e um olhar realístico sobre os pontos nevrálgicos da normatividade jurídica, em relação às rápidas transformações sociais -
O autor, ao reabrir um pensar crítico sobre o descrédito da pena de prisão como instrumento de contenção aos desvios de conduta e aos ilícitos penais, nos tempos contemporâneos, e a necessidade de construção de um modelo garantidor, diante de medidas eficazes alternativas e de valores, atitudes e pautas mínimas, recorda que incumbe ao Estado a manutenção da ordem social para garantir um mínimo ético e a segurança pública, diante do conflito social com equilíbrio de valores na busca da paz pública
1. No estudo das teorias da pena, convergem vários segmentos cujas raízes são multidisciplinares, traduzindo-se em um esforço conjuntural para racionalizá-la e descrever seus contornos éticos. Trata-se de uma área cinza, controvertida e plena de tensões emocionais. Constata-se, nos estudos teóricos, doutrinários e práticos, a necessidade da construção de uma teoria na direção de um modelo garantidor. O discurso midiático da impunidade retroalimenta um processo desidentificado com o da criminalização, catapultando a voracidade da punição a qualquer título, para acalmar o pânico coletivo, fraturando os princípios básicos de um Estado de Direito. David Garland, em A Cultura do Controle, pontua que no “[...] discurso político fortemente carregado de temas relacionados ao controle social, [...] toda decisão é tomada sob as luzes dos holofotes e a disputa política e todo erro se transforma em escândalo”. Ninguém nasce delinquente, o crime não se herda, não se imita, não se inventa, não é algo fortuito ou irracional, o crime se aprende. Sutherland, em Criminology, salienta que o delito tem natureza política, a aquisição pelo indivíduo de um determinado comportamento é um processo de aprendizagem social (contato com valores, atitudes, definições e pautas de condutas mínimas). Se a conduta viola os padrões de intolerabilidade diante do conflito de interesses entre os indivíduos, colocando em risco a paz social, o Estado se vê legitimado a criar instrumentos rigorosos de controle, incriminando determinados tipos de comportamentos desviantes, objetivando a proteção de bens e interesses, buscando a defesa social, por meio da edição de leis, onde se ressalta a mais grave das sanções jurídico-penais, a pena e as medidas de segurança, em situações de excepcionalidade, para garantir a segurança jurídica e proporcionar a pacífica convivência social. Figueiredo Dias, no Direito Penal. Parte Geral, ao tratar da não intervenção, diz que o Estado acaba por produzir mais delinquência do que aquela que é capaz de evitar. A pena é uma exigência traumática, contudo ainda imprescindível, repetidamente um mal necessário, objetivando a punição como uma finalidade socialmente útil, em uma relação de causa e não de finalidade, cuja teoria é um mar de questionamentos irrespondíveis, que se torna uma amarga necessidade de uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens. É a principal consequência jurídica do delito, causa e fundamento justificador, constituindo-se no seu antecedente lógico e pressuposto normativo. Dentro do espectro global da discussão temática, poder-se-ia afirmar que nos tempos atuais objetiva-se aperfeiçoá-la, quando imprescindível, e substituí-la, quando oportuno e possível, por medidas alternativas à pena de prisão. Relevante o conceito de pena necessária (oportuna e proporcional) de Von Liszt, no Lehrbuch des Deutschen Strafrecht, no caminhar da desprisionalização pela adoção dos substitutivos penais. O princípio da necessidade da pena abarca os princípios da fragmentalidade, subsidiariedade e legalidade.
2. Constata-se, nos estudos teóricos, doutrinários e práticos sobre a necessidade da construção de uma teoria da pena na direção do modelo garantidor. Zaffaroni entende ser disponível uma teoria da pena por meio da constituição de um Direito Penal com a finalidade de reduzir a violência do exercício do poder, ou pelo ângulo de Ferrajoli, Diritto e ragione, que todas as teorias da pena são de Direito Penal máximo, ora chamando a máxima utilidade aos não desviantes, ora ignorando-os, mas sendo objeto de práticas correcionais ou de integração coagida. Tobias Barreto, em Fundamentos do Direito de Punir, afirma que “quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar o fundamento jurídico da guerra” (conceito político). Sustenta ser um equívoco das teorias considerar a pena uma consequência do direito, pois foi muitas vezes aplicada e executada em nome da religião. Correto Roxin quando diz que “o nosso exame crítico das teorias da pena coloca em evidência um quadro pouco animador. Nenhuma delas resiste à crítica”. O legislador procura com a ameaça penal que os destinatários diretos da norma se abstenham de atuar e, ao mesmo tempo, mostra a todos os membros da comunidade a necessidade do respeito aos bens jurídicos para tornar viável a ordem e a segurança da convivência social. Talcott Parsons, em “Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas”, lembra que “A ordenação estrutural de dados sociais, por mais especial que seja, nunca deve estar muito desassociada da análise de processo e mudança”. Anabela Miranda Rodrigues, em “A determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, destaca que a pena é a mais relevante das respostas jurídicas, é o instrumento do poder instituído para assegurar a convivência pacífica dos cidadãos em sociedade, e que coloca em jogo a sua liberdade, segurança e dignidade. Na execução, o fundamento da pena tem como patamar o título executório, a decisão condenatória, com a perda ou a diminuição de bens jurídicos do condenado e, teoricamente, no seu decurso, busca a inserção futura, harmônica com os padrões sociais toleráveis. Não objetiva a dor, deixando livre o condenado para recusar a proposta estatal, hipótese em que objetiva somente neutralizá-lo por determinado tempo. Mir Puig, em Introducción a las bases del derecho penal, afirma que, no modelo do Estado Social e Democrático de Direito, deverá cumprir uma missão política de regulamentação ativa da vida social a fim de garantir uma convivência satisfatória, mediante a proteção dos bens jurídicos, proporcionando a paz na sociedade.
3. Em “Reflexões em Criminologia diante da Instituição Penal”, sustenta-se que no âmbito das diversas formas de controle social se situa um dos pontos nevrálgicos da normatividade jurídica em relação às transformações sociais. A ordem social demanda um adequado equilíbrio harmônico e, por sua vez, postula a conjugação da estabilidade com ritumo de mudança, todo de um modo flexível e adaptado às variações que esse ritmo pode apresentar. As decisões tomadas pelo legislador formam parte da política criminal legislativa. É nesta sede que se estabelece o nível de tolerabilidade social da possível divergência de determinadas condutas individuais em um esquema considerado socialmente adequado. É o caráter de artificialidade da criação do fenômeno que abre outro campo a possibilidades de modificação e ações alternativas do sistema. Beccaria, em Dei delitti e delle pene, escreveu que “A certeza da punição, ainda que moderada, terá sempre maior impacto do que o temor de outra mais terrível, associada à esperança da impunidade”. Assim, se confere à pena uma função de prevenção dos fatos que atentem contra esses bens e não sobre uma hipotética necessidade ético-jurídica, respeitando-se os limites que garantam que será exercida em benefício e sob o controle de todos os cidadãos. As penas têm por finalidade principal a proteção dos bens jurídicos e, em último estágio, o controle social, buscando no imaginário a futura reinserção e adaptação do condenado à sociedade, dissociada do discurso da ideologia do tratamento, ou objetivando a alteração das suas concepções pessoais no sentido do conformismo e da acomodação. Visa, teoricamente, durante o seu cumprimento, criar condições favoráveis à sua inserção social em uma vida conformada aos limites normativos impostos em relação à prática de futuros delitos.
4. A política penitenciária é a arte de saber qual o tratamento adequado e em que condições deverão ser implantadas ações, a fim de atingir o máximo de eficácia na luta contra a criminalidade, buscando desestimular a reincidência. Para Figueiredo Dias, deve ser reconhecida como “transistemática relativamente ao Direito Penal e à sua ciência”, através de processos que observem: a) o princípio da legalidade; b) o princípio da referência constitucional (“princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem dos bens jurídicos”); c) o princípio da culpa (princípio da dignidade pessoal); d) o princípio da sociabilidade (solidariedade); e) o princípio da preferência pelas reações não detentivas. Sustenta a mesma hierarquia jurídico-científica entre a problemática das consequências do delito e a doutrina do injusto, sendo que naquela se realiza a decisão político-criminal no caso concreto, advogando entre ambas uma unidade funcional. Maurach-Zipt, em Derecho Penal. Parte General, conceituam que uma sociedade que renuncia ao poder penal estaria renunciando à sua própria justiça. Quando Von Liszt escreveu que “é a inquebrantável barreira da Política Criminal”, colocou em relevo toda uma tensão viva em nosso campo científico, ao opor-se aos métodos jurídicos no sentido estrito e à elaboração sistemática conceitual dos pressupostos do delito e dos princípios de tratamento adequados da conduta desviada que repousam em fundamentos empíricos.
5. Fica de um lado caracterizado o Direito Penal como uma ciência social e, por outro, como uma ciência jurídica, postura que deve corresponder à função liberal do Estado de Direito, assegurando a todos um devido processo legal e uma ampla defesa. Em sua opinião, a ciência do Direito deve ser, e continuar seguindo, uma ciência propriamente sistemática, pois só a ordenação dos conhecimentos no sistema garante aquele domínio sobre todas as particularidades, abandonando a aplicação casuística e a arbitrariedade. É necessário, para a compreensão do delito, reconhecer a questão social-comunitária e a pluralidade de expectativas, individuais e sociais, antagônicas. Há uma pluralidade de protagonistas diante desse conflito real, com interesses legítimos e expectativas: a vítima (reparação do dano); o infrator (ressocialização) e a comunidade (a paz social). Surgem modelos ou paradigmas da resposta penal do Estado: a) dissuasório (prevenir a criminalidade); b) ressocializador (reinserir e reabilitar o condenado); c) integrador (reparação do dano, conciliação e paz social). O modelo dissuasório apresenta sérias limitações pela incompatibilidade estrutural com os princípios informadores do ordenamento jurídico (efeito puramente intimidatório da pena), enquanto o modelo ressocializador, de origem humanística, destaca-se pelo seu pouco realismo, diante do quadro prisional, importando-se somente pelo impacto efetivo do castigo, absorvendo a questão social do problema penal; já o modelo integrador, mais completo, teoricamente alcança o objetivo-alvo do modelo estratégico das políticas públicas de segurança. Objetiva capacitar o recluso para no futuro levar uma vida com responsabilidade social sem o cometimento de novos delitos (reincidência). A violência não é produto exclusivo do violador da norma, é fator existencial no choque de conflitos entre a sobrevivência e o cárcere, diante da dignidade da pessoa humana e a sua exploração. O êxito da socialização é o que atende ao binômio melhora do indivíduo e segurança social. O que se espera do egresso não é apenas abster-se da realização de novos delitos, mas sim tornar-se um cidadão pleno de suas responsabilidades perante a comunidade. García-Pablos de Molina, no Tratado de Criminología, considera que o conceito de ressocialização é ambíguo e impreciso, mas que a polêmica não é vazia ou meramente acadêmica. Sob tal bandeira encontram-se o antirretribucionismo, concepção assistencial do Direito Penal, e o neo-retribucionismo, versão moderna e atualizada do retribucionismo, que constitui uma faceta pior que a do século XIX, como expressão do Direito Penal liberal.
6. O descrédito da pena de prisão é uma secular consequência da crise do sistema prisional que atinge o coletivo carcerário e a sociedade, sob o aparato de terror repressivo, questionando na teoria e na prática o conceito de ressocialização. Aduza-se que a massa carcerária nem sequer foi inserida no contexto social, vivendo marginalizada das pautas macrossociais. Bacigalupo recorda que o conceito de ressocialização se converte em sinônimo de execução humanitária do castigo. Os programas ressocializadores máximos não respondem à ideia de autodeterminação, mas só de imposição, com a pena assumindo objetivos autoritários e impróprios de manipulação do indivíduo com o custo de sua liberdade e de outros direitos fundamentais, constituindo-se em atividade abusiva do Estado. Assim, é imprescindível uma noção ampla e integradora de intervenção que ultrapasse o conceito de tratamento. Uma intervenção eficaz exige um sólido modelo conceitual com programas estruturados, claros e duradouros. A reeducação, conceito de valor, deve ser harmonizada com o princípio de liberdade de orientação, não podendo ser compreendido com a instrução, luta contra o analfabetismo, mas na inserção da consciência do apenado no quadro de determinados valores culturais. Hassemer, em Fundamentos del derecho penal, defensor da prevenção geral positiva limitadora, destaca que sobre o conceito de socialização gravita a circunstância da relevante impossibilidade de se poderem apontar resultados mensuráveis, não se olvidando que o direito penal da resposta social tem a necessidade de buscar uma justificativa, o que aumenta a carga sobre os fins da pena imposta aos condenados para a realização dos objetivos propagados. Para o equilíbrio construtivo de uma sociedade democrática, admite-se a imposição mais rigorosa na individualização das penas privativas de liberdade e multa aos violadores das instituições democráticas, observados os marcos legais e a individualização da pena, a fim de desestimular novas tentativas de violação dos bens jurídicos fundamentais.
7. De outro lado, a ausência de um patamar empírico dificulta a polêmica conceitual sobre o tratamento (consistência e possibilidades). Assim, enfatiza que “a crítica ao Direito Penal começa precisamente com a crítica à ideia de ressocialização”. A sociedade corresponsável e atenta aos fins da pena não possui legitimidade para a mera imposição do mal. Em concreto, as penas privativas de liberdade estigmatizam e desassociam, pois a educação para a liberdade não se realiza através do encarceramento. O sistema prisional isola o condenado da sociedade e o neutraliza social e politicamente, constituindo-se em uma instituição de controle e vigilância total. Ressalte-se a crise do pensamento ressocializador, resultante da contradição de que dentro da prisão tradicional se poderá levar avante um programa de tratamento objetivando a futura e harmônica inserção e adaptação social do excluído e estigmatizado por ser egresso do cárcere. Continua-se no início do século XXI a repetir uma inverdade de que ao retirar o indivíduo do convívio social se deseja ressocializá-lo (“domesticá-lo”) no contexto deletério da microssociedade. No estudo da teoria da pena, convergem vários segmentos cujas raízes são multidisciplinares, em um esforço conjuntural para racionalizá-la e descrever seus contornos éticos. Trata-se de uma área cinza, controvertida e plena de tensões emocionais, com reflexos diretos na gestão do sistema carcerário e na cultura em relação ao binômio prisão-impunidade. No âmbito das consequências jurídicas do delito, a problemática da determinação da pena é a que mais evoluiu no campo da especulação científica, pois as decisões operativas não ocorrem em um espaço estranho à racionalidade e independem da arte e subjetividade do julgador.
8. Contemporaneamente, sob o controle constitucional de fundamentação, a determinação da pena passou a constituir estrutural aplicação do Direito, transformando-a em uma questão dogmática, quando deixa de ser um domínio cujas soluções são estanques a quaisquer valorações político-criminais. O domínio da política criminal não se encontra mais limitado à temática da determinação da pena, acarretando um equilíbrio entre ambos, existindo uma relação de autêntica unidade funcional. Com isso, não se retira, a despeito dos grandes progressos no século XX no relacionamento da Criminologia e da Política Criminal com o Direito Penal no campo da pena, que a decisão da sua aplicação cabe ao magistrado, mantendo critérios eminentemente jurídicos. Não se pode esquecer os princípios expressos ou defluentes da Carta Política: a) princípio da legalidade; b) princípio da taxatividade; c) princípio da proibição da dupla punição pelo mesmo fato; d) princípio da igualdade ou isonomia; e) princípio da dignidade da pessoa humana; f) princípio da irretroatividade da lei mais grave; g) princípio da intranscendência; h) princípio da culpabilidade; i) princípio da individualização da pena e do regime prisional; j) princípio da intervenção mínima; k) princípio da lesividade ou da ofensividade; l) princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos; m) princípio da proporcionalidade; n) princípio da razoabilidade ou da proibição de excesso. Os doutrinadores ainda não conseguiram solver a complexa temática de aspirações modernas que gravitam sobre a vexata quaestio e continuam perseguindo soluções românticas ou pseudorrealistas que repousam na volta ao museu da história. Jakobs, no Direito Penal do Inimigo, sustenta que o Estado para lutar eficazmente contra o inimigo deve impor penas desproporcionadas e draconianas, penalizar condutas inócuas ou distantes de serem uma real e efetiva ameaça ou perigo ao bem jurídico, eliminando o mínimo de custas garantistas e direitos ao indivíduo no processo penal. Diante da sociedade moderna de risco a única via seria dirigir o Direito Penal para o restabelecimento através da pena da vigência da norma violada pelo infrator, revitalizando a confiança dos cidadãos na segurança normativa. O que se questiona é a compatibilidade com o Estado do Direito e o reconhecimento e respeito aos direitos fundamentais. Na doutrina funcionalista, o conceito de vigência da norma converte-se em um critério reitor de toda uma construção dogmática, cumprindo uma função estabilizadora ou integradora do sistema. A lesão a bens jurídicos não seria definitiva, mas compartilhada por fenômenos naturalísticos; se consumada, o Direito seria ineficaz. O delito é explicado como a quebra da norma e a pena, como reafirmação de sua vigência.
9. O conceito de bem jurídico configura-se através do conceito de bem pertencente à teoria geral de valores. Os valores existenciais para o indivíduo e a coletividade, dentro de um conceito amplo, incluem valores materiais e imateriais, abrangendo coisas e direitos multidisciplinares. O ponto de partida da conceituação é que o bem jurídico possui natureza social e o Direito Penal só deve intervir para prevenir danos sociais e não para salvar concepções ideológicas ou morais. Assim, o Direito Penal que se pretende ver modelado em um Estado Democrático de Direito não se restringe como garantia da legalidade ao plano formal, investe-se, como foi dito, da missão de todo o Direito: regular a convivência humana, proteger os valores elementares da vida comunitária. Configura-se também como instrumento de controle social, ultima ratio, isto é, como um mecanismo para se obter determinadas condutas individuais na vida da macrossociedade, não sendo imaginável um processo sem a imposição de normas de conduta, sem sanções para as hipóteses de inadimplência e sem a realização efetiva da norma e aplicação da sanção adequada. A sanção penal é considerada a extrema ratio que o Estado utiliza no processo de controle social, após constatar esgotados todos os meios de um plano lógico-sistemático, objetivando através do emprego de normas não-penais, a segurança pública. Visa, pois, aumentar, reforçar ou completar a tutela prestada que se tornou ineficaz. Por tal prisma, o Direito Penal assume seu caráter de pessoal, autônomo, sancionador, imperativo, aflitivo, preventivo, mas sempre assegurando as liberdades individuais. Assegura-se, que as sanções penais se justificam quando justas, isto é, necessárias, oportunas e proporcionais para a proteção macrossocial, garantistas da real vigência dos valores e atos emanados da consciência jurídica. Ressalte-se, que o Direito Penal de um Estado social justifica-se como um sistema de proteção macrossocial, devendo a proteção do bem jurídico ser requisito indispensável de qualquer limitação de direitos constitucionais. O princípio do bem jurídico se corresponde com o princípio nullum crimen sine iniura ou princípio da ofensividade. Cumpre rigor na sua seleção e hierarquização.
10. Como instrumento de controle social, o Direito Penal se caracteriza por dois aspectos básicos, por ser um instrumento de controle social primário, e por ser um instrumento de controle social formalizado. A concreção do conceito de bem jurídico com função limitadora do poder punitivo, não pode ser indiferente à passagem de um Estado de Direito formal, mero garantidor das liberdades, não intervencionista, para um Estado de Direito que se almeja material, democrático e social. Desta forma, a nova concepção de Estado e as novas realidades sociais exercem pressão determinante na definição dos bens jurídicos a ser objeto da tutela pelo Direito Penal. O pensamento jurídico-penal da atualidade, em sociedades democráticas, plurais e abertas, descortina o Direito Penal como instrumento decontenção da violência e de proteção dos bens fundamentais da comunidade. Há unanimidade na sustentação subsidiária de bens jurídicos essenciais à vida humana em comunidade. No dizer de Jescheck: “bens vitais imprescindiveis a convivência humana em sociedade que são, por isso, merecedores de proteção através do poder coativo do Estado representado pela pena”. Como instrumento de controle social primário, caracteriza-se na busca de alcançar fins mediante a ameaça de sanções na realização de condutas ilícitas. Não é o único meio de controle social, nem o mais importante. Citam-se outros mais lógicos e eficazes tem-se, como exemplo, a escolarização obrigatória, a religião, o sistema de trabalho, as organizações sindicais, os partidos políticos, a educação familiar, as mensagens emitidas pelos meios de comunicação social.
11. De outra parte, o Direito Penal como instrumento de controle social formalizado deve se identificar com a aplicação prática envolta de uma série de garantias em uma atividade regrada, portanto, segura, previsível e controlada em todas as suas etapas, perante o devido processo legal. Como se observa, o Direito Penal (conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetiva promover e garantir a submissão do indivíduo às normas de conduta protegida penalmente diante do princípio da intolerabilidade social), com a carga de normas, regras e formalismos, oferece o marco adequado para suportar descarga da agressividade e dos sentimentos de vingança latentes em toda a macrossociedade; o controle que a comunidade exerce sobre seus partícipes deve ser realizado de forma legítima, racional e fiscalizável, observado o máximo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Busca-se na Constituição, enquanto instrumento fundamental de uma ordem jurídica, princípios capazes de exercer essa função legitimadora-limitadora do âmbito de uma eventual criminalização, perspectiva que completa o seu sentido garantidor, fornecendo ainda a unidade de toda a ordem jurídica e a harmonia entre o universo valorativo penal e o constitucional. Direitos, liberdade e garantias têm influência quanto ao conteúdo do Direito Penal, como também, os direitos sociais, econômicos e culturais, na medida em que expressam valores fundamentais da macrossociedade, valores que o Estado se comprometeu a respeitar, a fazer respeitar, a concretizar e a desenvolver. O Direito Penal só está legitimado a intervir para proteger os valores básicos de uma comunidade, desde que inexiste outra forma mais eficaz. A Constituição é o parâmetro de legitimidade da intervenção penal, exigindo harmonia entre valores, vedando condutas que não coloquem em perigo valores constitucionais fundamentais.
12. Roxin profetiza que a marca do século XXI será o aumento de condutas criminalizadas e de suas violações; porém as penas serão menos aflitivas, as respostas serão amplamente modificadas, ao se reconhecer o fracasso das penas privativas de liberdade, as quais serão substituídas por um rico arsenal de consequências jurídicas, mantido o pressuposto de uma conduta punível, mas não podendo mais retroagir à direção tradicional. A sociedade terá que encontrar no seu processo de desenvolvimento formas estruturais e de organização que não mais pleiteiem a pena e as suas consequências danosas. Correto ao alertar que não mais se poderá reverter à roda da história, voltando a um Estado policial, totalitário, embora não se possa esperar uma minimização da criminalidade através de um controle social completo. Há necessidade de suprir, no limite do possível, as penas privativas de liberdade, limitar as condutas delitivas que traduzam absoluta intolerabilidade ao convívio social e aumentar o elenco de medidas estritamente ligadas ao processo de inserção e adaptação social. O Direito Penal do futuro conterá sanções, não designadas como penas, mas como similares que imponham algo ao autor, prescindindo do caráter coercitivo da pena (reparação civil voluntária e prestação de serviços à comunidade). Faz a distinção clara entre o merecimento da pena e a necessidade da pena, afirma que nem sempre o merecimento leva à necessidade. Aduza-se que a culpabilidade não serve para fundamentar a pena, tão só para limitá-la. A imposição da pena, na sua visão, serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral com individual, de bens jurídicos e prestações estatais. Todavia, não se pode esquecer que a culpabilidade não se limita tão somente ao direito de punir estatal, mas o fundamenta e legitima. Não é ao legitimar a pena através da culpabilidade que a legitima, mas ao fundamentar na culpabilidade é que estaria legitimada. Ferrajoli escreve que o grau de dureza tolerável das penas está diretamente ligado ao grau de desenvolvimento cultural de cada ordenamento, sendo possível em longo prazo imaginar-se uma drástica duração do tempo de prisão, impondo-se a sua perpetuidade.
13. A pena de prisão impõe a aflição física e psicológica (solidão, isolamento, disciplina, perda da sociabilidade e da afetividade, enfim, da identidade), tais sofrimentos físicos e mentais retiram da pena de prisão os requisitos de igualdade, legalidade e jurisdicionalidade. Roxin conclui que a prisão é “uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial” e, em parte, “lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva”. Arremata que “o projeto de abolição da prisão não se confunde com o projeto de abolição da pena” e que a superação da prisão só poderá ocorrer em um processo gradual ligado às bases culturais e à redução das bases sociais de violência, com a etapa da minimização da duração da pena. Como disse Ihering, a história da pena é a história da sua constante abolição, mas, como afirma Maurach, a comunidade que renuncia à pena renuncia a si mesma. É justificada por sua necessidade, oportunidade e proporcionalidade, visto que nos tempos contemporâneos não seria possível a convivência na sociedade com um comportamento anômico, constituindo-se em um recurso do Estado para realizar o equilíbrio do conflito de interesses, observado o princípio da tolerabilidade, e buscar a segurança e a paz social. A execução da pena só é admissível se tem por finalidade a proteção dos bens jurídicos e o controle social, como resposta penal, busca a reintegração social do condenado (prevenção geral positiva limitadora). Gössel defende que a pena é a afirmação do Direito em via dupla, na prevenção de futuros delitos, tanto em relação ao autor quanto em relação à sociedade.
14. Fala-se do mito da ressocialização, que se constituiria em utopia ou eufemismo. As expressões reinserção social e reeducação do delinquente, no campo futurológico, coincidem teoricamente com os reais anseios humanistas de uma sociedade politicamente culturalista e pragmática (função reeducadora e correcional). Posiciona-se no sentido de que a pena tem por finalidade a proteção dos bens jurídicos e a contenção dos conflitos normativos e sociais. Incentivar a socialização do apenado é dever do Estado, visando proporcionar a futura inserção e adaptação social diante do princípio da dignidade da pessoa humana em um Estado de Direito. Ressalte-se que não se pode manipular a sua personalidade respeitando-se a opção de ser diferente, mas ofertando oportunidades para alternativas comportamentais não conflitivas com as normas postas. Trata-se, antes de tudo, de evitar o encarceramento, substituindo-o por penas alternativas à pena de prisão quando houver possibilidade de evitar ou diminuir a contaminação deletéria do cárcere e suas consequências, desde que se mostrem úteis, eficazes e suportáveis. A mudança cultural é um processo mais amplo do que a mudança social. Inclui qualquer alteração ou substituição no campo das ideias, crenças, técnica, linguagem e dos costumes. Já a mudança social se refere apenas às modificações nos processos e nas instituições sociais. Em todas as sociedades, assinala-se uma luta constante entre forças favoráveis e contrárias à ordem vigente. Quando as primeiras predominam, a sociedade apresenta-se eminentemente conservadora; nas segundas, as modificações surgem, variando, porém, a intensidade e a rapidez em que se processam tais mudanças.
15. Cabe ao Estado a manutenção da ordem social para garantir, diante do conflito o equilíbrio dos valores sociais em jogo. Exemplo de conflito contemporâneo é a violência doméstica. O Estado procura evitar através da edição de medida protetiva. Deve observar a questão da desproporcionalidade e o direito de locomoção do afetado de forma perpétua com sentença definitva condenatória. É relevante lembrar que as medidas protetivas de urgência de caráter cautelar relativas ao patrimônio e à família não podem ter duração perpétua, e que não se confunde com prazo de vigência (STJ, HC 605.113/SC, 6ª T., rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. 8.11.2022). O Direito Penal, como sistema normativo de controle social, primário e formalizado, é um instrumento de ultima ratio através do qual o Estado procura estabelecer um modelo de conduta para garantir o processo de socialização para os fatos intoleráveis à convivência grupal, impondo limites ao comportamento, a fim de permitir o normal funcionamento das relações e manter as formas de vida e de cultura. No terceiro milênio, o desafio a ser percorrido será no sentido de aumentar o espectro das penas e medidas formais alternativas à pena de prisão, ao lado de uma política social realista e eficiente de inclusão e adaptação social. Repita-se, ao final, que a reintegração social tem como vulnerabilidade a destruição do indivíduo, em razão da contaminação deletéria do cárcere, propiciando a aquisição e sedimentação de outros valores ruptores de obediência normativa. Diante de uma sociedade em funcionamento dinâmico, leva a novos conflitos por absoluta ausência de adaptação à nova realidade social e normativa do mundo livre e regrado – tudo o que inexiste no processo de transmissão cultural de hábitos, opiniões, conhecimento e valores divergentes que são próprios da vida no cárcere. Assim, há desconstrução dos mitos da intimidação e da ressocialização em torno da efetividade na complexa questão das penas.
Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Caro Desembargador Álvaro
Mais uma vez verifico o brilhantismo e pertinência de suas ibservações sobre a PENA DE PRISÃO, seja pela natureza da matéria, seja pela eficácia da medida.
Concordo integralmente, com suas observações, principalmente quando, em sua excelente abordagem, você demonstra que a prisão não é a solução adequada para o enfrentamento da conduta desviante e de prática de injustos oelo ser humano, inserido na sociedade.
Parabéns pelo excelente capítulo.
É muito honroso ser seu amigo. Estou sempre aprendendo com seus ensinamentos.
Abraço
Talvane