A desorganização social e o crime organizado
- Álvaro Mayrink *

- 6 de out.
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O autor constrói um diálogo entre Kai Theodor Erikson e Edwin Sutherland em um estudo da criminalização normativa do comportamento desviante e a reação social contra as organizações criminosas
Por Álvaro Mayrink
1. Kai Theodor Erikson (1931), ex-presidente da American Sociological Association, observa que o comportamento que qualifica um homem para a prisão pode qualificar outro para a santificação, visto que a qualidade do ato praticado em si depende muitíssimo das circunstâncias em que foi praticado e do humor das pessoas que o presenciaram.[1] Os coeficientes de criminalidade e de suicídio podem mudar de ano para ano ou mesmo de estação para estação; o jogo ilegal, o descaso das normas sexuais e a corrupção política tornam-se mais ou menos preponderantes em certos períodos de tempo. A maioria das formas de comportamento divergente raro se atribui igualmente por todos os segmentos da sociedade. De um ponto de vista sociológico, as infrações das leis dos costumes derivam das características da cultura e da organização social em que ocorrem. São as relações recíprocas dos homens, os papéis que desempenham, suas instituições e valores, e as conexões entre essas variáveis que influem na definição, no coeficiente e na distribuição no comportamento divergente. Porque a cultura e a organização social nunca são plenamente integradas, como seus complexos e variados elementos exatamente encaixados uns nos outros e mutuamente amparados, existem sempre tendências para a divergência à própria vida social. A força dessas tendências varia com a amplitude da desorganização social, que se acima sempre parcialmente presente, mas pode tornar-se aguda em certas partes da sociedade ou mesmo se converter em características do todo. O estudo da desorganização, em certos aspectos importantes, é inseparável do estudo da organização numa análise cabal da sociedade e da vida social e ambos terão de ser incluídos.
2. A desorganização social é um conceito inclusivo e vago, que abrange fenômenos variados, como conflito de papéis, o conflito cultural, a disjunção entre meios e fins socialmente sancionados, e outras espécies de incongruências ou contradições. Os grupos ou indivíduos mais expostos às pressões geradas por essas formas de desorganização apresentam maiores probabilidades de ignorar ou infringir as normas sociais. Suas reações dependem dos valores, expectativas e dificuldades criadas por suas circunstâncias. A desorganização social é vista como o germe da conduta desviada, pois se identifica com sua ocorrência nas áreas marginais, carentes de serviços, marcadas pela deteriorização do entorno e o caráter transitório da população. Uma sociedade desorganizada não pode organizar o comportamento de seus membros, liberando-os de toda contenção e, forçados a descobrir e desenvolver outras pautas de condutas, satisfazem sua necessidade ou aspirações de êxito, não observados os limites normativos. O desenvolvimento de tal corrente se deve aos trabalhos formulados pela escola ecológica nas primeiras décadas do século XX. Vários mecanismos servem para reduzir ou evitar as tensões nascidas das exigências incompatíveis de papéis e valores incoerentes. Ainda que os conflitos de papéis e valores não sejam resolvidos, dessas maneiras, não conduzem inevitavelmente ao comportamento divergente, pois muitas pessoas não se sentem impelidas a desprezar as convenções prevalecentes. Somente a pesquisa minuciosa de cada tipo de situação poderá identificar os traços pessoais ou as circunstâncias sociais relevantes.
3. Talvez, de maior importância que conflito de papéis ou de culturas como fonte de comportamento divergente, seja a disjunção não rara encontrada entre a cultura (normas e valores) e a estrutura social (sistema organizado de papéis e status que definem as relações entre grupos e indivíduos). Cada cultura estabelece metas e interesses que os membros da sociedade devem alcançar e não estimulados a fazê-lo, e prescreve os métodos que hão de ser seguidos na busca dos objetivos aprovados. Os que se vêem presos entre as injunções culturais e as realidades sociais podem reagir de várias maneiras às suas circunstâncias difíceis. Alguns persistem, teimosos, nos esforços para serem bem-sucedidos, sem embargo dos obstáculos que enfrentam. A probabilidade de que o comportamento divergente resulte de incongruências entre a cultura e estrutura social – e a natureza desse comportamento – variam de um grupo para outro, dependendo dos valores preponderantes e da situação social e cultural mais ampla. Ao enfrentar os problemas criados pela desorganização social, os indivíduos encontram, não raro, soluções divergentes já prontas. Os estudiosos do delito e da delinquência, por exemplo, observaram muitas vezes a existência de subculturas que educam e amparam o transgressor legal adulto ou adolescente. A importância da subcultura é indicada pela estimativa de que apenas, uma quinta parte de infratores adolescentes age só, ao passo que a grande maioria realiza suas atividades em companhia de outros que mantêm atitudes e valores.[2]
4. Edwin Hardim Sutherland (1883-1950) foi o mais importante criminólogo americano de seu tempo e sobre a teoria da associação diferencial, em seus Principles of Criminology,[3] define a Criminologia como um fenômeno social, abarcando o estudo da criminalização normativa do comportamento desviante e a reação macrossocial contra o delito, ocupando-se de suas causas e centralizando a confiança na investigação criminológica. A obra de Sutherland, Clifford R. Shaw (1895-1957) e Henry D. McKay (1899-1980) tem a marca da escola de Chicago, representando uma tentativa mais sistêmica de formulação através da transmissão cultural, uma teoria geral do comportamento delinquente. O slum é traduzido pela diversidade de valores culturais, modelos de cumprimento, códigos de ética entre os delinquentes. Os delinquentes mais velhos transmitem aos mais novos sua experiência e seu aprendizado, dando apoio para uma carreira criminosa de “prestígio” e “sucesso”. Shaw e McKay se antecipam às teorias da subcultura e dos conflitos de cultura, através do estudo das gangs.[4] A teoria da associação diferencial apresenta, em Principles of Criminology, de Sutherland afirma que o comportamento do delinquente é apreendido, jamais herdado, criado ou inventado pelo autor. A aprendizagem é feita em um processo de comunicação com outras pessoas, principalmente por grupos íntimos, incluindo técnicas de ação delitiva e de direção específica de motivos, impulsos, realizações e atitudes. Uma pessoa torna-se criminosa porque recebe mais definições favoráveis à violação da lei do que desfavoráveis a essa violação. Este é o princípio da associação diferencial. Nem todas as associações diferenciais têm o mesmo peso, variando com frequência, a duração, a prioridade e a intensidade. Sutherland nega que o comportamento do delinquente possa ser explicado por “necessidades e valores gerais”. Ao se defrontar com o problema sociológico a teoria supõe que a cultura ampla não é homogênea, contendo definições contraditórias do mesmo comportamento.
5. Advoga, em White-Color Criminality, que devem ser consideradas as outras teorias da Criminologia. Assim, há várias teorias que diferem principalmente nos pontos que atuam. Essas teorias podem classificar-se segundo os pontos de ênfase, em dois grupos principais, a saber: a) diferenças individuais; b) processo de “situação” ou culturais. As diferenças individuais podem ser herdadas ou adquiridas, e podem complementar desvios anatômicos, fisiológicos, de debilidade mental, de psicopatia, mentais e emocionais menores. Os processos de situação e culturais podem dar maior importância aos pequenos grupos, como a família, vizinhança, as instituições gerais, como os sistemas econômicos e políticos, ou aos processos culturais gerais, como a associação diferencial, conflitos culturais e a desorganização social. Todos esses processos precisam ser considerados e a maioria deles incluída em uma organização final de pensamento, relativamente ao comportamento criminoso; c) execução de um crime – requer o desejo dos resultados a serem obtidos pelo crime, carência ou fraqueza de inibições externas e internas (inclusive a sensibilidade do objeto, opinião pública ou opinião do grupo relativo ao comportamento e o perigo de descoberta e castigo) e capacidade técnica para a execução delitiva. Uma teoria de comportamento criminoso deve levar em conta tudo isso; d) a delinquência é acidental, quando considerada como ato específico de uma pessoa específica.
6. De modo semelhante, um ato criminoso específico pode resultar de um complexo de causas. São essas combinações de fatores que tornam impossível explicar adequadamente cada ato individual, porque nunca é possível incluir todas essas combinações sui generis numa generalização. Por essas razões, deve-se concentrar a tensão no comportamento criminoso sistemático, quer sob a forma de carreiras criminosas, quer de práticas criminosas organizadas. O comportamento criminoso sistemático é determinado num processo de associação com aqueles que cometem crimes, exatamente como o comportamento legal sistemático é determinado em um processo de associação com aqueles que respeitam a lei. Espera-se que toda pessoa seja respeitadora da lei e o comportamento legal é tido como certo, porque a cultura legal predomina e é mais extensa e mais disseminada que a cultura delitiva. A pobreza pode forçar uma família a residir em uma comunidade em que as taxas de delinquência sejam altas, facilitando, assim, a associação com delinquentes. O conflito cultural é a causa fundamental da associação diferencial e, portanto, do comportamento delitivo sistemático. A associação diferencial é possível porque a sociedade se compõe de vários grupos com culturas diversas. Essas diferenças de cultura encontram-se com relação a muitos valores e se consideram geralmente como desejáveis. Existem elas, também com referência aos valores que as leis se destinam a proteger, e nessa forma são, em geral, consideradas indesejadas. Essa cultura delitiva é tão real como a cultura legal e prevalece muito mais do que se acredita usualmente. A teoria supõe que a cultura mais ampla não é homogênea, mas contém definições contraditórias do mesmo comportamento, uma das quais é sustentada pelas pessoas que fazem as leis. Os índices e a predominância de cada tipo de comportamento criminoso dependem da maneira pela qual a organização social promove ou inibe a associação com padrões criminosos e anti-criminosos.
[1] ERIKSON, Kai T. Wayward Puritans, New York, Wiley, 1966, 5-6.
[2] CLOWARD, Richard A./OHLIN, Klyod E. Delinquency and Opportunity, New York, Free Press, 1960), 41-2).
[3] SUTHERLAND, Edwin H. Principles of Criminology, Edition, 2. Publisher, J.B. Lippincott Company, Chicago, 1934.
[4] A obra de F. Thasher, The Gang (1927), clássico da ecologia cultural na teoria do delinquente juvenil, enfoca espaço e sua simbologia, mas que a raça ou a etnia, que define os contornos da gang.






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