A democracia e a crise do Estado contemporâneo de Direito
- Álvaro Mayrink *
- há 5 dias
- 16 min de leitura

O autor, reconstruindo a leitura, diante do desafio civilizatório, dialoga com a crise gerada pelos novos conflitos sociais
[1] Por Álvaro Mayrink
1. Na sociedade atual, a liberdade é devida fundamentalmente às inúmeras oportunidades que os indivíduos têm de solucionar seus modos de vida e sua atividade produtiva. A consciência da própria liberdade inclui o conhecimento de possibilidades e predisposições próprias de todos os níveis. Neste programa, o Direito consiste no conjunto de possibilidades de ação que a liberdade dos indivíduos e dos grupos tem ao seu alcance para traçar seu próprio caminho dentro dos métodos que impliquem respeito à liberdade dos demais, entendida como condição geral de toda a licitude. O Direito se refere ao bem comum. Aurelius Hermogenianus dizia, como aparece no Digesto, que “por causa do homem está o Direito”; toda a realidade jurídica surge numa dupla projeção sobre o homem: o individual e o social. Resulta do processo profundamente exato e formidavelmente eficaz, mediando entre a função individual e específica do ser humano. Falar em bem comum é afirmar que a coletividade tem uma projeção própria capaz de convertê-la na realidade satisfatória para todos os componentes. As relações referentes a interesses mútuos se desenvolvem conforme critérios de igualdade, e as relações relativas à organização coletiva, por meio de critério de participação. O bem comum correlativo ao ordenamento jurídico é a organização de condições sociais para o acréscimo da liberdade do homem dentro de uma responsabilidade pessoal dirigida à solidariedade coletiva. Surgem na estrutura interna do Direito as seguintes indagações: a) como assegurar o conjunto de normas que constituem o ordenamento jurídico e sancionar condutas que sejam efetivamente justas, quando são juridicamente ilícitas?; b) como fixar o modelo universal de justiça que possa ser um ponto permanente de referência?; c) que mecanismos pré-normativos são capazes de conectar os modelos universais de justiça?
2. O Estado absoluto da época das ilustrações mostra o magistrado tão só sujeito à lei, impossibilitando qualquer interpretação normativa. Recorde-se que o magistrado estava proibido de ensinar nas universidades a lei, pois sua tarefa era de aplicá-la literalmente. Dietrich Feuerbach, professor de Colônia, sustentava que a missão do Estado era de fornecer o alargamento da esfera de âmbito pela interpretação da norma. Kelsen advogava que a eficácia é uma condição de vigilância. Na busca da reconstrução do sistema político de valores em nossa contemporaneidade, vive-se em uma sociedade em movimento com mutações em um curto espaço de tempo. O delito é produto das relações estrutural-funcionalista, reforçando a convicção coletiva de valores e normas, pois constitui a destruição de valores – é a própria contracultura, que lesiona o sentimento coletivo de comunidade. Diante da gangorra política é fundamental a construção acadêmica, celeiro de falas tensionais, para a clarificação democrática das divergências e aperfeiçoamento do sistema normativo. Repete-se, novamente, De Page: “O juiz, ao interpretar a lei, não pode tomar liberdades inadmissíveis com ela”; e, de outro lado, Canotilho lembra, ao tratar da proibição do retorno, que quando se trata de direitos já positivados na legislação, estes não podem ser suprimidos sem medidas compensatórias, sob pena de ofensa aos princípios de confiança e de segurança jurídica. Para a efetividade da prestação jurisdicional, os tribunais brasileiros devem adotar novas práticas de governança e gestão, investindo na capacitação e, principalmente, aperfeiçoando a informatização e a renovação de suas estruturas físicas. Kelsen assinala que “a eficácia é uma condição da vigência; mas, não a razão dela. Como norma, não é válida porque é eficaz; é válida se a ordem a que pertence é no seu todo, eficaz.”
3. A justiça do Direito positivo é uma questão transcendentalmente teórica. O lugar ontológico da justiça ficaria entre o Direito e a dignidade humana. Sem repetir Eneu Domicio Ulpiano (150-223), a virtude da justiça está na disciplina da própria liberdade frente à dignidade da liberdade alheia. As desigualdades naturais existentes entre os homens, mais do que verdadeiras desigualdades, são diferenças no modo de ser e na atividade habitual de cada um; se referem às faculdades racionais, à índole intelectual ou à atividade laborativa, nas diversas situações e funções sociais. As leis são medidas tomadas pela autoridade pública para ordenar, conjugadamente, certas relações da vida social, não só por expressarem certo standard de conduta, mas também por conterem motivos que fazem adequar a conduta aos procedimentos. O aspecto público das normas jurídicas é uma condição essencial da racionalidade, através dos propósitos do poder. A origem dos conflitos sociais pode ser situada genericamente na ideia de “interesse”. O homem vive, se move, se relaciona, impulsionado por interesses de diversos tipos, materiais ou espirituais, egoístas ou espiritualistas, circunstanciais ou permanentes, mas há sempre o interesse, e a causa dos conflitos humanos se situa na detenção do poder e na limitação dos bens materiais. O Direito, como meio de resolução dos conflitos sociais, pressupõe que tais conflitos tenham alguma solução, caso contrário a convivência degenera em agressão constante e essa solução necessária é a que proporciona o Direito. É inegável o realismo de Francesco Carnelutti (1879-1965) ao afirmar que a vida social engendra conflitos de interesses da mais variada natureza entre os homens, e tais conflitos se manifestam na existência dos homens em discórdia, cujas posições se tornam incompatíveis, e podem desaparecer pelo imperativo ético, pois, para ele, o Direito é um meio de solucionar “conflitos subjetivos de interesses”. Sustenta que o Direito colocaria fim aos conflitos humanos, esquecendo-se, todavia, de que muitas relações sociais não se degeneram em conflitos e que nestas está presente o Direito. E, mais, é possível que um conflito não exista, precisamente porque existe uma regra de Direito que limita de antemão a conduta de cada uma das partes.
4. Pontua-se que a ausência de referências conduz o desnorteamento, diante de multifacetados desvios de conduta, o que torna as pessoas mais vulneráveis na prática dos valores éticos que presidem uma sociedade no “vale-tudo”, de um quadro político, decrépito e esgarçado. Não se pode desprezar a versatilidade dos transgressores. A taxa desproporcional de criminalidade é reflexo do nível de desorganização dos mecanismos de controle social. Registre-se, em tempo, que o caminho para a fratura do processo sistêmico de violação ético-normativa não poderá encontrar eco no regresso ao Direito Penal do inimigo (não é possível ignorar que o autoritarismo se vale de leis de luta, proteção e defesa como as strafrechtliche Nebengesetze do nacional-socialismo). Nas sociedades democráticas e plurais prisões abusivas não são mera figura retórica, mas algo concreto. Por mais que se exerça a criatividade inexiste fórmula mágica normativa que impeça a prática de graves violações contra a Administração Pública. A preocupação da administração pública contemporânea sedia-se na fixação dos princípios e direitos fundamentais constitucionais. A teoria de Habermas acrescenta regras procedimentais que regulam a interação comunicativa, que permitem um discurso livre e igual entre os cidadãos – é a defesa de uma legitimação do Direito através de um procedimento discursivo-argumentativo, que venha a fundamentar a defesa de participação popular na tomada das decisões político-administrativas. Exige-se a legitimidade das decisões administrativas, não bastando a intrínseca ao estado de direito. Sublinhe-se a função que cumpre o controle social e jurídico-penal na reprodução de determinados valores na maioria dos sistemas sociais contemporâneos. O fascínio do poder e da riqueza imediata traduz, em parte, a troca da ética pelos desvios de conduta, hidratados pela cultura da transgressão em todos os graus da hierarquia, que conduz à destruição dos valores de uma sociedade solidária e pluralista. Vencendo o descrédito de Sutherland, no “White-collar criminality”, vive-se um momento histórico de cooperação transnacional, em que a pressão da sociedade civil organizada exige a utilização de vias legais para a apuração e devida punição dos autores de práticas lesivas à Administração Pública. Na reconstrução da engenharia normativa a União Europeia deu destaque no combate à criminalidade organizada internacional como garante democrático de seus Estados-membros. Aponta-se o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais, por via da harmonização penal e processual e o reforço da cooperação em matéria penal. Gize-se o mandado de detenção europeu, que substitui procedimentos de extradição demorados e complexos, a aquisição de provas através da cooperação entre os Estados-membros, bem como o confisco de bens e instrumentos provenientes do crime. Em uma releitura de Canotilho, no Curso de Direito Constitucional e Teoria da Constituição, o princípio da segurança jurídica requer sejam os atos normativos editados com precisão e determinalidade, isto é, com clareza das normas legais e densidade suficiente na regulamentação legal. Deve ser controlado o emprego de normas abertas, pois “podem tornar claudicantes a previsibilidade normativa em relação ao cidadão ou juiz”.
5. Na democracia, a sociedade nacional busca viver sob o império da lei. Nossos direitos não são independentes da sociedade, mas inerentes a ela; quando se proporciona o benefício da educação, supõe-se que usar nossas vantagens para contribuir para o bem-estar social da comunidade. Não existo unicamente para o Estado, mas tampouco existe um Estado unicamente para mim. A pretensão procede do fato de participar como os demais da persecução do fim comum. A política democrática se baseia na maior segurança para assegurar o bem-estar dos cidadãos. Os direitos são correlativos com as funções, desfrutar para poder contribuir para a consecução do fim social, visto que não há qualquer direito de atuar de maneira insólita, antidemocrática, antissocial ou antissolidária. O Estado é a organização jurídica da Nação e o governo democrático é a fórmula suprema de organização política, situando-se o problema da democracia na questão de encontrar homens aptos para o manejo da máquina de produção do bem comum. Assim, a liberdade individual está garantida na igualdade de intercâmbios mútuos, e a liberdade coletiva está garantida na organização democrática do poder. É a proteção e a defesa vigilante do meio onde os homens encontram a oportunidade de aperfeiçoar seus destinos. É produto de direitos e todo o Estado se funda em bases de confiança essenciais para o desenvolvimento. Não há liberdade sem direito, senão os homens seriam obrigados a obedecer a normas e leis totalmente divorciadas de suas próprias necessidades. É definida por suas próprias restrições naturais, porque as liberdades de que se pode desfrutar não são meios de destruir as que nos rodeiam. Constituem aquelas oportunidades que a história proporciona como necessárias ao desenvolvimento e, portanto, inseparáveis do Direito.
6. Um sistema que se construa sobre o medo será sempre fatal para o desenvolvimento das faculdades criadoras do homem e, desta forma, incompatível com a liberdade. No mundo contemporâneo, a igualdade significa a exclusão de privilégios especiais, colocando os homens em idênticas condições ante as disputas da vida, que não supõem identidade de oportunidades adequadas desde a sua origem. Chega-se, agora, às indagações do mundo atual que exigem meditação profunda: a) É capaz o Direito de responder satisfatoriamente às exigências sociais? b) Se o Estado se acomoda às normas jurídicas, poderá salvar os hiatos que o separa da realidade social? c) Como poderá o Estado resolver os problemas sociais sem violar o primado do direito e os direitos individuais? d) Será possível desenvolver uma política social à altura dos tempos atuais sem fugir ao modelo jurídico? e) Cabe uma submissão estreita à lei por parte da administração pública ante a urgência de determinados assuntos ou a complexidade de casos que exigem rápida e singular solução? f) Cabe resolver os problemas atuais à base da liberdade? Todos estes problemas cruciantes passaram quase que despercebidos à maior parte dos teóricos do Rechtsstaat, indagando-se: como se concilia o prestígio e a perdurabilidade da expressão “Estado de Direito” com as dificuldades experimentadas pela vigência da atualidade? A igualdade só pode ocorrer na atmosfera irreparável das utopias; a igualdade há de ser das oportunidades livremente assumidas por cada um. Cabe a liberdade dentro de um Estado de Direito se for uma liberdade responsável de seus fins e estará plenamente justificada por uma sociedade justa. A administração é a chave política do Estado. Administrar é planejar, vincular os dirigentes a um ideal, aperfeiçoando as instituições, a fim de atingir o bem comum em toda a sua plenitude.
7. Para a democracia, tem-se que possuir uma efetiva consciência das ideias de liberdade, segurança, igualdade e justiça, através da renúncia do supérfluo, do suntuoso, do ostensivo, transmitindo uma filosofia de amor, capaz de elevar os pobres, redimindo-os da miséria pelo espírito da justiça social que substituirá a ideia de piedade em favor dos humildes por meio de uma política de reabilitação pela dignidade do trabalho, bem como na espiritualização da vida, libertando-a das preocupações do gozo dos bens materiais imediatos. Enfim, dando ao homem o significado de seu destino transcendental. A democracia não está apenas nas letras frias das constituições: é espírito, é mística, é consciência pública, é integração do povo na vida do Estado. É a conquista do progresso sem violência, sem intolerância, sem atos criminosos. Obra do homem para os homens, com virtudes ou defeitos, ocasionando enganos ou desenganos, é a única solução para o processo de desenvolvimento e para o bem-estar da macrossociedade. A fundamentação dos princípios constitucionais se situa na atividade legislativa não ilimitada e discricionária. No específico âmbito jurídico-penal encontram-se: a) princípios e critérios normativos que delimitam o poder punitivo do Estado; b) princípios jurídicos de correlação entre o Direito Penal e o ordenamento jurídico em conjunto; c) princípios singulares estruturais de fundamentação e legitimação do Direito Penal. Como consequência, de um lado, tem-se a inexistência de limites jurídicos, de outro, a legitimidade de sua validade que requer limitações normativas que tenham patamar em exigências axiológicas. O Direito Penal para fugir do fracasso necessita de previsões normativas que se fundamentem nas efetivas exigências de inter-relações pessoais na convivência social. É por natureza um ordenamento legal e juridicamente limitado a duas facetas, sujeito a garantias normativas e garantidor de direitos e liberdades. Seus limites normativos, de conformidade com os princípios constitucionais que fundamentam o direito de punir, apresentam várias índoles: a) limites jurídico-constitucionais em sentido estrito, que emanam de valores superiores do ordenamento positivo, transcendem a esfera de âmbito do Direito Penal; b) limites objetivos funcionais, que derivam da própria natureza da coisa e de sua própria finalidade, pois em tal esfera se desenvolve toda a sua virtualidade; c) limites estruturais que são deduzidos de singulares princípios gerais informadores do ordenamento jurídico-penal.
8. Na aplicação proporcional da efetiva resposta penal (traduzindo-se no sistema adotado de circunstâncias comuns e agravantes, genéricas ou específicas, através de formulações terminológicas com o respeito aos títulos delitivos e, respectivamente, às circunstâncias – delitos qualificados ou agravados e atenuados ou privilegiados) às violações que afetam a Administração Pública, a qualquer título, inadmite-se olvidar a presença do respeito aos direitos fundamentais, em um estado democrático de direito, pré-condição de funcionamento do próprio sistema democrático. A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, inseriu no Código Penal o Título XII pertinente aos Crimes contra o Estado Democrático de Direito e no Capítulo II, relativo aos Crimes contra as Instituições Democráticas, inovou a codificação no art. 359-L, com a rubrica Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (“Tentar, com emprego da violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”).
9. O direito de punir do Estado responde ao desvalor de um resultado e de uma ação afeta a um bem jurídico e princípio da intervenção mínima configura um dos marcos limitativos do controle social. A seleção dos bens jurídicos é ditada pelo princípio da intervenção mínima. O verdadeiro poder do sistema penal não é repressivo, mas sim, disciplinador, arbitrário e seletivo. A prevenção especial é a espinha dorsal do sistema penal. Os limites do sistema penal são os limites da macrossociedade. Ferrajoli alinha os princípios das garantias penais e processuais (modelo garantista): a) princípio da retribuidade (consequência da pena perante o delito); b) princípio da legalidade / modelo regular, sentido lato e estrito; c) princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal; d) princípio da materialidade ou exterioridade da ação; e) princípio da lesividade ou ofensividade; f) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; g) princípio da jurisdicionalidade; h) princípio acusatório ou da separação entre juiz e a acusação; i) princípio do contraditório ou da verificação; e, j) princípio do contraditório ou da falseabilidade. Ao decorrer destas reflexões principiológicas, destacaria o princípio da ressocialização, pois a pena não pode ser uma ferramenta de uso arbitrário-oportunista. No Estado de Direito a sua legitimação material é específica, constitui-se em uma função preventiva geral estando, teoricamente, direcionada para o cumprimento da função preventiva especial por meio da inserção social do apenado. Junto ao ordenamento jurídico em conjunto estão os princípios de relevância em outras instâncias normativas que caracterizam o Direito Penal: a) princípio da intervenção mínima e necessária subsidiariedade. Objetivando possibilitar a convivência social atua subsidiariamente às instâncias formais e informais de controle e prevenção, diante do tripé: cominação - aplicação - execução da pena, buscando garantir o mínimo tolerável de conflito, razão pela qual serve subsidiariamente à proteção dos bens jurídicos. A subsidiariedade é derivada do princípio de intervenção mínima, isto é, a intervenção estatal através do Direito Penal. Só deverá ocorrer quando da comprovada a ineficácia dos outros instrumentos de controle social. Deve-se destacar o princípio de humanidade ou respeito à dignidade pessoal, que reúne várias facetas, como salva guardas da humanidade diante de toda intervenção punitiva geral, compreensiva das dimensões tanto valorativas (a própria natureza e conteúdo da pena) quanto teleológicas (fim perseguido pela pena) como forma e execução (humanidade da execução). O caráter do princípio de humanidade abarca o princípio de intervenção penal em seu conjunto. Toda intervenção punitiva no Estado social e democrático de Direito deve ser guiada pelo princípio de respeito à dignidade humana – princípio que expressa um critério que é fundamento e guia de toda ação punitiva estadual (rerus sacra est). A fecunda iluminação ideológica libera trouxe a consciência da necessidade de respeito à pessoa do apenado repudiando o trato degradante a pessoa humana detida. Ficam abolidas as penas corporais e simbólicas existentes em tempos históricos que impedem a reinserção social (de morte e perpétua).
10. A criminalidade organizada se desenvolve através de um processo de interação pela desorganização social e a debilidade do poder legal e político, com sólidos vínculos pontuais ou sistêmicos com os poderes públicos. Constitui um grupo solidário de interesses interdependentes de seus integrantes unidos pelos mesmos objetivos, através de práticas complexas e sofisticadas para a realização e manutenção de finalidades ilícitas. As debilidades estruturais e formais de nosso sistema jurídico não podem ser resolvidas em curto prazo por meio de modelos mágicos e midiáticos de combate em lampejos narcisistas, que só geram frustrações na massa social, diante de iniquidades instrumentadas na produção legislativa de emergência com a real violação dos direitos e garantias fundamentais, retroalimentando a ilusão quixotesca de reformas visando o bem comum. A desconstrução da credibilidade do governo com reflexos na administração pública traduz-se pela recente crise resultado de questões políticas com a ruptura do teto de gastos, mecanismo adotado desde 2016 para garantir a saúde fiscal, bem como a PEC do calote dos precatórios que abala o pilar da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) ao omitir a fonte de receita, sob o argumento de “abrir espaço fiscal” para financiar programa social emergencial. Igualmente, o uso de dinheiro público deve ser transparente em respeito ao princípio da confiança e da democracia, inadmitido relativização. As pessoas praticam atos que dificilmente passariam no teste do calculável ou racional, que demonstra a progressiva destruição da ética em diversas e inimagináveis roupagens.
11. Há um movimento oportunista, defendendo penas inoculadoras ou exemplificadoras, que por seu caráter negativo são consideradas desumanas e degradantes e, portanto, inconstitucionais. Na perspectiva formal e executiva a humanidade ou respeito pela dignidade humana deve também estar presente na execução das próprias penas, o que significa estabelecimentos penitenciários com estrutura e funcionamento adequados ao perfil do encarcerado para atingir seu objetivo finalístico. Não se admite na execução da pena a imposição de sofrimentos de especial intensidade ou que provoquem uma humilhação ou sensação de aviltamento. Destaca-se o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso. Todos os atos delitivos devem ser punidos com uma resposta estatal justa, oportuna e proporcional a gravidade da ação singularmente considerada. Em um Estado Democrático de Direito há restrição no âmbito legiferante das leis penais. Baratta sustenta que o ponto vital da orientação minimizadora se radica na injustiça e inutilidade da pena, cuja função seria a reprodução das regras de domínio já existentes recaindo sobre os decaídos. Busca desenvolver uma teoria da minimização da intervenção tomando como ponto de referência os direitos humanos e acredita em uma visão conflitiva de nosso modelo social. Sua proposta não coincide com Ferrajoli, sobre o Direito Penal mínimo, que denomina de garantista, cognitivo ou de estrita legalidade. O minimalismo tem sido associado às posturas defendidas pela denominada Escola de Frankfurt do Direito Penal, prevendo sua restrição a um Direito Penal básico que tenha por objeto as condutas atentatórias à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade, com manutenção das máximas garantias na lei, na imputação da responsabilidade e no processo. Surge sob tal ótica a evolução do Direito Penal oficial como uma cruzada contra o mal, desprovida de mínima fundamentação racional. O incremento essencial de valor diante da evolução sociocultural (patrimônio histórico-artístico), a defesa de bens coletivos e interesses difusos mostram um espaço razoável de expansão do Direito Penal.
12. Nada tem a ver a tendência expansiva do Direito Penal na década de 70 respaldada inicialmente no movimento americano de lei e ordem que se dirigia a reclamar uma reação legal, jurídica e policial mais coerente contra os fenômenos de delinquência de massa da criminalidade das ruas. O movimento é o último exemplo de concepção conservadora do Direito Penal, (segurança dos cidadãos em casa, no trabalho e nas ruas). Nos tempos atuais através de uma ótica distorcida, propugna pela intensidade da resposta penal. Ao invés da tendência de sua expansão orienta-se na direção do estímulo às suas virtudes como instrumento de proteção aos cidadãos. Nem as premissas ideológicas, nem os requerentes do movimento de lei e ordem desaparecem, pois estão integrados em um novo consenso social sobre o papel do Direito Penal. Surgem novos interesses e o papel qualificado de proteção dos bens jurídicos relevantes, diante de novas realidades. A busca de um ponto de equilíbrio que não significa em Direito Penal de emergência a renúncia aos postulados garantistas. Colhem-se como conclusões que deve ser mantido o modelo de Direito Penal mínimo, diante do racionalismo jurídico, garantista com limites ou proibições, presidido pelo Estado Democrático de Direito, isto é, um tipo de ordenamento no qual o Poder Público, em especial o ius puniendi, esteja rigidamente limitado e vinculado às leis e à Constituição. É certo que o Direito Penal é racional na proporção da previsibilidade da intervenção estatal, afastando-se a aspiração autoritária. Nem a incerteza do ato, nem a incerteza do Direito.
13. Deve-se ter em mente que o Direito Penal necessita manter seus laços com as mudanças sociais. Ele precisa ter respostas prontas para as perguntas de hoje, e não pode sempre retroceder a um puritanismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre a norma e sua violação. Precisa continuar desenvolvendo-se em contato com a sua realidade. A questão decisiva, porém, será de quando de sua tradição deverá abrir mão a fim de manter esse contato. Essa questão será afinal decidida politicamente, o que significa, no que diz respeito, sem influência significativa das ciências penais, ainda assim, elas têm a chance (e a tarefa) de produzir ou de desenvolver alguns topoi mínimos, que sem uma observância, uma decisão política, não deveria ser legitimamente adotada. O Estado Democrático de Direito tem o direito-dever de impor ao condenado as regras básicas de convivência social, sem que isto importe na imposição dos valores da sociedade predominante, objetivando a sua inserção dentro de um sistema jurídico de segurança a fim de garantir a liberdade e a paz social. Entre essas bases mínimas, inclui-se com destaque a difusão da atitude de dever às garantias penais e processuais do Estado de Direito não como relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, como requisitos de sua legitimação.
14. Na voragem de um tempo fragmentado, somos sempre surpreendidos, sendo positivo que as instituições geradoras e transmissoras do saber e da cultura, reflitam sobre as causas e as concausas dos conflitos sociais. Esta compreende o patrimônio tradicional de normas, doutrinas e hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração. Buscar no desafio da criatividade formas e soluções de reconstruir a tessitura social é sempre um real construir a placidez da formulação teórica que não soluciona a questão, sendo necessário expressar em uma especial relação concreta o que se quer regular normativamente[2].
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).
[2] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Crimes contra a Administração Pública, 3. ed., GZ Editora, Rio de Janeiro, 2025.
Comments