O autor sustenta que, toda a sociedade contemporânea, complexa como é, traz uma cultura em que há muitas tensões e inconsistência importantes. Com o crescente aumento de tamanho e de complexidade da sociedade, aparecem subculturas da responsabilidade de grupos ou estratos relativamente autônomos no seio da sociedade maior
Álvaro Mayrink da Costa[1]
1. O caráter aprendido e partilhado da cultura conduziu à sua identificação ocasional com o superorgânico ou com a herança social do homem. O primeiro termo, empregado por Herbert Spencer (1820-1903),[2] filósofo e antropólogo inglês, um dos representantes do liberalismo clássico, põe em destaque a relativa independência da cultura em relação ao império da Biologia e sua qualidade distinta como produto da vida social. A expressão “herança social” chama a atenção para o caráter histórico da cultura e, por conseguinte, para as possibilidades de crescimento e mudança; sugere a necessidade de analisar e compreender suas dimensões temporais. A cultura é, manifestamente, um conceito tão inclusivo que seus principais componentes devem ser identificados, rotulados, analisados e relacionados uns aos outros. Esses componentes podem ser agrupados, em linhas gerais, em três grandes categorias: a) instituições (regras ou normas que governam o comportamento); b) ideias (variedade de conhecimentos e crenças – morais, teológicos, filosóficos, científicos, tecnológicos, históricos e sociológicos); c) produtos ou artefatos materiais (que os homens produzem e usam no curso de sua existência coletiva).
2. Uma distinção entre as instituições é a que existe entre folkways e mores, conceitos empregados pela primeira vez pelo sociólogo pioneiro norte-americano William Graham Sumner (1840-1910). Um folkway é apenas a prática convencional, aceita como apropriada, mas sobre a qual não se insiste. A pessoa que não segue a regra pode ser considerada como excêntrica ou simplesmente como individualista irredutível que se recusa a se sujeitar à convenção. O homem que faz objeções à irracionalidade das roupas masculinas, por exemplo, e se escusa, em quaisquer circunstâncias, a usar gravata, está ignorando um de nossos folkways. Mores são as normas ou instituições moralmente sancionadas com vigor. A conformidade é imposta de várias maneiras, e a não-conformidade provoca desaprovação moral, e, não raro, uma ação positiva. É fácil dar exemplos: não matarás, não roubarás, amarás teu pai e tua mãe. Os mores são considerados essenciais ao bem-estar do grupo. A linha divisória entre folkways e mores nem sempre é fácil de traçar. Há uma espécie de série contínua, que vai desde as convenções ou costumes frouxamente observado aos impostos com maior insistência. As regras que governam o recato no trajar ou o consumo de vinho, por exemplo, podem ser de categorização difícil. Provocam certa desaprovação moral quando ignoradas ou violadas, mas, evidentemente, não acarretam a mesma sanção moral que a corrupção, o roubo, o sequestro, o estupro ou o homicídio. Além disso, há amplas diferenças nas atitudes de vários grupos sociais em relação a essas regras. A despeito da ausência de uma nítida linha divisória, os conceitos de folkways e mores possuem considerável valor heurístico.
3. Chamam a atenção para as dimensões os aspectos significativos das normas sociais, a sanção moral ligada a elas e a extensão em que são consideradas essenciais ao bem-estar social. Uma segunda dimensão das instituições nasce do contraste entre costumes e normas. Os costumes compreendem o uso há muito estabelecido, práticas que se tornaram gradativamente aceitas como formas apropriadas de comportamento: as rotinas de trabalho ou lazer, as convenções da arte da guerra, os rituais da observância religiosa, a etiqueta que governa as relações sociais, que são sancionados pela tradição e sustentados pelas pressões da opinião de grupos. As leis, por outro lado, são regras decretadas pelos que exercem o poder político e impostas através do mecanismo do Estado. Podem ter ou não a sanção da tradição. São características de sociedades complexas com sistemas políticos bem desenvolvidos; nas sociedades simples, sem instituições políticas distintivas e fontes reconhecidas de autoridade política, a norma aparece, quando aparece, apenas em forma embrionária. Nessa sociedade primitiva, o comportamento é principalmente regulado pelo costume, as novas regras tendem a emergir antes, gradativamente, do que por decretação formal, e sua imposição não é confiada a pessoas específicas, que operam através de um maquinismo governamental reconhecido.
4. A distinção entre costumes e normas atalha por folkways e mores. Alguns costumes têm as sanções morais características dos mores, ao passo que outros são convenções aceitas mais ou menos casualmente. Da mesma forma, algumas leis são amparadas por vigorosos sentimentos morais “não matarás”, ao passo que outras podem carecer virtualmente de qualquer amparo moral, a não ser o das atitudes e sentimentos que sustentam a conformidade normativa. A linha divisória entre costumes e normas, como a que divide folkways e mores, nem sempre pode ser facilmente traçada, sobretudo em sociedades primitivas, nas quais a estrutura política de que emerge a lei, e através da qual ela é decretada, se acha apenas embrionariamente desenvolvida. Até em sociedades mais complexas, as relações entre leis e costumes são frequentemente complexas, e as distinções não se estabelecem com facilidade. Algumas regras consuetudinárias podem ser encerradas em lei, como, por exemplo, as leis puritanas, cujo caráter legal persistiu, algumas vezes, depois de se terem modificado os costumes que deram origem à sua decretação. Ao contrário, regras politicamente decretadas obtêm, às vezes, a sanção tradicional, extralegal, processo claramente manifesto na história das atitudes e sentimentos. Os conceitos de costume e lei não abarcam todas as formas de normas sociais. Muitas instituições existem que não parece enquadrar-se em nenhuma categoria, malgrado sua aparente capacidade de inclusão. Os processos de operação das corporações e as regras de organizações voluntárias, não são, com poucas exceções, nem sancionadas pela tradição nem decretadas pelo Estado. Apesar dessas dificuldades, a distinção conceitual entre lei e costume chama a atenção para as diferenças importantes nas origens das instituições e nos métodos pelos quais são impostas. Há “instituições crescivas”, para usar outro termo tirado de Sumner, as quais apenas crescem, e aquelas que são decretadas e nascem formalmente em dado momento. Claro está que será necessária uma explicação diferente para a origem de uma “instituição cresciva” e para a origem de uma instituição imposta, embora esta última inclua não somente as leis, mas também as regras formais promulgadas por funcionários de organizações apolíticas. Os métodos de imposição tanto podem ser largamente informais limitados às exigências da tradição e às opiniões dos outros mais ou menos sutilmente, ou obviamente, expressas como podem ser limitados à maquinaria formal do governo, pode ainda, em vários graus, combinar ambos os mecanismos.
5. Na análise de instituições, essas categorias não esgotam a complexidade nem a variedade das normas sociais, nem seus diversos aspectos ou dimensões. Pois as regras que governam o comportamento incluem os padrões transitórios da última moda, os rituais simbólicos de observância religiosa e patriótica e as cerimônias que assinalam ocasiões significativas. Incluem, ainda, as regras do método científico, não sancionadas pela tradição nem pela imposição legislativa, senão pelo consenso dos cientistas, com base na razão, e os métodos empiricamente comprovados da empresa econômica racional. (normas racionais podem conter elementos tradicionais ou consuetudinários). As instituições explicam, em suas muitas formas, grande parte da regularidade de comportamento que se observa, devido ao fato de as pessoas possuírem esses padrões aprendidos e partilhados que suas ações parecem iguais ou, pelo menos, semelhantes. Tal afirmativa pode dar a entender um grau de conformidade que tipicamente não existe. As normas variam segundo o grau de conformidade que requerem, e dependem, até certo ponto, da natureza do comportamento aprovado ou defeso. O fato de que os homens ignoram ou violam as normas sociais indica que a conformidade também não pode ser considerada como estabelecida e também precisa ser explicada. Quando se esclarece o comportamento padronizado fazendo referências a definições culturais de comportamento apropriado ou esperado, deu-se apenas o primeiro passo na análise sociológica. As instituições não se impõem a si mesmas, e é necessário descobrir por que as pessoas se conformam às regras sociais, assim como averiguar como nascem as instituições e quais as circunstâncias que lhes explicam a persistência e as mudanças que nelas se verificam. Os indivíduos se ajustam às normas sociais porque são ensinados, aprendem os costumes e as convenções de sua cultura à proporção que se criam e educam. Além das ideias cognitivas e expressivas, as pessoas também aprendem e partilham os valores que lhes governam a vida, os padrões e as ideias pelos quais definem suas metas, escolhem um curso de ação e julgam-se a si e aos outros: êxito, racionalidade, honra, coragem, patriotismo, lealdade, eficiência. Tais valores não são regras específicas de ação, mas preceitos gerais a que os homens se sujeitam e a cujo respeito propendem a ter sentimentos vigorosos. Representam igualmente as atitudes partilhadas de aprovação e desaprovação, os juízos do que é bom ou mau, desejável ou indesejável, em relação a pessoas, coisas, situações e acontecimentos específicos. O termo valor é empregado às vezes para designar situações ou objetos definidos como bons, apropriados, desejáveis, valiosos, como: dinheiro, êxito, poder, fama do que sentimentos ou juízos partilhados. Os valores adquirem seu caráter em virtude dos juízos dos homens, mas deles se distinguem.
6. O que distingue os homens de outras criaturas é o desenvolvimento de uma linguagem simbólica, que vai além de sinais grosseiros, capazes apenas de transmitir informações limitadas ou servir de estímulos diretos à ação. Alguns autores restringiriam o termo cultura ao corpo de ideias, aos símbolos que os homens partilham e através dos quais estabelecem uma comunicação significativa, distinguindo-a, assim, do sistema ou da estrutura das relações sociais. Essa definição pode ser muito útil e parece estar logrando substancial aceitação entre os sociólogos. Permite que distingamos entre os sistemas simbólicos (linguagem, crenças, conhecimento e formas expressivas) e suas relações mútuas em contraste com o padrão organizado de interação entre indivíduos e grupos. Com os usos diferentes, naturalmente, surgem avaliações e significados diferentes. A divisão entre ideias, conhecimento, valores, crenças tradicionais e cultura material, é, de certo modo, arbitrária, pois para descrever plenamente artefatos culturais é necessário conhecer-lhes os usos, as atitudes tomadas em relação a eles e o conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para produzi-los.
7. Os componentes de qualquer cultura podem ser encarados como se consistissem em sistemas mais ou menos independentes, cada qual com sua estrutura ou organização própria. Há nos mores, assinalou William Graham Sumner, cientista social e liberal clássico, “uma tendência para a coerência”, e essa tendência semelhante se encontra em toda a cultura e dentro de seus componentes – instituições, valores, símbolos expressivos, corpos de conhecimentos, sistemas tecnológicos. Não há nada automático em relação a essas tendências; elas surgem porque os homens, caracteristicamente, tentam reduzir a tensão ou o conflito gerado por exigências ou ideias contraditórias ou competidoras, e manter alguma ordem em suas relações uns com os outros. A existência de padrões culturais é necessária tanto para o funcionamento de qualquer sociedade, como para sua conservação. A estrutura, isto é, o sistema de organização de uma sociedade é, em si, um aspecto da cultura. A compreensão do papel duplo dos indivíduos, como indivíduos e como unidade social, nos dá a chave de muitos problemas que perturbam os estudiosos do comportamento humano. A fim de funcionar bem como unidade social, o indivíduo deve assumir certas formas estereotipadas de comportamento, ou melhor, certos padrões culturais. Os padrões de comportamento que compõem a cultura devem ajustar-se uns aos outros de tal forma que evitem conflitos e impeçam que os resultados de um padrão de comportamento anulem os de outro. Todas as sociedades desenvolvem culturas que preenchem tais condições, embora os processos envolvidos no seu desenvolvimento sejam ainda obscuros.
8. A liberdade não é seu ponto de partida ou de chegada, acredita que o homem só será livre quando operar as transformações sociais que destruam as causas de exploração e de opressão. A ideia principal parece ser da funcionalização dos direitos, sustentando que os direitos não pertencem aos indivíduos, são concedidos aos cidadãos para que colaborem na tarefa e medida que se tornem necessárias. Os direitos fundamentais têm como patamar uma ética que reconheça a dignidade da pessoa humana como finalidade social a ser atingida. Em direção oposta, para a teoria democrática há coexistência simultânea situacionista e funcional partindo de uma perspectiva jurídico-política e situa-se numa posição constitucional; procurando determinar a razão constitucional do reconhecimento dos direitos fundamentais, isto é, tais direitos só podem existir se relacionados com a função pública democrática que desempenham. Portanto, desde o direito político de votar e ser eleito a até certos tipos de liberdades, como os direitos de expressão, reunião, manifestação, associação, formação de partidos, que encontra razão na formação da opinião pública, base do processo de construção orgânica democrática. Já a teoria do Estado social aceita os direitos de liberdade, não questionando o sentido próprio, não destruindo a dimensão subjetiva e pessoal das liberdades, só acrescentando o dever do Estado intervir para a realização prática dos direitos constitucionais.
9. A cultura e o fator criminógeno. Há inúmeras críticas à posição assumida por Donald R. Taft (1886-1970), em Criminology (1956),[3] quanto à defesa da teoria do conflito cultural. Sublinha que a criminalidade é deduzida da cultura de uma sociedade, e surge como produto da mudança social. O fator criminógeno de uma cultura está relacionado com as contradições internas, a decomposição das relações tradicionais ou o caráter duvidoso das estruturas herdadas, a validez de conceito de valor obrigatório. Procura explicar os altos índices de criminalidade pela riqueza de conflitos da sociedade americana, pela dissolução das estruturas e dos costumes. A explicação das baixas taxas de criminalidade feminina é fornecida pela liberação das cargas e o viver com posturas morais diferentes, desenvolvendo outros papéis. Já Sellin[4] desenvolve sua concepção explicando a criminalidade a partir dos conflitos culturais, não ao nível da totalidade da cultura, mas relacionando-o em sociedades e grupos parciais, com o que logo se afasta de Taft. Sustenta que, no transcurso do desenvolvimento, cada indivíduo se identifica com vários grupos sociais, que determinam e predispõem, por meio de normas de conduta, a que ele siga em situações próprias. Afirma que quanto mais completa for uma cultura, tanto mais provável parece seu o grande número de grupos cujas normas influem na conduta do indivíduo, e tanto maior é a possibilidade de que as normas desses grupos reincidam insuficientemente. Relevante em criminologia é o conflito cultural em situações que possam produzir discrepâncias entre normas legais e não legais. Um conflito semelhante é possível apenas em esferas marginais entre duas culturas vizinhas (v.g. quando um sistema determinado de normas ou quando uma lei se estende a outras culturas com normas até então distintas, ou quando membros de uma cultura imigram para outra). Sellin faz estudo sobre a criminalidade dos imigrantes, cuja participação na criminalidade convencional e não-convencional é relevante. As áreas urbanas onde há maior fragilidade na rede de proteção, como políticas públicas de saúde e educação é que se encontram as taxas de crescimento desproporcional da criminalidade, razão pela qual o Estado tem que direcionar os investimentos em educação, implementar políticas de saúde pública, qualificar profissionalmente, para gerar trabalho e renda. Há décadas que é do conhecimento geral que a política do enfrentamento apenas do “inimigo” não atinge os objetivos colimados. A violência é marcada pela ausência do poder público, a criminalidade ocupa o vácuo, atraindo pela ausência de opções ou oportunidades, os adolescentes para a criminalidade. A falta de vagas, as distâncias das residências para a escola e o trabalho, geram desístimulo, tornam os jovens desocupados, analfabetos, são cooptados para o delito. Taft indaga se o delito é um índice de progresso social, já que se sabe que o homem primitivo em seus próprios termos não era um delinquente,[5] bem como o delito é um indicador de desajustamento social, conclui-se que tais desajustamentos são mais evidentes nas sociedades em processo de acelerado desenvolvimento.
10. As sociedades primitivas eram relativamente estáticas. O citado criminólogo coloca a criminologia “como uma busca de uma filosofia de vida”, pois a prevenção cria condições adversas à prática delitiva (“Criminology in conjunction witlpther siences of beharlour ar least tends toward a deterministic position”), e sustenta que a família pode transmitir valores culturais, se as atitudes dos genitores estão em harmonia e são aceitas pelos códigos da comunidade geral. Aponta a família como agência de contágio criminógeno, sendo que três hipóteses podem ser alinhadas: a) os genitores preparam os filhos para o conhecimento de injustos penais; b) os filhos sem a atuação direta dos genitores adquirem, por imitação, os hábitos delinquentes de seus pais e de outros membros da família; c) os genitores perdem a direção de seus filhos e deixam que os mesmos adquiram um comportamento antissocial com o grupo que formam nas ruas (populações de rua). Não se deve olvidar de que os jovens com distúrbios emocionais também podem, mais facilmente, apresentar comportamentos delinquenciais, como: a) escape de uma tensão emocional; através de compensações na busca da trilha da aventura ou da notoriedade; b) mecanismo de reconhecimento do grupo, forma de revanche aos genitores; c) para a pura satisfação do ego; d) resposta ao desejo de independência; e, finalmente, expressão do desejo de punição. Alinham-se as privações físicas, quando um efeito de tensão emocional envolve um conflito moral, fora as revanches contra atitudes familiares injustas, mais ou imaginárias.[6] O delinquente é sempre um ser ativo contra o complexo de inferioridade, Realiza o delito na certeza de que não será descoberto. As ideias antropológicas de origem fenomenológicas próprias da teoria funcional do direito estavam orientadas para uma análise do comportamento humano dentro da sistemática do conceito jurídico de comportamento.
11. A corrupção política é tão difundida e persistente que parece um processo “normal” em muitas comunidades. Francis Stuart Chapin (1888-1974), sociólogo americano, professor na Universidade de Minnesota (1922-1953), aponta que os partidos políticos querem votos e os fundos necessários para obtê-los; os grupos financeiros querem proteção e privilégio; os elementos semicriminosos e criminosos da comunidade querem imunidades.[7] O medo da criminalidade é um quadro real que altera o cotidiano da vida da população, hipudratizada que pauta da mídia, na sua veiculação diária, cristalizando a banalização da violência. As áreas em elevado índice de risco de vitimização são objeto de desvalorização sócioeconômica e abandonadas pelo poder público, gerando um círculo migratório vicioso. A cultura do medo é um fenômeno complexo diante de um processo de propagação por alimentação contínua dos empresários do crime que vendem o discurso securatório (câmeras de vídeo-vigilância, alarmes, blindagem de veículos, venda de lanchas para perseguição contrabandistas e piratas, venda de o “caveirões ao estado para a invasão de favelas na busca de traficantes, produção de “bafômetros”, projetos de engenharia de segurança para residências e empresas, mais venda dos espaços criminais na mídia). O crime organizado, o tráfico de entorpecentes, os sequestros mediante extorsão, os delitos econômicos e os homicídios são as grandes indústrias que fornecem produtos para os quais há forte procura, mas que são publicamente censurados: o submundo é vulnerável e ao mesmo tempo pode pagar bem pelo privilégio de transgredir sistematicamente a lei. Por outro lado, a massa dos eleitores que censuram a corrupção política é muitas vezes indiferente à (em grande parte imperceptível) aliança diária entre os mundos dos negócios, o governo e o delito. A política constitui um interesse insignificante e periódico – enquanto para o político militante é uma atividade constante, para o homem de negócios é um fator crucial para suas operações (atitudes lobísticas e corruptoras), e para o chefe do crime organizado ou dirigente de negócios ilícitos é uma questão de sobrevivência.
12. Por trás do crime organizado existe toda uma rede complicada de ligações expúrias com setores da polícia, os políticos, os detentores de altos cargos do executivo, legislativo, e judiciário ou tribunais e os negócios idôneos. De especial interesse são as situações em que, externamente, a lei segue os seus trâmites e a comunidade de modo geral assiste à confirmação de seus preceitos institucionais; lembre-se de periódicas operações autrizadas pelo judiciário, feitas com prisões em massa e os delinquentes individualmente cumpriam penas e pagavam multas, retornando para suas atividades ilícitas.[8] Entretanto, a reação pública a este sistema difere acentuadamente da reação a “propinas” pagas a agentes públicos para consecução dos mesmos fins. O transgressor da lei continua em atividade; mas esta é registrada culturalmente como violação da norma. O mesmo tipo de encenação no cumprimento da lei se encontra muitas vezes no comércio desonesto, quando repetidas blitze são levadas a efeito com muito “estardalhaço” e produzem algum efeito real, por exemplo, no combate ao tráfico de drogas, desbaratando-o ou eliminando-o momentaneamente, e até mesmo reduzindo sua predominância, mas não conseguem suprimir a venda e o consumo constante. Também, neste caso, o caráter velado se estende ao sistema político.
13. É curial que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. A maior parte do problema dos limites dos direitos fundamentais se situa, na maior parte dos casos, como um conflito prático entre valores comunitários.[9] Deve-se configurar em cada direito fundamental um núcleo essencial de proteção máxima, que inclui as situações ou modos primários típicos de exercício de direitos. O sacrifício de cada um dos valores constitucionais em razão de salva guarda necessária e adequada de outros clientes não constitui verdadeiro conflito dicente da ideia de proporcionalidade em sentido estrito buscando a solução para a questão concreta. Os encarcerados não podem reclamar da liberdade de circulação ou do direito de reunião e manifestação livre de vontade, dos direitos políticos, mas devem ter direito à integridade fisico, religiosa, de petição e recursos. A inviolabilidade de correspondência é flexibilidade, mas não poderão ser submetidas a escuta no cárcere ou durante as visitas autorizadas. Tais direitos, na contemporaneidade, são relativos diante dos valores comunitários que aumentam a necessidade de restrição. Não se pode esquecer da presença dos direitos fundamentais em um Estado social e democrático de Direito, vedando a decretação de prisões temporárias e punitivas desfundamentadas e desnecessárias, invasão de escritórios de advogados, grampos telefônicos não autorizados e a presença midiática nas prisões que se tornam um show televisivo de hiperdramatização do delito nos jornais nacionais com uso abusivo das algemas, precipitando a condenação moral, pela antecipação rotulativa da imagem do mero suspeito.
14. Uma reforma que tente simplesmente suprimir os padrões ou tratar apenas o lado fácil da questão tem uma grande chance de fracassar. A ação social realística terá de levar em conta: a) muitos interesses investidos na fraude e na infração institucionalizadas; b) existência de uma “demanda”, que não se restringe às porções de classe da sociedade, de atividades e produtos ilícitos; c) dependência parcial da fraude padronizada de natureza particular das instituições dominantes. Poder-se-ía imaginar uma situação em que pessoas carentes de competência técnica e de honestidade administrativa[10] são eleitas para cargos de grande responsabilidade para a comunidade, com salários situados muito acima da faixa dos que são pagos na iniciativa privada. A maioria da população tende a desprezar a “política” e é indiferente ao governo; ao mesmo tempo, o governo exige muitos serviços e produtos da iniciativa privada, e esta é sujeita à fiscalização e a regulamentações. Se, além disso, as normas de relação governo-iniciativa privada são mal definidas, e vem a público um caso de “suborno”, uma reação frequente da população é “varrer os corruptos”, sem alterar a situação estrutural básica. Volta-se a recordar Enrico Ferri (1856-1929) em seus substitutivos penais que diante da ineficácia das penas como instrumento de defesa social, proponha os meios indiretos, que seriam nos campos da ordem política, econômica, religiosa e científica, tendo por escopo a prevenção indireta, que à época já denominava de plano de política criminal. A prova específica de conflito normativo é que exista pelo menos uma consciência dos padrões diferentes e uma tentativa de justificar o sistema estrutural. São manifestações de obscurantismo,[11] a intolerância e o autoritarismo. O liberalismo, corrente política com patamar na liberdade, confere direitos aos indivíduos, sendo fundamental a autonomia, a possibilidade de realizar escolhas individuais no campo da religião, associação, opinião e vida política. Nossa repulsa pelo neoliberalismo. Há limite à liberdade de expressão, ditado pelas leis e pela Constituição. Em conclusão, pode-se distinguir entre sistemas simbólicos (linguagem, crenças, conhecimentos, e formas expressivas) e relações em mútuos contrastes com o padrão organizado de interação entre indivíduos e grupos. Portanto, a divisão entre ideias (conhecimento, valores, crenças tradicionais e cultura material) é de certo modo arbitrária, pois para descrever plenamente artefatos culturais é necessário conhecer como produzi-los. Aduza- se que os componentes de qualquer cultura, bem como da cultura como um todo, podem constituir sistemas diferentes, cada qual com sua estrutura e organização própria. A compensação de papéis culturais é necessária tanto para o funcionamento de qualquer sociedade, como para a sua consumação, pois a organização macrossocial é em si, um aspecto de cultura.
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
[2] SPENCER, Herbert. Os Princípios da Sociologia, 3 volumes, 1874-1896.
[3] TAFT, Donald. R. Criminology, 3 ed., New York, The Macmillan Company, 1956.
[4] SELLIN, T. Culture, Conflict and Crime, New York, Social Science Research Consil, 1938.
[5] MALINOWSKI, Bronislaw. Crime and Cristom in Savage Society, New York, 1926.
[6] GLUECK, Sheldon and Eleanor. One Thousand Juvenile Delinquents, Cambridge, Harvard University Press, 1934; William Healy and Augusta F. Bronner, Delinquents and CriminaIs, Their Making and Ummaking, New York, The Macmillan Company, 1926, chap. 12; Willian Healy, and Augusta F. Bronner, New Light on Delinquency and Its Treatment, New Haven, Yale University Press, 1936, chap. 6; Robert M., Rebel Lindner, Without a Cause, New York, Greene and Stratton, Inc, 1944; Shaw, Clifford R, and Henry D. Mckay, “Social Factors in Juvenile Delinquency”, Report of National Commission on Law Observance and Enforcement, Part IV, Washington, 1931; R. L Burgess and R. L Akers, 1966, A Differential Association-Reinforcement Theory of Criminal Bahiavior. Social Problems, 14, 128-147; M. B Clinard, 1968, Sociology of Deviant Beviant Behavior. New York; Holt, Reinehart & Winston Third Edition; Cressey, D., 1964, Delinquency, Crime and Differential Association, The Hague: Marinus Nijhoff; Miller, W, 1958, Lower Class Culture as a Generating Milieu of Gang Delinquency, Issues, 14,5-19; Schafer S, 1969, Theories in Criminology: Past and Present Philosophies of the Crime Problem. New York: Random House; Schur, E, 1971, Labeling Deviant Behavior, New York: Harper & Row; Sellin, T, 1938, Culture Conflict and Crime. New York: Social Science, Res. Council; Shaw, C. And Mckay, H., 1970, Delinquency Areas. University of Chicago Press Shoham. S., 1963, Theoretical Boundaires of Criminology. Brit. J. Crim., 3, 230-236; Sutherland, E., 1949, White Coltar Crime, New York: Holt, Rinehart & Winston; Thrasher, F., 1927, The Gang: A Study of 1,313 Gangs in Chicago University of Chicago Press; Voss, H 1964, Differential Association and Reported Delinquent Behavior: A Replication., Social Problems, 12, 78-85.
[7] CHAPIN, E. Stuart. Contemporary American lnstitution, New York, 1935, 36-40.
[8] Citam-se as gangues centroamericanas (maras) constituídas na América Central, partindo-se da cultura das gangues trazidas pelos deportados no regresso a República de El Salvador, de Honduras e da Venezuela, na metade da década de 1990. São espécies de grandes grupos articulados e violentos, tendo fixado mais organizações no século XIX, principalmente no tráfico de drogas (vide trabalho dos criminólogos Ney Fayet Junior e Marta da Costa Ferreira, 4 ed, Elegantia Juris, Porto Alegre, 2019). No Brasil, encontramos em determinados bairros e estados o poder da máfia do tráfico de drogas e armas e da milícia, ligados a grupos de homicidas profissionais, que atuam nos bairros de renda baixa e proletário. Há necessidade de uma política repressiva, em curto prazo, aumentando as penas de participação nas organizações criminosas, vedando o livramento condicional com rigor na progressão de regime e implantação do RDD, aumentando o número de penitenciárias federais. Mudanças no Código Penal, de Processo Penal e Lei de Execuções Penais. Garantia das liberdades fundamentais em um Estado de direito.
[9] CANOTILHO, Gomes. Direito constitucional, 3ªed., Coimbra, Livraria Almedina,1983, 127.
[10] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Crimes contra a Administração Pública, 2 ed., Rio de Janeiro, GZ Editora, 2022.
[11] O termo iluminismo indica um movimento de ideias que tem suas origens no século XV, mas que se desenvolve especialmente no século XVIII, denominado por isso de “século das luzes”. O iluminismo é uma filosofia militante de crítica da tradição cultural e institucional, seu programa é a difusão do uso da razão para distinguir o progresso da vida em todos os seus aspectos. O sentimento de solidariedade entre os povos e o cosmopolitismo iluminista têm seu fundamento nesta concepção.
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