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A omissão no direito brasileiro



Temas abordados: A omissão no direito brasileiro. A posição de garante. A questão da coautoria e a participação. O princípio da proibição da proteção insuficiente.


O autor aborda relevante tema pertinente à omissão do gestor público frente ao dever do Estado em relação à liberdade, à saúde e à educação, mínimos necessários para o cidadão diante de um estado social e democrático de direito. Afasta-se a falácia da ‘reserva do possível

1. Alexy, em Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, escreve que as “normas que obrigam que algo seja realizado na maior medida do possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas”, o que intitula de “mandamentos de otimização”. Para o citado doutrinador alemão “a máxima proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato e princípios terem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas necessidades e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas”. Não se pode olvidar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet, in “Reserva do possível. Mínimo existencial e direito à saúde”, em sua dupla acepção pertinente ao princípio da proporcionalidade como parâmetro necessário e controle dos atos do poder público jungidos pelo dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais. Como salienta Carolina Maria Gurgel Senra, in “Princípio da proteção da insuficiência mínima: o dever do Estado de proteção mínima aos direitos sociais e fundamentais”, – “o princípio da proteção insuficiente, extrinsecamente ligado ao conceito mínimo existencial da dignidade da pessoa humana como resultante do dever do Estado de garantir condições materiais indispensáveis para uma vida digna para todos os cidadãos”. Retornando a Ingo Wolfgang Sarlet, não se pode olvidar “o que tem sido, de fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social”.


2. No desenho fático e constitucional, o princípio da proteção insuficiente está conectado ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana, dever do Estado de garantir a vida dos cidadãos, principalmente no que concerne à liberdade, à educação e à saúde. Desta forma, os gestores públicos devem ser responsabilizados pelos atos omissivos diante do dever do Estado, não podendo ficar acobertados pela falácia da “reserva do possível”.


3. Contemporaneamente, os delitos omissivos experimentam notável desenvolvimento, do ponto de vista teórico e prático, pela exigência dos deveres de cidadania de cada um ou de solidariedade com os demais. Como existe uma estrutura típica dolosa e uma estrutura típica culposa, há uma estrutura típica omissiva. A estrutura dos tipos omissivos é edificada sobre o patamar da não execução de uma ação determinada pela norma jurídica. A omissão é a violação de uma norma imperativa, o poder agir, diante de um dever de evitar o resultado, tendo o especial dever de impedi-lo. O obrigado pela norma imperativa se incumbe de garantir a integridade dos bens tutelados. Há uma ação dupla na atitude psíquica do autor que possibilita distinguir: a) omissão própria; b) omissão imprópria. Nos tipos de omissão própria, há a desobediência da norma imperativa, dentro dos limites que determinam o tipo, ainda que não se produza qualquer resultado material distinto daquele representado pela lesão ao bem jurídico. Nos de omissão imprópria, o conteúdo do dever de agir gira em torno do factual, tendo como referencial a proteção ao objeto jurídico da ação, da potencial circunstância de uma lesão ou de perigo típico.


4. A questão deve ser conscientizada diante de uma situação típica. São elementos integrantes do tipo de omissão imprópria: a) situação típica; b) garante; c) real possibilidade; d) omissão da conduta ordenada; e) resultado; f) resultado de evitação. A omissão, como conduta punível, é a não realização de uma ação determinada jungida a um dever. Jescheck, no Lehrbuch des Strafrechts, utiliza o critério da causalidade para as questões duvidosas: se alguém causou o resultado mediante um atuar positivo, objetivamente típico, este constitui ponto de referência importante para o Direito Penal, e, a posteriori, indagando-se se o autor agiu dolosa ou culposamente, conclui que diante de um fato doloso ou culposo só importam os efeitos de valoração jurídico-penal do atuar positivo e adequado socialmente. Sendo ajustado ao Direito, dever-se-á indagar se o autor omitiu ou não um atuar positivo esperado através do qual teria evitado o resultado. A omissão, conceito normativo, não significa uma conduta negativa, mas um atuar ativo em que o sujeito tem o dever jurídico de atuar conscientemente a fim de evitar um resultado determinado. Como categoria normativa, não poderá existir fora da esfera de âmbito do direito. Muitas são as definições sobre os limites e o conceito da omissão. Não se concebe a omissão como inatividade, inação ou inércia e, segundo a teoria do alliud facere, a omissão não consiste em comportamento ou conduta, como um de seus dois aspectos (positivo ou negativo) e, por tal consequência, resultado.


5. Armin Kaufmann, no Die Dogmatik der Unterlassgsdenikte, que subordina relações de garantidor a desenvoltura de especiais funções de proteção, escreve que a omissão não é a realização de vontade, nem poder suportar uma vontade de realização, pois o essencial para a omissão não está no gerenciamento final do omitir, mas na “potencial finalidade” em relação à ação ausente. Assim, inexiste uma “vontade de omitir” ou um “dolo de omissão” no sentido da vontade de realização, como é peculiar ao gerenciamento final. A diferença entre comissivos e omissivos sedia-se no campo da tipicidade, sendo a distinção normativa, pois a omissão penal não é a ausência de uma ação positiva, mas a violação do dever de atuar de determinado modo. Registre-se que o dever de atuar de determinado modo pode ser genérico, comum a todos e restrito à mera realização da ação ou específico de determinadas pessoas. Aliás, sobre o dever de evitação e suas bases típicas salienta com propriedade Maurach que, nos crimes impróprios omissivos, o autor, por descumprimento de seu dever de garantia, realiza um resultado típico, cuja evitação juridicamente lhe incumbia. O dever de atuar não deriva tão só de fundamentos positivos, mas também de reflexos de solidariedade humana. A omissão é penalmente relevante quando o omitente podia atuar para a evitação do resultado.


6. Adota-se a classificação bipartida (omissivos próprios e impróprios), inclusive quando o tipo legal abarca em sua esfera de âmbito ações e omissões. Nos crimes omissivos próprios, a legitimidade da incriminação fica subordinada à exposição jurídica referida no tipo legal e a criação do dever de agir. Nos tipos de omissão imprópria, o conteúdo do dever de agir é determinado, segundo a doutrina dominante, por forças das circunstâncias fáticas. A posição doutrinária majoritária é no sentido de que os tipos omissivos impróprios não estão todos escritos, impondo-se a individualização do agir, diante dos limites do modelo do caso concreto e, nesta direção, seriam tipos abertos, como os culposos. Os tipos omissivos impróprios não escritos implicam em violação do princípio da legalidade.


7. Welzel escreveu que o garante tem uma posição jurídica especial como consequência de seu dever relativo a uma determinada ação protetora. Portanto, só a vontade do ordenamento jurídico pode criar uma posição de garantidor, que se baseia em um dever jurídico. Jescheck aborda a posição de garante no tipo impróprio de omissão formulando o primeiro critério de equiparação, sustentando, em síntese, que a equiparação da omissão com o fazer positivo pressupõe que o omitente tenha que atender como garante à evitação do resultado. Tem como fundamento a ideia de que a proteção do bem jurídico em perigo depende de uma prestação positiva de uma determinada pessoa e dos interessados que confiam e podem confiar na intervenção ativa da mesma. Pelo elemento objetivo da posição de garante, os crimes impróprios de omissão adquirem o caráter de crimes especiais próprios. O omitente é garantidor na proporção da produção do resultado. Só pode ser autor por omissão de um delito de resultado aquele que se encontrar em uma situação de garante, da qual surge um específico dever de atuar para evitar o resultado. É exigível no crime de omissão por comissão, ao lado da mera constatação da causalidade hipotética da comissão em relação ao resultado produzido, que o autor tenha a obrigação de fazer impedir tal resultado, por força de certos deveres em que assumiu o comprometimento de realização em razão de cargo ou profissão. Há, pois, uma obrigação especial que converte o autor em garantidor de que o resultado jurídico não se realize – daí a expressão posição de garantidor. Não se podem olvidar os tipos abertos, dando ao magistrado o dever de complementar o restante com os atos elementares que se constituem na posição de garantidor. Os deveres de garante surgem pela obrigação de controle de uma fonte de perigo, isto é, controlar as fontes de perigo do próprio âmbito do domínio, que é um dever legal. Deve-se levar em conta a faixa de incerteza do resultado (evitação de uma probabilidade de resultado). Tal evitação constitui-se em uma causalidade hipotética, resolvida pela eficácia ou relevância de omissão do resultado no plano normativo. A omissão do garante não é causa de resultado, mesmo admitida uma equiparação social, podendo ter sido evitado o resultado. As omissões são causais do resultado no sentido de que nos delitos comissivos ativos há equivalência das condições, o que significa afirmar que a causalidade na omissão também é produzida aplicando-se a conditio sine qua non. Sobre a equiparação da omissão de garante à ação, deve-se salientar que no plano pragmático realístico torna-se imprescindível que a tipicidade corresponda à realização típica por um atuar, não se tratando de um critério de identidade, mas de equivalência, que só pode ocorrer quando a omissão realiza de forma específica o tipo de produzir o resultado.


8. Uma pluralidade de fontes fundamenta a posição de garante: a) função protetora de um bem jurídico; b) comunidade de perigos, no caso de práticas esportivas coletivas (alpinismo – dever de cravar pregos, lançar cordas para ajudar os demais participantes); c) aceitação voluntária de específicas funções de proteção (medicina de urgência). A fonte do dever de garante é formal; o dever específico de garantidor só pode proceder de um número restrito de situações que permitam deduzi-las sem interpretações extensivas. Aduza-se ainda o dever de vigilância como fonte de perigo (animais, substâncias explosivas ou inflamáveis). No sentido welzeliano, o impedir o resultado típico por parte do garante deve corresponder ao conteúdo social do sentido da ação típica do delito de comissão respectivo. Há sempre um dever de evitar o resultado como dever jurídico, observando entre tais deveres não somente as obrigações ex lege. A figura do garantidor é uma criação doutrinária, inexistindo norma que trate da relevância da omissão, que só veio a aparecer em nossa legislação com a Reforma Penal de 1984, que a regulamentou, observando as hipóteses em que o autor assume a condição de garante: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. A posição de garante não é um elemento da autoria exclusivo nos crimes impróprios de omissão, existindo também nos tipos em que é exigido o dever de atuar para evitar um resultado, figurando o omitente como garantidor.


9. A participação deve ser observada em duas formas distintas: a) mediante um comportamento omissivo; b) participação ativa em um delito de omissão. A teoria dominante não aceita a possibilidade de indução por omissão. O indutor deve criar o dolo do delito no autor, isto é, a decisão do fato. Mediante omissão não se cria a decisão. No compasso da melhor doutrina, é inadmissível aceitar-se a possibilidade do reconhecimento da coautoria nos crimes omissivos puros, visto que o omitente do dever jurídico de atuar é o autor típico, que não se encontra na posição de garante. Infere-se que tão só é possível a participação nos crimes impropriamente omissivos, na forma de cumplicidade, pois em tal situação típica o cúmplice é garantidor. A questão da possibilidade de uma cumplicidade omissiva em delito de comissão é discutível. Parte da doutrina defende que existiria cumplicidade na hipótese do omitente ter o dever de garante. Kaufmann, na Dogmática de los crimes de omissión, sustenta que “o homem não pode ser causal e, portanto não é possível favorecer por omissão em delito de comissão”. Se o garante omite impedir o resultado será autor na hipótese de ter podido evitar o resultado, jamais cúmplice. Bacigalupo posiciona que a cumplicidade por omissão é possível quando a omissão do garante não é equivalente à autoria de um crime omissivo, e, portanto, não fundamentaria uma autoria por omissão.


 

Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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