O autor sustenta que, independentemente do comportamento violador do bem jurídico tutelado, na execução, as pessoas privadas de liberdade conservam a titularidade dos direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes ao sentido da condenação e as exigências próprias da respectiva execução
1. O primeiro eixo de sustentabilidade da execução penal é o princípio da dignidade da pessoa humana. A desumanização do cárcere é problema fundamental do desrespeito ao princípio, devido à falência da capacidade do Estado do enfrentamento de crônicas demandas (físicas, gerenciais e disciplinares) dos estabelecimentos penais. Há dois séculos mantém-se a tríplice vulnerabilidade: superlotação, ociosidade e promiscuidade. Quando se fala na dignidade da pessoa humana, é da pessoa concreta, na vida real e cotidiana, como diz Jorge Miranda, em “A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”, e não um ser ideal ou abstrato, que a ordem jurídica considera irredutível e irreparável e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege.
2. Desta forma, permanece, independentemente, dos seus comportamentos, ainda quando violadores da ordem jurídica. Repita-se que as pessoas privadas da liberdade, apenados, custodiados e submetidos a medidas de segurança conservam a titularidade dos direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução. O princípio da humanidade, patamar para uma ótica democrática da execução, preside o elenco dos princípios constitucionais e se encontra registrado nos principais diplomas internacionais, tais como: a) na Declaração dos Direitos do Homem; b) nas Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos da Organização das Nações Unidas; c) no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; d) na Convenção Americana de Direitos Humanos. A dignidade da pessoa humana é o mais relevante diante dos direitos humanos, produto de lenta e longa maturação para a sua conquista. Constitui-se em um complexo de direitos e deveres fundamentais que objetivam garanti-la contra qualquer ato degradante e desumano, e promover sua participação corresponsável na vida comunitária. O Pacto de São José da Costa Rica registra que “toda pessoa humana tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. O respeito à dignidade humana e ao livre desenvolvimento da personalidade é uma exigência imprescindível nos estados democráticos, razão pela qual se encontra acolhida nos textos fundamentais.
3. A dignidade da pessoa humana se constitui em um metaprincípio de justificação dos direitos humanos, que, por intermédio de Kant, a racionalidade é posta como fim de si mesma. É inalienável e irrenunciável. Luiz Edson Fachin, na “Tutela Efetiva dos Direitos Humanos Fundamentais e a Reforma do Judiciário”, destaca que “A busca pela proteção efetiva da pessoa humana torna necessária à derrubada dos pressupostos formais frente a praxis libertadora” e aponta “como pedra angular de todo o sistema”. Nossa Constituição o expressa nos princípios fundamentais (art. 1º, III), bem como em relação à humanidade das penas como a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis (art. 5º, XLVII, CF/88). Deve ser assegurado ao preso o respeito à integridade física ou moral, o cumprimento da pena em estabelecimentos de acordo com a natureza do delito, a idade, o sexo e assegurado à mulher presa permanecer com seus filhos durante a amamentação. A Lei nº 13.167, de 6 de outubro de 2015, estabelece critérios para a separação de presos em estabelecimentos penais, modificando o art. 84 da Lei de Execução Penal, para determinar que os presos provisórios ou definitivos ficarão separados, quando acusados ou condenados pela prática de: a) crimes hediondos ou equiparados; b) crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa; c) outros crimes ou contravenções diversas.
4. As denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito, a duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar do réu, sem julgamento da causa, ofende o postulado da pessoa humana. Grandinetti Castanho de Carvalho, em Processo Penal e Constituição, resume que “está assegurado constitucionalmente, pelo princípio da dignidade, um direito processual que confira ao acusado o direito de ser julgado de forma legal e justa, um direito a provar, a contrapor, alegar e defender-se de forma ampla, em processo público, com igualdade de tratamento em relação à outra parte da relação processual, bem como que a gestão da prova não seja deferida ao julgamento, sob pena de retorno ao sistema inquisitivo”. Ferrajoli, em Direito e Razão, observa que são direitos fundamentais todos os direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de cidadãos ou pessoas com capacidade de obrar. Há evidente desordem dos modelos e paradigmas, consequência de uma crise da política criminal. O princípio da humanidade, defluente da dignidade da pessoa humana, emergente do princípio da secularização, é o fundamento do Estado Democrático de Direito, deduzido pelo conjunto de normas contido em nossa Carta Política. Marc Ancel dizia que a verdadeira justiça penal é humanista.
5. Lamentavelmente, nesta década do século XXI, sob as rubricas da sociedade de riscos e da impunidade, pelo estímulo midiático, tudo se permite em nome da “segurança pública” e da política oportunística, vulnerando a sustentabilidade da execução penal, como: a) volta das prisões ilegais (“para averiguações”); b) condução coercitiva para interrogatório (STF, ADPF 395/DF e 444/DF, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13/14.2.2018); c) violação da intimidade e a ilimitada quebra do sigilo de correspondência; d) exposição à notoriedade pelos meios de comunicação de massa; e) manutenção, ainda com a existência de vagas, em unidade distante do acesso à família; f) ainda perda dos dias remidos pelo trabalho, pelo estudo e pela leitura, como pena cumprida; g) revistas humilhantes e degradantes dos parentes e visitantes nas unidades prisionais, ainda não substituídas por scanners corporais pela recusa dos governadores em arcar com o gasto de sua implantação; h) a seleção de presos em estabelecimentos penais por participação em organização criminosa dominante; i) manutenção, sem fato novo, em regime prisional diferenciado; j) medidas de segurança e a internação em hospital-presídio, diante de regime de encarceramento do doente mental; k) maus tratos; l) superpopulação carcerária e ausência de atribuição de trabalho e ensino reforçando a ociosidade e a contracultura; m) cumprimento de pena acima do tempo da condenação imposta, consagração do desvio da execução, em nome do combate vingativo ao inimigo.
6. Registre-se o teor do voto do ministro Teori Zawascki, da Suprema Corte, diante da superlotação carcerária e maus tratos em que o poder público deve arcar com o ressarcimento em espécie por danos morais, se não, veja-se: “O recorrente cumpre pena privativa de liberdade em condições não só juridicamente ilegítimas, porque não atendem as mínimas condições de exigências impostas pelo sistema normativo, mas também humanamente ultrajantes, porque desrespeitosas a um padrão mínimo de dignidade” (STF, RE 580.252/MS, rel. Min. Teori Zavascki, j. 3.12.2014). Daí, a imperatividade da permanente realização de mutirões carcerários, objetivando diminuir o flagrante desvio da execução. Repete-se o princípio de que “Nenhuma circunstância, seja ela qual for, poderá ser invocada para justificar a tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Ao lançar um olhar realístico para uma execução sustentável, defende-se que em primeiro lugar estará uma visão global humanística sobre os institutos e aplicação das normas de execução às pessoas privadas de liberdade; ao contrário da postura dominante de vendita, apoiada no marketing midiático, do encarceramento pelo encarceramento, e a coisificação da pessoa presa, olvidando que o apenado é sujeito e não objeto de direitos.
7. O Direito é uma construção humana que pode elaborar condições e critérios de jurisdição das decisões admitidas como válidas. O problema do garantismo penal é elaborar técnicas no plano teórico, torná-las vinculantes do plano normativo e assegurar a sua efetividade no plano prático. Pontua-se que diante de um relativismo ético e jurídico e da impossibilidade de uma garantia de um direito penal absolutamente justo e válido, questionando quando e como punir, proibir e julgar. Gize-se que, só através das garantias penais e processuais, no contemporâneo Estado de Direito, e da qualidade e nível de efetividade da jurisdição, se poderá valorar a justiça e medir o grau de garantismo. Ademais, diante de uma visão garantista, a crítica das leis e das decisões judiciais, como sustenta Luigi Ferrajoli, no Diritto e ratione, ao construir uma teoria do garantismo penal, ressalta que as fontes de legitimação e deslegitimação política e jurídica-constitucional deve ser ponto referencial do operador do Direito. Em síntese, garantista são todos que fazem cumprir a constituição e as leis penais vigentes para a realização da justiça e da paz social. Salienta-se o preâmbulo de nossa Carta Política, onde se destaca a instituição de um Estado de Direito, e uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundado na harmonia social, com a solução pacífica das controvérsias, destinado a assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores superiores.
8. Por último, tem-se a função promocional como produtor da mudança social, limitando-se a proteger ou consolidar um status quo existente (modelo conservador), ou a impulsionar a sociedade de forma ativa e empreendedora, buscando mudanças de atitudes (modelo progressista). Daí, a ideia de uma função pedagógica com patamar em determinados bens jurídicos como paradigma do cidadão. Tal postura, puramente conservadora, conduz às graves consequências de um processo de neocriminalização, com o aumento de “esferas da realidade” que originam riscos. Haveria um intervencionismo inaceitável como modelo punitivo. A função simbólica, isto é, o efeito psicológico do Direito Penal, como símbolo de respeito aos bens jurídicos, é a vertente em que alguns autores imaginam legitimar o sistema penal sobre a função simbólica da pena. Como um mito, teria uma função psicológica sobre a massa social (sentimento de segurança ou adverso de desconfiança, descrédito ou frustração), mas não olvidando que a sociedade tem que possuir a convicção de que as normas se aplicam com eficácia na proteção dos bens jurídicos. Luigi Ferrajoli, no Diritto e ragione, diz que “a lei penal não tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados pelos efeitos lesivos para terceiros”.
9. A Lei de Execução Penal ressalta que o princípio da legalidade domina o corpo e o espírito da lei, de forma a impedir o excesso ou o desvio de execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal. Mir Puig escreve que um Estado democrático deve evitar que se converta em um fim de si mesmo ou ao serviço de interesses convenientes à maioria dos cidadãos, ou que desconheça que deve respeitar a toda minoria e a todo indivíduo. O exercício do direito de punir gira em torno do princípio da legalidade. São características de um procedimento penal, conforme o Estado de Direito: a) mandato de celeridade; b) defesa profissional; c) presunção de inocência; d) procedimento acusatório; e) publicidade; f) direito de recorrer. Exige-se que o Direito Penal seja preciso e concreto, única fórmula de garantir os direitos fundamentais e a segurança jurídica, diante das cíclicas mutações sociais, econômicas e políticas. A tipicidade e a taxatividade cumprem razão de ser do princípio da legalidade. Ponto fulcral da discussão contemporânea situa-se entre o estrito cumprimento do princípio da legalidade e a realidade social, pois o fato social sempre antecede ao fato jurídico, e daí a criminologia ser a lente de aumento dos acontecimentos sociais como observatório da criminalização ou não diante do Direito Penal.
Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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