a) a defesa social; b) o ideal de reforma do infrator; c) a intimidação geral e especial.


21. A pena tem o caráter aflitivo em razão de privar o apenado do efetivo exercício de seus direitos e bens fundamentais e torna-se retributiva na proporção em que, na sua qualidade e quantidade, teoricamente representa o desvalor da lesão ao bem jurídico praticado pelo autor do ato punível. Aí, constitui-se em um mal (resposta estatal) que deverá ser suportado pela opção feita pelo autor diante de obrar reprovável perante o conjunto normativo. É um instrumento hábil utilizado pelo Estado diante da intolerabilidade comportamental para garantir a paz social. A pena se legitimaria por seus fins privativos e tutelares e se justificaria por sua necessidade, sendo seu fundamento observado pelos endereços ético-social, utilitário, político e sociocriminológico. Hodiernamente, desaparece o caráter utópico da ressocialização que através do tratamento objetivava a recuperação absoluta do apenado. Efetivamente, constitui-se em uma etapa romântica do penitenciarismo, partindo da própria imprecisão terminológica (penitência). Indaga-se se o Estado teria o direito de enclausurar pessoas para manipulá-las, tendo como escopo torná-las dóceis à sua postura. É certo que a periculosidade (risco alto de conflito) se constitui na possibilidade da prática de ato futuro que venha a lesionar o ordenamento jurídico. A questão vaga em um mar de imprecisões e conduz à violação do princípio da reserva legal. As ideias nucleares de periculosidade e ressocialização foram objeto de reparos diante dos deveres de solidariedade impostos à macrossociedade, assumindo os riscos do desviante, como a periculosidade per se é degradante ao não referenciar a condição da pessoa humana, adotando uma postura negativa igual ao das coisas e animais. A pena em sentido lato é sempre um castigo que deve ser aplicado e suportado, observados os direitos e deveres do apenado, pela violação do ordenamento jurídico, na medida e proporcional à sua culpabilidade, diante do que o infrator livremente optou realizar, restabelecendo-se a paz jurídica. Argumenta-se que a Reforma de 1984 manteve como linhas estruturais básicas o binômio: punir e humanizar. A nosso aviso, a pena busca, mediante condicionamentos naturais e uma metodologia de informação, conscientizar o apenado a aceitar os valores da macrossociedade, separando os questionamentos que possam traduzir um impasse existencial entre o delinquente e os valores impostos e aceitos pela comunidade social dominante.


22. A inserção social é a finalidade da pena em idealístico e tem merecido justas críticas dos penalistas. Contudo, é inegável que é o objetivo mais importante, desejo em relação ao fiel cumprimento da punição (vedado o excesso e o desvio), e propiciar a integração do condenado ao convívio social seria a própria aspiração da macrossociedade. Submetido ao regime penal, a punição representa um meio teórico de adequação do apenado aos valores sociais dominantes, isto é, cumprida a pena imposta, o condenado deveria estar em condições de viver em liberdade sem entrar em conflito com os valores jurídico-sociais. Infelizmente, a prisão é deletéria e não reeduca, razão pela qual a taxa de reincidência destrói a ideologia da recuperação. Na verdade, nossas prisões estão desaparelhadas e pouco ou nada oferecem ao apenado para motivá-lo à mudança de atitude. Se os indivíduos colocam em risco a proteção da massa social, o objetivo-alvo primeiro da pena é procurar preservar a segurança pública – a defesa social (eficácia dissuasiva). Quando os antigos penalistas usavam o clichê de que a pena tinha a natureza retributiva e a finalidade preventiva, equivale a repetir que seus fins são retributivos e preventivos. A questão carece de significação política, pois a legislação penal é expressão de uma determinada organização política. A punição se converte em uma arma de terror que petrifica os homens e perpetua o gozo e os benefícios do poder. Os conceitos de retribuição e prevenção constituem uma verdadeira e perfeita antítese, sendo, pois, inconciliáveis. A maioria dos tribunais ainda sustenta que a verdadeira função da pena é a retribuição, senão a manutenção da ordem jurídica. Em outras palavras, a proteção da sociedade dominante contra todas as condutas que coloquem em risco a sua estrutura e existência, a preservação dos bens jurídicos, com o objetivo de defesa social. Tal defesa atua pela prevenção geral, isto é, através da chamada eficácia dissuasiva pertinente à ameaça da pena, que seria o fim especial da sanção. É uma velha postura simplista para mascarar os problemas de fundo pela fantasia das palavras. Diante da prevenção especial todo condenado (portador do desvio social que demanda correção) necessita ser adaptado, educado, inserido, socializado, isto é, reformado, para ser reinserido no modelo da macrossociedade. O Direito Penal possibilita um conhecimento adequado que permite um trato inteligente, oportuno e profícuo da realidade. Mir Puig sustenta que num Estado social e democrático deve-se garantir a proteção real e efetiva a todos os cidadãos, prevenindo comportamentos lesivos para os bens jurídicos, estes entendidos como possibilidade de participação nos sistemas sociais fundamentais, à medida que os cidadãos os considerem graves (intoleráveis).


23. Portanto, o Direito Penal orienta a função privativa dentro dos princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos de proporcionalidade e de culpabilidade. O modelo de prevenção especial foi abandonado, entre os anos 1960 e 1970, em razão da ineficácia da ressocialização e da realidade das prisões no mundo (depósito de presos). Aduza-se que a pena considerada como meio de prevenção especial encontra dificuldades sob diversos enfoques, e Carrara já advertia, no século XIX, que os propósitos de punir, curar, reeducar e corrigir são absolutamente incompatíveis. O mito da ressocialização está findo (delinquentes do colarinho branco). A pena é um instituto jurídico em que a resposta penal deve ser proporcional ao juízo de reprovação do autor pela prática do ato punível. Assim, considera-se a pena justa aquela oportuna e necessária em que o juiz penal mantiver na sua aplicação e execução a devida e racional proporcionalidade técnica em relação à natureza, à quantidade e ao desvalor do ato. A proporcionalidade da pena é o grau de reprovabilidade do obrar diante dos parâmetros normativos como exigência fundamental do sistema de justiça. A pena teoricamente não se constitui intrinsecamente em um mal, pois limita a esfera jurídica dos condenados à punição e como tal deve ser sentida e consequentemente suportada; porém sua essência executória está na possível reinserção futura do infrator ao meio social aberto por adquirir normas de cultura e se ajustar aos padrões sociais impostos. É quase pacífico que a justificação da pena tem seu endereço na necessidade da manutenção do controle social, objetivando a paz pública. Desde Francesco Antolisei (1882-1967), em que o ius puniendi se constitui em uma ferramenta estatal necessária para impor a vontade do Estado sobre os seus súditos, até Maurach, que sustenta que a renúncia do poder punitivo é a renúncia da própria existência. Roxin defende a necessidade da pena quando justificado que o comportamento reprovável prejudique de maneira insuportável a coexistência, livre e pacífica, dos cidadãos e outras medidas jurídicas ou de política criminal não sejam adequadas e satisfatórias. Aliás, a pena deve ser necessária para uma finalidade específica, cujos critérios de necessidade vão desde a “(re)integração de ordem moral através do sentido de justiça”, defendido por Petrocelli, ou no viés dos tradicionais retributivistas, como Welzel e Cuello Calón. Alessandro Baratta (1933-2002), ao escrever sobre funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal, declara que a função de preservação quando negativa, que visa à dissuasão dos potenciais infratores, ainda é atuante sob duas formas alternativas: a) a neutralização do violador da norma (incapacitation); b) a intimidação específica (specificdeterrence).


24. A teoria da ressocialização é resumida em transformar o condenado, tornando o apto a uma vida em liberdade sem delitos. Conclui o saudoso professor da Universidade de Sarlando que a impunidade não é exceção, senão a regra da justiça penal, e que a porcentagem de violadores da norma neutralizados com a intervenção da justiça penal é baixo, razão pela qual se poderia questionar os custos sociais de sua intervenção. É básico, senão crucial para o aspecto teórico, se ter em conta o sistema de justiça penal e que a coexistência de um neo-retributismo constitui um símbolo de fragilidade e até de crise potencial do Direito Penal das consequências. Conclui Baratta que em um modelo de Direito Penal racional haveria um equilíbrio entre a realização de funções simbólicas e funções instrumentais. Com acerto, diz, ao criticar a inutilidade das penas, que implica uma concessão instrumental do Direito Penal liberado da ilusão da instrumentalidade das penas.O Direito Penal, como já foi por nós tantas vezes dito, não pode ser utilizado como instrumento distorcido ao exercício do Poder, olvidando que seu papel é de ser uma sentinela a serviço dos valores comunitários e individuais. Na prática, no quadro brasileiro, observa-se que é uma constante o Governo Federal, através do Ministério da Justiça, negar verbas aos Estados-membros da Federação para a manutenção e construção de novas unidades prisionais compatíveis com o sistema progressivo, a fim de poder recolher os condenados para o cumprimento das penas privativas de liberdade que lhes foram impostas, em unidades próprias, para o regime inicial de cumprimento fixado na decisão judicial final, em condições condignas à natureza humana (na maior parte dos Estados não há casa de albergado, o que significa não se cumprir a pena em regime aberto). Ora, tal atitude irresponsável é geradora da cultura da impunidade pela inexistência de recolhimento de condenados com as penas transitadas em julgado, colocando em risco diário a segurança social e naturalmente retroalimentando o sistema de reincidência pelo credo da impunidade, ponto básico para a hiperdramatização da criminalidade. De outro lado, a própria sociedade não investe recursos pela velha mentalidade de não jogar dinheiro público em incinerador de lixo.


25. Para que a crise da violência urbana, nos grandes centros metropolitanos brasileiros, e rural, possa ser repensada, é necessário que haja uma conscientização popular e uma vontade política de construir um sistema prisional moderno, seguro e não-corrupto, pois são inacreditáveis as condições sub-humanas em que os condenados vivem nos depósitos de presos e xadrezes distritais ou em estabelecimentos penitenciários superlotados, na maior promiscuidade e misérias física e moral, alimentando, por meio de suas organizações criminosas de sobrevivência, planos e atos de ataque aos membros da microssociedade, para angariar fundos de sobrevivência carcerária (verdadeiras cooperativas de condenados). De nada valem os esforços isolados, momentâneos e não-contínuos do Poder Público para sufocar focos de criminalidade sem que exista uma política penitenciária séria em que o conjunto da sociedade se conscientize e participe eficazmente para reverter o quadro negro da crise. A pena como instrumento legal, pelo qual o Estado social e democrático de Direito impõe penas privativas de liberdade (reclusão, detenção e prisão simples), restritivas de liberdade (prisão domiciliar, limitação de fim de semana e prestação de trabalhos comunitários), restritivas de direitos (interdições e proibições), pecuniárias (multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores) e morais (advertência e admoestação), por meio de órgão jurisdicional competente, ao autor do injusto penal, objetiva a proteção dos bens jurídicos, reafirmando regras de convivência e por última via a manutenção do controle social, presente a culpabilidade como limite, a fim de assegurar a paz social, através da convivência harmônica dos cidadãos, através da convivência harmônica dos cidadãos. Nos modernos Estados democráticos se questiona quais os reais fins da pena, isto é, o que pode legitimar um sistema punitivo. Ferrajoli distingue entre fim e função da pena; o primeiro responde à indagação “de que serve a pena?”, e a segunda ataca a análise empírico-social descritiva sobre os efeitos da pena na macrossociedade; portanto, o fim da pena opera no plano do dever-ser, ao passo que a função da pena atua no plano do ser. Nos tempos contemporâneos há duas correntes fundamentais, garantistas e funcionalistas, crescendo a difusão das teses desformalizadoras ou de solução extrajudicial, bem como a adoção de ferramentas jurídicas importadas da common law.


26. Vê-se Roxin (sistema funcionalista aberto) defender que o fim da pena é a punição (tanto geral, quanto especial), não como prevenção intimidatória negativa, mas como prevenção intimidatória positiva (restaurar a paz social). Ao passo que Günther Jakobs (sistema funcionalista fechado), o Direito Penal deve ser eficaz ou de resultados e que tem como destinatário o grupo social para que se mantenha fiel ao direito. A pena imposta não pode ultrapassar os limites do justo. A medida da justiça é a utilidade, necessidade e oportunidade do encarceramento proporcional ao juízo de reprovabilidade, desde que observado o tempo de vida útil ou do pagamento patrimonial. Por sua vez, a prevenção especial perdeu seu conteúdo naturalístico puro de realização de processo de higiene social, em razão da modificação do conceito de homem e consequentemente de violador da norma, nas diversas versões doutrinárias. Nos dias atuais há uma tendência de a microssociedade proteger interesses vitais, o que é difícil em razão da própria estrutura injusta da sociedade, que acarreta comportamentos desviantes. O dilema é resolvido em favor da prevenção geral, pois a sociedade é mais forte do que o indivíduo, mas também porque o Direito Penal, como sistema de controle social último, está protegendo os interesses sociais, sendo assim, compreensível a prevalência da prevenção geral positiva. Não se pode olvidar que, na fase da execução da pena, seu conteúdo, justificação e função se situam na necessidade de fins preventivos, presentes a prevenção especial e a prevenção geral. De resto, a pena quanto ao seu fim é pluridimensional, ficando a dificuldade do aplicador e executor em dimensioná-la na coordenação e hierarquização entre si para atingir os seus múltiplos fins. Não é correto o aumento das penas cominadas a determinados tipos de ilicitudes penais tão-só para atender politicamente os reclamos da opinião pública, momentaneamente indignada por isolado tipo específico de criminalidade urbana (prevenção geral negativa). O autor não deixará de praticar um injusto penal porque o máximo e o mínimo foram aumentados, ou porque em tal tipo de injusto penal não cabe fiança ou liberdade provisória, e o seu cumprimento será em regime fechado. Tal postura mostra desconhecer as raízes da cultura do delito. O que tem valor intimidativo é a certeza da resposta penal, e a instauração do inquérito policial dá o primeiro passo à eficácia intimidativa da ameaça penal.


27. A conclusão realística no campo de conveniências teóricas é do reconhecimento da crise da pena de prisão e das medidas reeducativas e de reinserção social. Contudo, diante da exigência de controle social e proteção dos bens juridicamente tutelados em razão da intolerabilidade do conflito em função da preservação da paz pública, para cumprir fins de prevenção geral positiva limitadora, não se pode ainda (extrema ratio) aboli-la, mas procurar substituí-la, no possível, por penas alternativas à privativa de liberdade, cada vez mais, conscientizada a macrossociedade, alargando o seu espectro. Roxin, em sua conferência sobre “Transformaciones de la teoría de los fines de la pena”, propôs a diversificação dos aspectos preventivos da pena como um realístico modelo político-criminal, através da introdução de formas alternativas à pena de prisão e outras medidas que favoreçam a ressocialização, ou pelo menos reduzam os danos. A pena justa é a que é oportuna, necessária e proporcional. A pena incerta, indeterminada, fere o critério de proporcionalidade, razão pela qual é injusta. A pena será sempre aflitiva explicitando uma mensagem no processo de comunicação social advertindo o corpo social diante da violação das normas, servindo de proteção subsidiária e preventiva, geral ou individual, tanto dos bens jurídicos, como do controle social. A situação carcerária brasileira nos primórdios do século é caótica, todos estão cientes, as penas alternativas a cada dia aumentam o espectro de aplicação (princípio da salvação do inferno); quer para menores infratores, quer para adultos, o objetivo é encarcerar e evitar a fuga, em nome da paz pública. A sociedade usa a pena como ferramenta do exercício do poder e mantém-se contraditória em relação às políticas habitacionais, de saúde e educação, alimentando o trabalho informal pela crise do emprego. Assim, para o primeiro controle social usa a pena e o cárcere. Como se falar na inserção social do egresso?


28. Convenci-me de que nosso caminho, no século XXI, será no sentido de aumentar o espectro das penas e das medidas formais alternativas à pena de prisão, ao lado de uma política social realística e eficiente de inclusão social, pois o mal da prisão está na sociedade e o mal da pena está na prisão. O ponto fulcral situa-se no enfraquecimento gradual da estrutura social existente e nas forças que a sustentam, sem o crescimento simultâneo de uma nova ordem. É que, sem dúvida, os miseráveis cortiços e as favelas, construídos nos arrabaldes da cidade, desatendendo às necessidades humanas, e os arranha-céus erigidos nos grandes centros das metrópoles, não em resposta à necessidade econômica, mas como meros faróis de prestígio e alarde de poder, visualizam que os grupos e as classes sociais tendem a tornarem-se mais rígidos e mais estratificados. A competição entre desiguais tem sempre efeitos conflitantes e desmoralizantes, continuando a população carcerária, jamais inserida socialmente, massacrada pela miséria e pela opressão. A corrupção e a exclusão social degradam a dignidade da pessoa humana e os seus vínculos com o Direito. Baratta destaca a perda de legitimação evidenciada na expressa ambivalência entre a Criminologia e a política salientando que a normalidade do sistema penal e do respeito efetivo ao pacto social e, por consequência, da vigência da Constituição sublinhando a utopia da reformulação do pacto social que viesse a garantir a “inclusão dos excluídos”, pregando um Direito Penal normal que conduz a paz e não a guerra.[5] O cárcere não só gera e aperfeiçoa o delinquente como também, dramaticamente, o perpetua. Como a pena não ressocializa nem proporciona a inserção social futura, opera parcialmente a tutela dos bens jurídicos e o relativo do controle social, sem conseguir reduzir o conflito de interesses, para garantir a paz pública, cabe ao Estado a manutenção do controle social para garantir, diante do conflito, a tutela dos bens jurídicos e a paz social. Portanto, ainda a finalidade da pena seria em última instância do controle social. O Estado ao buscar o controle social pela via da pena só se legitima quando medida extrema diante da intolerabilidade do conflito, para garantir a não desestruturação da macrossociedade. Sabe-se que a prisão é deletéria: não educa, não socializa, não dá condições à inserção social, almejada no passado; portanto, a pena de prisão deve ser substituída por restritivas de direitos em maior escala, incentivando, pelo mérito, a progressão de regime e o livramento condicional, restringindo o inferno do cárcere tão-só em relação aos portadores de comportamentos desviantes de especial gravidade, intolerados pela macrossociedade, como forma de controle direto da segurança e paz social, através de uma intervenção garantista, assegurados os direitos humanos e as assistências diante de um Estado social e democrático de Direito.


29. Assim, devem-se reconstruir democrática e cientificamente mecanismos sobre a delinquência e a realidade social. Para que o Direito Penal possa obter a reconstrução radical de suas estruturas devem-se intensificar seus relacionamentos científicos com a criminologia contemporânea (crítica) e a política criminal. A relação interdisciplinar com a teologia deve evitar toda a “moralização” do Direito Penal, respeitando a unidade de cada ciência. O Direito Penal é um instrumento extremamente dócil nas mãos do poder. A realização da justiça e do bem é no sentido de fortalecer a manifestação do grupo dominante, pela violação dos direitos fundamentais do homem nos seus domínios político, social e econômico. O ponto central da nova defesa social é o encontro do equilíbrio entre a proteção da sociedade contra o delito e o respeito dos direitos da pessoa privada de liberdade. O controle social deve ser compreendido na relação de interação e nas concepções institucionais de uma sociedade. Sendo o controle social um reflexo integral da estrutura, o direito, neste aspecto, se torna peça angular, a começar, pelo fato de que o relacionamento social é regulado à medida que o homem interfere em seu processo. O delito é de caráter sociopolítico. A violência é parte integrante da sociedade. O homem comum recebe o estímulo integrado pela violência. Aceita, punindo-se a resposta quando foge aos padrões normativos, eticossociais pré-estabelecidos. Para isto, a eficácia preventiva das penas privativas de liberdade devem ser vistas em seu caráter aflitivo e intimidatório do indivíduo concretamente condenado do que em sua pretendida ressocialização. Com isto, não se quer dizer que não se deva prestar todo o tipo de amparo, inclusive as prestações sociais e econômicas para resolver seus problemas, sobretudo aqueles que o levaram a cometer o delito, eliminando qualquer fator ressocializador adicional. A crise da pena privativa de liberdade é precisamente a sua incapacidade para superar o caráter preventivo geral que está em sua origem. Prova da necessidade de sua revisão na busca de sistemas alternativos.[6] No quadro contemporâneo brasileiro, diante de um país ideologicamente dividido, reforça-se o desenho futurológico do mito da reinserção, diante do desajuste social e do medo do conflito, desestabilizando a paz social e a segurança pública. Assim, no sistema de freios e contrapesos, reforça-se a presença do Direito Penal nas sociedades contemporâneas.


[1] O liberalismo abarca o ocidente no século XIX, bem antes do advento das democracias contemporâneas, sendo que o direito ao voto veio a se expandir ao curso do século XX. Surgem os princípios liberais clássicos (direitos individuais, civis e políticos, secularismo e livre mercado). Os regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos acolhem-o. A democracia veio depois. O pioneirismo liberal instala-se em alguns governos através do consentimento de uma minoria que desfrutava de privilégio de plenos poderes jurídicos. O título de democracia liberal é uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para acomodar-se ao que se denominou de democracia de massas. Na esfera econômica passou a admitir as intervenções estatais, principalmente nos governos autoritários. A definição de liberalismo, como fenômeno histórico, oferece grande complexidade e dificuldades específicas. Sua história está diretamente ligada à história da democracia. Nenhum pensador liberal se opõe a que o Estado limite a liberdade natural ou o espaço de arbítrio de cada indivíduo. Há a preocupação de conciliar o máximo espaço de arbítrio individual com a coexistência dos arbítrios alheios, com fundamento no princípio da liberdade jurídica. De outro lado, limitar a liberdade natural, como um instrumento, o direito, quer seja expressão de um querer comum (Kant). O liberalismo no enfoque da interpretação filosófica reduz a liberdade individual, ao passo que o político pretende garantir as liberdades empíricas do indivíduo. Nicola Matteuccio, no Dizionariodi Politica, conclui que o pensamento político-liberal contemporâneo tem a consciência de responder aos desafios do socialismo. Aponta-se, provavelmente, que John Stuart Mill (1806-1873) foi o primeiro teórico do liberalismo a ressaltar no contexto da condição liberal do Estado, algumas constâncias colocadas pelo socialismo pré-marxista europeu, no sentido de uma repartição justa da produção entre os membros da sociedade e a eliminação dos privilégios pelo nascimento e a substituição gradual do egoísmo do indivíduo. Mill foi o precursor da ideologia liberal socialista. Vê-se na teoria do delito a herança do positivismo, cunhada por Von Liszt, um dos maiores teóricos do Estado de Direito liberal. Roxin, em sua crítica, diz que “O positivismo, como teoria jurídica, caracterizou-se em banir da esfera do direito as dimensões do socila e do político”. Completa: “A política criminal que se importa com os conteúdos sociais e os fins do Direito Penal, encontra-se fora do âmbito jurídico”. Roxin, em Política Criminal e Sistemas Jurídico-Penal, sustentava: “Atualmente, porém, a tarefa da lei não se esgota mais na função garantista”. [2] Na antiguidade, as regras de comportamento social eram controladas pelos membros das sociedades, que atuavam como órgãos de segurança pública, de caráter privado. O Estado era inerte e omisso, alheio a todas as ações, reações e contradições entre seus indivíduos, e a vingança privada não tinha limites. O “cálculo” da vingança já era um progresso e Ilhering diz que a vingança não conhece outra medida senão o grau puramente acidental e arbitrário de super excitação do indivíduo atingido. As legislações antigas são apenas a regulação do reflexo. “Olho por olho, dente por dente” – o ofendido não pode fazer mais mal a seu ofensor do que ele mesmo sofreu. A lei de retaliação está presente em toda a legislação punitiva (hebraica, grega e romana). Não há vestígios de um sentimento moral. A instituição penal, na sua raiz, destinava-se a dar satisfação ao homem que desejava vingar-se e a assegurar a reparação do mal causado. [3]Goffman, Erving. “Estigma”. Ed. Amortu, Buenos Aires, 1963; in “Internados”. Ed. Amortu, Buenos Aires, 1961. [4]ClausRoxin, Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, trad. Luís Grecco, Rio de Janeiro, Renovar, 2000. [5]. Alessandro Baratta, “La política criminal e ildirittopenaledellaconstituzione: nuovariflessioni sul modelo integratodellescienzepenali”, in Dei Delitti e delle Pene, Ed. Scientifiche Italiano, Napoli, 1985,10-20. [6] Francisco Muñoz Conde, Direito Penal e Controle Social, cap. V (Prevenção Especial x Prevenção Geral).


 

Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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