O Direito Penal e a crise no século XXI
- Álvaro Mayrink *
- 5 de jun.
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O autor trata das reflexões sobre o Direito Penal do futuro, diante do conflito social, político, econômico, religioso, cultural e tecnológico, no século XXI
Álvaro Mayrink da Costa[1]
1. O Direito é um sistema de disciplina social, fundado na natureza humana, que, estabelece nas suas relações uma proporção de reciprocidade nos poderes e nos deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais e evolutivas dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público. O estado de direito e a justiça social, que se exculpe na consciência atuante de nosso tempo, deve estadear-se em novas e corajosas estruturas jurídicas, superando de vez uma situação paradoxal, na qual os organismos forenses, menos por defeito das pessoas do que por deficiência de estrutura, parecem existir mais para apreciar simples questões de forma do que para dar resposta adequada e pronta aos conflitos de interesses.
2. É certo que o Direito se apodera da pessoa humana antes de seu nascimento e o mantém sob sua proteção até depois de sua morte. Mas certo também é que, sempre e a todo instante, o considera como parte de uma comunhão, que é a sociedade, fora da qual a pessoa humana, civilmente, não poderia viver. A regra de direito se caracteriza por ser geral e abstrata, de uma parte, e a sanção, por outra, identifica-a, distinguindo-a das demais regras de disciplina social, visto que é uma regra de disciplina de interesses delimitando esferas de poder. Humberto Ávila, em Teoria dos Princípios, conclui que “As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente respectivas e com pretensão de decibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige avaliação da correspondência, sempre conectada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiomaticamente abrangentes”.
3. Carlos Cossio, fundador da “teoria egológica do direito”, o define como objeto cultural, cujo substrato pertence à natureza humana, cujo sentido e significação é dado pela norma, que estabelece o limite da liberdade. Na direção do culturalismo jurídico, Radbruch, na Filosofia do Direito (1914), diante da transformação cultural passou a sustentar que o direito e a realidade estão a serviço do valor jurídico, afastando-se do positivismo jurídico. Em resumo, Paulo Dourado de Gusmão, na Introdução ao Estudo do Direito, expressa na linha de Miguel Reale, que “O direito é processo normativo, de natureza dialética, que, disciplinando o fato segundo valores, cria modelos jurídicos provisórios”.
4. Dentro da multiplicidade dos fatores sociais, o Direito atua, em sua função essencial de norma, muito menos como interesse coativo do que propriamente como instrumento prudente e harmônico de uma ordem jurídica. Assim, constitui um sistema complexo de normas e preceitos de conduta social, segundo os critérios de justiça e equidade. All Ross, um realista moderado, no Sobre el Derecho y la Justicia, advoga que as decisões judiciais não constituem o direito, propõem critérios verificáveis de quando deverão integrar o sistema jurídico posto.
5. O Direito Penal é constituído de um complexo de normas jurídicas que objetivam disciplinar os conflitos sociais não resolvidos pelos demais ramos do Direito. Pode ser classificado em relação: às normas (tarefa seletiva, valorativa e protetora), aos sujeitos, ao território, ao tempo e ao objeto da tutela. É tradicional na doutrina classificá-lo: a) em sentido objetivo, é o conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação das infrações de natureza penal e suas correspondentes sanções (penas e medidas de segurança); b) em sentido subjetivo, é a faculdade que tem o Estado de estabelecer e executar as penas e as medidas de segurança (ius puniendi) preestabelecidas pela norma penal a todos os violadores. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito. É a parte do ordenamento jurídico que tem a tarefa seletiva, valorativa e protetora dos bens vitais e fundamentais da pessoa humana e da sociedade, os quais são erigidos à categoria de bem jurídico. Luís Roberto Barroso salienta que “Nas circunstâncias brasileiras, o direito penal deve ser moderado, mas sério. Moderado significa evitar a expansão de medidas de seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional das penas. Sério significa que sua aplicação deva ser efetiva, de modo a desempenhar o papel disuasório da criminalidade, que é a sua essência”.
6. Define-se como o conjunto de normas pertencentes ao ordenamento jurídico público interno, de caráter autônomo, subsidiário, pessoal e imperativo, que disciplina a conduta dos indivíduos, tutelando interesses sociais fundamentais, mediante a imposição de mecanismos sancionários de caráter retributivo e preventivo, objetivando obter determinados comportamentos individuais na vida social preservando os bens jurídicos. Há várias definições subjetivas, objetivas, descritivas e jurídicas. O valor do Direito é a justiça como unidade concreta dos atos humanos que configuram o bem comum e representa o pressuposto de toda a ordem jurídica. Contemporaneamente, a palavra justiça é vista em sentido objetivo como ordem social, segundo valores da liberdade e da igualdade. Kant definia que “o direito é um conjunto de condições mediante as quais o arbítrio de cada qual deve se acordar com o direito dos outros, segundo uma lei universal de liberdade”. Na lição de Miguel Reale, na Filosofia do Direito, “Realizar o direito é, pois realizar os valores de convivência”. E, conclui que “jamais se poderá compreender o direito como uma abstração, lógica ou ética, destacada a experiência social, pois o direito é uma das dimensões essenciais da vida humana”.
7. Na visão sociológica, como sistema normativo de controle social, primário e formalizado, é um instrumento de ultima ratio, através do qual o Estado procura estabelecer um modelo de conduta para garantir o processo de socialização mediante um mínimo de sanções para fatos intoleráveis à convivência grupal, impondo limites ao comportamento a fim de permitir o normal funcionamento das relações e manter as formas de vida e de cultura. Só o legislador pode selecionar e hierarquizar os bens jurídicos que são objetos de proteção penal (criminalização primária) sem se descuidar do atuar dos mecanismos de persecução, ou seja, da ação dos operadores que obram na aplicação das normas (criminalização secundária).
8. Adere-se que a conduta criminosa é uma conduta aprendida em relação com outras pessoas em um processo de comunicação, não se limitando a família como instância de socialização (broken home), destacado dos grupos principais. Na expressão de Hassemer, “As teorias da socialização estão com as suas páginas abertas”. Salientou-se, na Criminologia (2005), a posição de Sutherland e a formulação de um comportamento delitivo, destacando dois grupos principais: a) diferenças individuais; b) processos de situação ou culturais. As diferenças culturais podem ser herdadas ou adquiridas. Ressaltou-se que o conflito cultural é a causa fundamental da associação diferencial (a sociedade é composta de vários grupos de culturas diversas). Os conflitos ideológicos e culturais entre progressistas e ultraconservadores sempre resultam em rachaduras nas estruturas normativas. No Brasil contemporâneo, diante das raízes históricas de sua formação, está em retrocesso pertinente à separação entre o Direito e a Moral, e as graves questões de desorganização e desigualdade sociais. Em um feedback entre a teoria da criminologia e as repercussões axiológico-políticas apontam-se: valores culturais → crenças sobre a natureza humana e crenças sobre a ordem social →← teorias criminógenas ↔ políticas de controle social.
9. O Direito Penal é uma construção social-normativa que tem por escopo regular a vida dos membros do grupamento social. Em uma visão democrática deve proteger os reais interesses (relevantes e não bagatelares) dos cidadãos e não só das normas jurídicas. Sua construção teórica abarca também valorações culturais metajurídicas, aproximando-se das ideias de Von Liszt (Tratado de Direito Penal Alemão), de dotar de objetividade científica a dogmática jurídico-penal, colocando-a à disposição do cidadão na construção diária do equilíbrio social. Registre-se, que a combinação dos elementos fáticos e normativos que caracterizam a realidade social são a fotografia e objeto permanente do laboratório de análise jurídica. Parte-se de que o Direito é uma construção caracterizada pela função de regular a vida, que em última instância depende da orientação política do Estado no desenho de Santiago Mir Puig, em Limites do Normativismo Penal, “corresponde a uma função de preservação limitada de delitos, entendidos estes como fatos danosos para os interesses diretos ou indiretos dos cidadãos”. Manifestações por parte da imprensa, de natureza crítica, satírica, agressiva, grosseira ou deselegante não autorizam, por si sós, o uso do direito penal para, mesmo que de forma indireta, silenciar a atividade jornalística (STJ, AgRg no HC 691.897/DF, 6ª T., rel. p/ acórdão Min. Sebastião Reis Junior, j. 17.5.2022). Reconhece a vinculação analógica expressada entre a função da pena e a do Estado, cujo diálogo só poderá existir sobre bases racionais.
10. Tem como missão assegurar a ordem de convivência social e a sua função especial é a proteção das áreas particularmente importantes de convivência humana e dos bens jurídicos, constituindo-se na última etapa do controle social. O Direito Penal de um Estado social e democrático deve garantir a efetiva proteção de todos os membros da sociedade, objetivando a prevenção da realização de comportamentos lesivos para os bens jurídicos. Desta forma, orienta a função preventiva da pena jungida aos princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos, de proporcionalidade e de culpabilidade. Aduza-se, a função de orientar a conduta da pessoa humana (presunção geral), buscando compelir o sujeito a comportar-se conforme o direito, abstendo-se de violar a norma posta (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”).
11. O sistema penal inculca nos cidadãos a noção de certos valores jurídicos que se manifestam no esquema de comportamento moral e que representam uma barreira contra a tendência ao atuar desviante dos padrões toleráveis pela sociedade. Acentua-se que no estado social e democrático devem-se reservar a pena privativa de liberdade, a todos os fatos especialmente intoleráveis por sua grave lesividade social (hediondos ou equiparados, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, a corrupção e os comandos das organizações criminosas), e as restritivas de direitos para os de pequeno potencial ofensivo. Tobias Barreto já escrevia que “o Direito Penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade do povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza, em suma onde se espelha a sua alma”. É um direito público: sua fonte exclusiva é o Estado; não regula as relações dos indivíduos entre si, senão destes com o aquele. Dir-se-ia que, além de ser direito subjetivo, é relativo, acessório, prescritível e intransmissível. É uma ciência cultural, normativa e valorativa. Nilo Batista, no Direito Penal Brasileiro - I, escreve que “para proteger os valores elementares da vida comunitária, o Direito Penal deve saber que não regula o poder punitivo, mas sim pode apenas – e deve – contê-lo e reduzi-lo, para que não se amplie, aniquilando tais valores”. Só o Estado pode ser titular, sendo que as normas penais se dirigem a todos os cidadãos, impondo-lhes fazer ou não fazer alguma coisa. É indiferente que sejam imputáveis ou não, pois trabalha com dois mecanismos: penas e medidas de segurança. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito.
12. O método é comum a todas as ciências jurídicas, isto é, o método lógico-abstrato, dentro do qual se compreendem tanto o método axiomático ou formalista como o método indutivo. A meta a que aspira ao dogmático é a construção da arquitetura jurídica. Polaino Navarrete, no Derecho Penal, destaca dois pontos: a) o Estado intervencionista versus o Estado de autorresponsabilidade dos cidadãos e b) o Direito Penal mínimo versus o maximalista. Ressalte-se que o Estado de autorresponsabilidade do cidadão se corresponderia melhor com um sistema de Direito Penal mínimo. Os sistemas contemporâneos tendem a uma intervenção mínima do Direito Penal nos Estados democráticos de Direito, fortalecendo a autorresponsabilidade dos cidadãos e assim criando uma ampla esfera de liberdade, minimizando os custos sociais que a pena comporta e maximizando os benefícios logrados na cominação punitiva. Daí o avanço do Direito Penal minimalista diante do endurecimento através de um direito maximalista (autoritário). Continua e deve continuar minimalista para o questionamento de limites e garantias. A censura penal é sempre uma intrínseca brutalidade que faz problemática e incerta sua legitimidade moral e política. Para que tenha respostas mais imediatas e positivas é fundamental a redução das taxas de crescimento da violência, visto que a legitimação deve aceitar critérios garantistas, buscando medidas alternativas à pena privativa de liberdade nos tipos penais menos graves. Configura-se mínimo como a intervenção limitada, razoável e proporcional no sistema punitivo em consonância com a intolerabilidade do conflito e a exigibilidade da paz social para atingir o bem comum. Cita-se a passagem de Luís Roberto Barroso, no Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, quando assinala que “Há uma tensão permanente entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos individuais dos acusados. Para serem medidas válidas, a criminalização de condutas, a imposição de pena e o regime de sua execução deverão realizar os desígnios da Constituição, precisam ser justificados e não poderão ter a natureza arbitrária, caprichosa ou desmesurada. Vale dizer, deverão observar o princípio da razoabilidade-proporcional, inclusive e especialmente na dimensão da vedação do excesso”.
13. Busca-se no sistema penal do futuro: a) a necessidade de uma intervenção limitada e limitadora do sistema punitivo com a minimização quantitativa da intervenção penal; b) a ampliação de garantias para os cidadãos com a maximização da prevenção; c) a diminuição de meios coercitivos inidôneos para a repressão. O desejado Direito Penal mínimo e garantista, não obstante a progressiva democratização e racionalização da maioria dos ordenamentos jurídico-penais, no início deste século XXI, constitui-se em uma figura retórica, mais utópica do que real. Há movimentos flutuantes, funcionais, variáveis e até contraditórios. Busca-se uma nova onda de Iluminismo, diante da tendência ao obscurantismo, sob o rótulo da impunidade, estimula-se o populismo vingança. Destaca-se a definição resumida proposta por Soler, no Derecho Penal Argentino (“denomina-se Direito Penal a parte do Direito que se refere ao delito e às consequências que este acarreta, isto é, geralmente a pena”), e, sem alongar em uma visão ilustrativa, é respeitável a posição de Köhler, que se abstém de toda forma de definição, visto que toda definição é um silogismo que, bem colocados os problemas, é resolvido tautologicamente.
14. Note-se que se impõem novas estruturas sociais, políticas e econômicas perante a sociedade em contínuo processo de mutação, surgindo novos conflitos que conduzem o Direito à dilucidação e correta equação nos seus múltiplos níveis da problemática atinente à legitimação, impulsionando rupturas criadoras e normativas em um discurso com raízes na vivência prática e normativa da comunidade. Admite-se a função de controle social (“conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetivam promover, organizar e garantir os indivíduos dentro de modelos e normas comunitárias”). Como último instrumento de controle, utiliza a ameaça sancionária à liberdade, à restrição de direitos e de perdas no patrimônio dos cidadãos. Igualmente, não é o único, e sim o último, instrumento de controle social (escolarização, religião, trabalho, organizações sindicais, partidos políticos, educação familiar, meios de comunicação e esportes). Como instrumento de controle formalizado, sua atuação deve estar garantida por normas (seguras, prévias, previsíveis e controláveis) para a sua legitimidade. É parte dos mecanismos que objetivam alcançar determinados comportamentos sociais para buscar a segurança pública e a paz social, declarando certos atuares como indesejáveis e ameaçando a sua realização com a aplicação de sanções de acordo com o grau de censura (razoabilidade-proporcionalidade), diante da danosidade social, operando junto a outros instrumentos de idêntica finalidade.
15. O excesso punitivo leva à destruição do direito penal. O justo e o injusto de uma conduta se determinam, segundo o critério do conteúdo eticossocial para o amparo dos bens jurídicos, conforme o grau de sua utilidade ou dano social. Despertar, criar e conservar o sentido jurídico legal, constitui um dos maiores fundamentos do direito. A missão do direito penal é a proteção dos valores eticossociais elementares da conduta, e só depois, incluído nele, o amparo dos bens jurídicos individuais. Welzel salienta que a missão central do direito penal reside em assegurar a validade inviolável dos valores eticossociais, mediante a aplicação da pena para atos que se apartem do modelo ostensivo dos valores que fundamentam o atuar humano. Sua missão primária, repita-se, é o amparo aos bens jurídicos. O excesso na aplicação das penas desacredita a sua existência, pois deve limitar-se a sanção aos fatos relevantes que lesionam os deveres eticossociais elementares e, nesse sentido, tem caráter fragmentário (BINDING, Karl / MAYER, Helmut). Por último, pode-se resumir que Welzel foi o mais destacado defensor e formulador da ação definida como “exercício da atividade final” – uma conduta dirigida a um fim ou objetivo (BELING, Ernest). São componentes do conceito de ação a antecipação do fim ou objeto, a escolha, seleção e domínio dos meios adequados a sua realização, a vontade dirigida à execução e à execução dos meios e concretização do objetivo colimado.
16. O Direito é uma construção humana que pode elaborar condições e critérios de jurisdição das decisões admitidas como válidas. O problema do garantismo penal é elaborar técnicas no plano teórico, torná-las vinculantes do plano normativo e assegurar a sua efetividade no plano prático. Pontua-se que diante de um relativismo ético e jurídico e da impossibilidade de uma garantia de um direito penal absolutamente justo e válido, questionando quando e como punir, proibir e julgar. Gize-se que, só através das garantias penais e processuais, no contemporâneo Estado de Direito, e da qualidade e nível de efetividade da jurisdição, se poderá valorar a justiça e medir o grau de garantismo. Ademais, diante de uma visão garantista, a crítica das leis e das decisões judiciais, como sustenta Luigi Ferrajoli, no Diritto e ratione, ao construir uma teoria do garantismo penal, ressalta que as fontes de legitimação e deslegitimação política e jurídica-constitucional deve ser ponto referencial do operador do Direito. Em síntese, garantista são todos que fazem cumprir a constituição e as leis penais vigentes para a realização da justiça e da paz social. Salienta-se o preâmbulo de nossa Carta Política, onde se destaca a instituição de um Estado de Direito, e uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundado na harmonia social, com a solução pacífica das controvérsias, destinado a assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores superiores.
17. Por último, tem-se a função promocional como produtor da mudança social, limitando-se a proteger ou consolidar um status quo existente (modelo conservador), ou a impulsionar a sociedade de forma ativa e empreendedora, buscando mudanças de atitudes (modelo progressista). Daí, a ideia de uma função pedagógica com patamar em determinados bens jurídicos como paradigma do cidadão. Tal postura, puramente conservadora, conduz às graves consequências de um processo de neocriminalização, com o aumento de “esferas da realidade” que originam riscos. Haveria um intervencionismo inaceitável como modelo punitivo. A função simbólica, isto é, o efeito psicológico do Direito Penal, como símbolo de respeito aos bens jurídicos, é a vertente em que alguns autores imaginam legitimar o sistema penal sobre a função simbólica da pena. Como um mito, teria uma função psicológica sobre a massa social (sentimento de segurança ou adverso de desconfiança, descrédito ou frustração), mas não olvidando que a sociedade tem que possuir a convicção de que as normas se aplicam com eficácia na proteção dos bens jurídicos. Luigi Ferrajoli, no Diritto e ragione, diz que “a lei penal não tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados pelos efeitos lesivos para terceiros”.
18. Não se pode nem se deve pedir mais ao Direito Penal. O fim é servir à Justiça através da busca de soluções justas, diante das questões jurídicas dos conflitos sociais intoleráveis, procurando alcançar a segurança jurídica. Aliás, Radbruch, na Rechtsphilosophie, sustenta que ela, ao lado da justiça e da conformidade a fins, são os elementos que compõem o núcleo do Direito e sem os quais ele não se caracteriza. Enquanto se refere ao fato, diz respeito a uma norma-princípio. Na dogmática penal contemporânea, cumpre uma função de tutela e proteção do bem jurídico, valores fundamentais para a pacífica vida em sociedade, objetivando a paz social e o bem comum. Jescheck, no Lehrbuch des Strafrechts, escreve que a missão do Direito Penal é a proteção da convivência humana, de maneira especial, o ordenamento jurídico deve garantir a obrigatoriedade geral de todas as normas vigentes e fazer frente a suas violações. Acode a coação estatal para assegurar que não se frature a ordem jurídica, contendo a arbitrariedade, mediante adequada (proporcional) limitação da liberdade, fazendo que seja compatível com o nível global da Nação para garantir a proteção da sociedade e assegurar a paz pública. O Direito Penal “não só restringe, mas também cria a liberdade”. O discurso midiático da impunidade retroalimenta um processo desidentificado com o da criminalização, catapultando a voracidade da punição a qualquer título, para acalmar o pânico coletivo, fraturando os princípios básicos de um Estado de Direito. David Garland, em A cultura do controle, pontua que no “[...] discurso político fortemente carregado de temas relacionados ao controle social, [...] toda decisão é tomada sobre as luzes dos holofotes e a disputa política e todo erro se transforma em escândalo”. Repetindo-se Sutherland, “ninguém nasce delinquente, o crime não se herda, não se imita, não se inventa, não é algo fortuito ou irracional, o crime se aprende”.
19. Deve-se ter em mente que o Direito Penal necessita manter seus laços com as mudanças sociais. Ele precisa ter respostas prontas para as perguntas de hoje, e não pode sempre retroceder a um puritanismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre a norma e sua violação. Precisa continuar desenvolvendo-se em contato com a sua realidade. A questão decisiva, porém, será de quando de sua tradição deverá abrir mão a fim de manter esse contato. Essa questão será afinal decidida politicamente, sem influência significativa das ciências penais. Assim, elas têm a tarefa de produzir ou de desenvolver alguns topoi mínimos, que sem uma decisão política, não deveria ser legitimamente adotada. Entre essas bases mínimas, inclui-se com destaque a difusão das garantias penais e processuais, não se constituem relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, como requisitos de sua legitimação. A busca de um ponto de equilíbrio não significa o retrocesso à emergência, nem a renúncia aos postulados garantistas. É relevante mencionar o papel da criminologia, definida como ciência empírica, causal-explicativa, e multidisciplinar, que se ocupa da realidade social, do estudo do delito, do perfil do autor, da vítima e do controle social, objetivando avaliar os conflitos do cotidiano para informar ao Direito Penal, o grau de intolerabilidade, para estabelecer controle aos conflitos sociais, sugerindo ou não a criminalização/descriminalização de atuares e a elaboração de programas de conscientização e mobilização, buscando a prevenção geral positiva, através dos diversos modelos e respostas, preservando a dignidade da pessoa humana no sistema criminal. Assim, a criminologia, a política criminal e o Direito Penal, integrados, podem e devem contribuir para o desenvolvimento social e democrático. Os problemas criminológicos atuais são bem diferentes do passado, ante as mutações sociopolíticas das sociedades contemporâneas. Grife-se que a criminologia, como ciência, em um enfoque multidisciplinar e integrado tem objeto e método próprio nos campos operativos, funcionando como uma central de informações para o Direito Penal, que permite a formulação de regras jurídicas para disciplinar o comportamento do grupo social, preservando os bens jurídicos. Aduza-se, na linha de David Garland, que a ideologia do espetáculo foi definitivamente institucionalizada na sociedade pós-moderna, formando a consciência deformada da realidade social.
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).
Excelente artigo .obrigada por compartilhar tao grande conhecimento.