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Abolicionismo penal e a realidade social: a busca do equilíbrio civilizatório



O autor destaca as posições críticas de Stuart Chapin, sociólogo e professor da Universidade de Minnesota, que aborda sobre o medo da criminalidade, a Loic Wacquant, que se refere à criminalização da miséria e à criação de um novo cidadão

1. Desde as últimas décadas do século XXI fico a meditar sobre as palavras de Loic Wacquant (1960) quando se refere à “prisão como fábrica da miséria”, diante da inércia dos governos e suas políticas públicas, do mercado de trabalho, desastradas e corruptas gerando o enfraquecimento contínuo das proteções coletivas contra os riscos da vida assalariada (desemprego, doença, aposentadoria, pobreza e miséria absoluta), e de outro viés o discurso “republicano” no endurecimento das penas e dos regimes prisionais, e a edição de leis de emergência diante de uma sociedade de riscos em razão do estado de guerra para enfrentar os inimigos ou não-cidadãos. Loic Wacquant fala “do Estado-providência ao Estado-previdência”, registrando nos Estados Unidos a clara opção pela criminalização da miséria como complemento da generalização salarial e social. De outro lado, está a encruzilhada europeia, em razão de uma busca histórica, de um lado, o encarceramento dos pobres e o controle policial e penal das populações desestabilizadas em razão da falta de trabalho e proteção social; de outro, a criação de novos direitos do cidadão (salário para a subsistência, educação para a formação para a vida, acesso a moradia, proteção a saúde, tratamento igualitário e digno de todas as pessoas, enfim o mínimo esperado num Estado chamado de social e democrático de Direito.[2]


2. Como diz Loic Wacquant o deslizamento do social para o penal é visível nas inflexões do discurso público sobre o crime, os distúrbios urbanos e as “incivilidades”, que se multiplicam na proporção que a ordem estabelecida perde a legitimidade para aqueles que sofrem mutações econômicas e políticas e são condenadas à marginalidade.[3] Nos tempos contemporâneos, só se pode registrar o êxito pessoal da proposta abolicionista de redução progressiva da pena privativa de liberdade, em casos de pouca gravidade, por penas alternativas que, até o final do século XX, sofriam a desconfiança do setor conservador do judiciário. Sublinhe-se que a proposta mais inovadora do abolicionismo é a non intervention no sentido da resolução dos conflitos penais serem solucionados por seus próprios protagonistas. Aliás, inexiste um sistema social sem criminalidade e sem controle social, reforçando-se sempre a observação das garantias fundamentais. Todas as escolas criminológicas se referem na contemporaneidade a prevenção do delito, o qual era focado pela escola clássica como elemento de enfrentamento formal e simbólico do ditado pela violação do sistema de normas.


3. No modelo atual se polariza a discussão da despenalização pela reparação de danos, num enfoque mais satisfatório e em consonância com o Estado social e democrático de Direito. Presente a afirmação de que não adianta reprimir sendo imprescindível antecipar-se ao delito. Não se pode deixar de reconhecer que a socialização do condenado não passa de um mito secular. Os protagonistas, o delinquente, a vítima e a comunidade interagem e buscam um modelo conciliatório em que a puniçãonão esgota as expectativas. Ainda vive-se a divergência teórica em termos de prevenção (primária, secundária e terciária) diante dos programas, destinatários, ferramentas, âmbitos e fins perseguidos. Há circunstância de que os programas de prevenção primária são dirigidos pelas raízes e causas do conflito e procuram neutralizar antes que ecloda o conflito. O cotidiano se traduz da prevenção secundária, quando o conflito se exterioriza. Já a prevenção terciária, que tem como destinatários à população micro societária, preocupa-se com a evitação da reincidência. Busca-se uma ótima solução para o próprio mal que é a pena de prisão. Sobre o thema está a indagação da possibilidade do abolicionismo tendo como estratégia o garantismo penal. Luigi Ferrajoli (1940) diz que o abolicionismo não pode ser negado com um instrumento de análise dos sistemas punitivos, que casa vez fica mais distante da nossa realidade. A opção é o garantismo penal. O direito penal objetiva assegurar garantias individuais como também punir e neutralizar o conflito intolerável, observado o Estado de Direito. Com a criminologia crítica houve a mudança de paradigma e no século XXI a vertente que sustenta enfoques críticos e radicais continua trabalhando na procura de novos caminhos interpretativos críticos, condicionados as profundas mudanças sociais, econômicas, políticas e ideológicas que repercutem imediatamente diante do fenômeno da globalização e suas consequências.


4. A teoria do estado social democrático de direito, como qualquer modalidade histórica, de estado de direito, firma-se na tese dos direitos humanos. Sabe-se, não é qualquer estado jurídico que é Estado de Direito. É aquele que reparte tecnicamente o exercício do poder com o fim de garantir o exercício dos direitos humanos. Mais pormenorizadamente: aquele que mantém supremacia material e supremacia formal da Constituição. A supremacia material tem-na qualquer Estado, pois juridicamente todo Estado é Estado Constitucional: inexiste Estado sem constituição ou sem leis constitucionais ratione materiae. A supremacia formal confere às normas constitucionais o caráter de supralegalidade: põe-se acima das leis ordinárias e demais regras e atos do poder. A doutrina dos direitos humanos, a mais alta expressão da dignidade ética do homem, tem servido ora como ideologia, ora como estratégia de ação. O conjunto de direitos e garantias da pessoa humana é definido como direitos humanos fundamentais, exigência da dignidade, da liberdade e da igualdade, tanto no aspecto individual como comunitário, contra os excessos cometidos pelos órgãos do Estado. Escreve que tais direitos fundamentais do homem caracterizam-se pela imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementariedade. Não se pode olvidar nossa Carta Política, onde os limites estão consagrados (princípio da relatividade ou da consciência das liberdades públicas), pois não podem servir de escudo ou salvaguarda de condutas ilícitas, diante do Estado de Direito. Na lição de Afonso Arinos de Mello Franco (1905-1990), “em respeito à pessoa humana não há justiça e sem justiça não há Direito”.[4]


5. A noção de direitos humanos da primeira geração estabelece aqueles ligados às liberdades individuais; neste sentido, mostram-se como direitos negativos, pois podem ser opostos aos interesses e ações do Estado, oferecendo uma característica de direito de resistência e de titularidade individual. Os direitos sociais são de segunda geração dos direitos humanos, porque não há uma titularidade individual, a qual se dilui em grupos sociais delimitados. Esses direitos estão ligados ao chamado Estado de bem estar social. Por fim, a terceira geração de direitos humanos, de titularidade difusa, dentro da ideia de direitos transindividuais, portanto, a titularidade desses direitos pertencem não mais a grupos delimitados, mas a toda a sociedade. Na ordem do conhecimento científico e na ordem da ação humana, é indispensável manter o postulado da dignidade ética do homem – suporte dos direitos humanos e núcleo antropocêntrico do Direito positivo. Mas, a liberdade não se pode ir até o ponto de ser-ter livre para dispor da liberdade, renunciando-a. por isso, também, com a democracia, que é uma forma política de institucionalizar a liberdade jurídica, não é legítimo usá-la com o fim de implantar a antidemocracia.[5] No Brasil contemporâneo, grande parte do Congresso Nacional é conservador e negacionista do meio ambiente. Defende que não há problemas na mudança de clima e de desmatamento. Inexiste uma ajuda de preservação sustentável. Quando acordaremos para a temática do meio ambiente, direitos humanos, questão indígena, direitos das mulheres, políticas de juventude e de cultura e apoio à velhice, em respeito aos direitos constitucionais?


6. A corrupção política é tão difundida e persistente que parece um processo “normal” em muitas comunidades. Francis Stuart Chapin (1888-1974), sociólogo americano, professor na Universidade de Minnesota (1922-1953), aponta que os partidos políticos querem votos e os fundos necessários para obtê-los; os grupos financeiros querem proteção e privilégio; os elementos semicriminosos e criminosos da comunidade querem imunidades.[6] O medo da criminalidade é um quadro real que altera o cotidiano da vida da população, hipudratizada que pauta da mídia, na sua veiculação diária, cristalizando a banalização da violência. As áreas em elevado índice de risco de vitimização são objeto de desvalorização sócioeconômica e abandonadas pelo poder público, gerando um círculo migratório vicioso. A cultura do medo é um fenômeno complexo diante de um processo de propagação por alimentação contínua dos empresários do crime que vendem o discurso securatório (câmeras de vídeo-vigilância, alarmes, blindagem de veículos, venda de lanchas para perseguição contrabandistas e piratas, venda de o “caveirões ao estado para a invasão de favelas na busca de traficantes, produção de “bafômetros”, projetos de engenharia de segurança para residências e empresas, mais venda dos espaços criminais na mídia). O crime organizado, o tráfico de entorpecentes, os sequestros mediante extorsão, os delitos econômicos e os homicídios são as grandes indústrias que fornecem produtos para os quais há forte procura, mas que são publicamente censurados: o submundo é vulnerável e ao mesmo tempo pode pagar bem pelo privilégio de transgredir sistematicamente a lei. Por outro lado, a massa dos eleitores que censuram a corrupção política é muitas vezes indiferente à (em grande parte imperceptível) aliança diária entre os mundos dos negócios, o governo e o delito. A política constitui um interesse insignificante e periódico – enquanto para o político militante é uma atividade constante, para o homem de negócios é um fator crucial para suas operações (atitudes lobísticas e corruptoras), e para o chefe do crime organizado ou dirigente de negócios ilícitos é uma questão de sobrevivência.


7. Por trás do crime organizado existe toda uma rede complicada de ligações expúrias com setores da polícia, os políticos, os detentores de altos cargos do executivo, legislativo, e judiciário ou tribunais e os negócios idôneos. De especial interesse são as situações em que, externamente, a lei segue os seus trâmites e a comunidade de modo geral assiste à confirmação de seus preceitos institucionais; lembre-se de periódicas “operações” autrizadas pelo judiciário, feitas com prisões em massa e os delinquentes individualmente cumpriam penas e pagavam multas, retornando para suas atividades ilícitas. Entretanto, a reação pública a este sistema difere acentuadamente da reação a “propinas” pagas a agentes públicos para consecução dos mesmos fins. O transgressor da lei continua em atividade; mas esta é registrada culturalmente como violação da norma. O mesmo tipo de encenação no “cumprimento” da lei se encontra muitas vezes no comércio desonesto, quando repetidas blitze são levadas a efeito com muito “estardalhaço” e produzem algum efeito real, por exemplo, no combate ao tráfico de drogas, desbaratando-o ou eliminando-o momentaneamente, e até mesmo reduzindo sua predominância, mas não conseguem suprimir a venda e o consumo constante. Também, neste caso, o caráter velado se estende ao sistema político.


8. É curial que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. A maior parte do problema dos limites dos direitos fundamentais se situa, na maior parte dos casos, como um conflito prático entre valores comunitários.[7] Deve-se configurar em cada direito fundamental um núcleo essencial de proteção máxima, que inclui as situações ou modos primários típicos de exercício de direitos. O sacrifício de cada um dos valores constitucionais em razão de salva guarda necessária e adequada de outros clientes não constitui verdadeiro conflito dicente da ideia de proporcionalidade em sentido estrito buscando a solução para a questão concreta. Os encarcerados não podem reclamar da liberdade de circulação ou do direito de reunião e manifestação livre de vontade, dos direitos políticos, mas devem ter direito à integridade fisico, religiosa, de petição e recursos. A inviolabilidade de correspondência é flexibilidade, mas não poderão ser submetidas a escuta no cárcere ou durante as visitas autorizadas. Tais direitos, na contemporaneidade, são relativos diante dos valores comunitários que aumentam a necessidade de restrição. Não se pode esquecer da presença dos direitos fundamentais em um Estado social e democrático de Direito, vedando a decretação de prisões temporárias e punitivas desfundamentadas e desnecessárias, invasão de escritórios de advogados, grampos telefônicos não autorizados e a presença midiática nas prisões que se tornam um show televisivo de hiperdramatização do delito nos jornais nacionais com uso abusivo das algemas, precipitando a condenação moral, pela antecipação rotulativa da imagem do mero suspeito.


9. Uma reforma que tente simplesmente suprimir os padrões ou tratar apenas o lado fácil da questão tem uma grande chance de fracassar. A ação social realística terá de levar em conta: a) muitos interesses investidos na fraude e na infração institucionalizadas; b) existência de uma “demanda”, que não se restringe às porções de classe da sociedade, de atividades e produtos ilícitos; c) dependência parcial da fraude padronizada de natureza particular das instituições dominantes. Poder-se-ía imaginar uma situação em que pessoas carentes de competência técnica e de honestidade administrativa[8] são eleitas para cargos de grande responsabilidade para a comunidade, com salários situados muito acima da faixa dos que são pagos na iniciativa privada. A maioria da população tende a desprezar a “política” e é indiferente ao governo; ao mesmo tempo, o governo exige muitos serviços e produtos da iniciativa privada, e esta é sujeita à fiscalização e a regulamentações. Se, além disso, as normas de relação governo-iniciativa privada são mal definidas, e vem a público um caso de “suborno”, uma reação frequente da população é varrer os corruptos, sem alterar a situação estrutural básica. Volta-se a recordar Enrico Ferri (1856-1929) em seus substitutivos penais que diante da ineficácia das penas como instrumento de defesa social, proponha os meios indiretos, que seriam nos campos da ordem política, econômica, religiosa e científica, tendo por escopo a prevenção indireta, que à época já denominava de plano de política criminal.


10. A prova específica de conflito normativo é que exista pelo menos uma consciência dos padrões diferentes e uma tentativa de justificar o sistema estrutural. São manifestações de obscurantismo,[9] a intolerância e o autoritarismo. O liberalismo, corrente política com patamar na liberdade, confere direitos aos indivíduos, sendo fundamental a autonomia, a possibilidade de realizar escolhas individuais no campo da religião, associação, opinião e vida política. Nossa repulsa pelo neoliberalismo. Há limite à liberdade de expressão, ditado pelas leis e pela Constituição. Em conclusão, pode-se distinguir entre sistemas simbólicos (linguagem, crenças, conhecimentos, e formas expressivas) e relações em mútuos contrastes com o padrão organizado de interação entre indivíduos e grupos. Portanto, a divisão entre ideias (conhecimento, valores, crenças tradicionais e cultura material) é de certo modo arbitrária, pois para descrever plenamente artefatos culturais é necessário conhecer como produzi-los. Aduza- se que os componentes de qualquer cultura, bem como da cultura como um todo, podem constituir sistemas diferentes, cada qual com sua estrutura e organização própria. A compensação de papéis culturais é necessária tanto para o funcionamento de qualquer sociedade, como para a sua consumação, pois a organização macrossocial é em si, um aspecto de cultura.


 

Álvaro Mayrink da Costa[1]

[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. [2] Loic Warquant, op. cit. 151. [3] Loic Wacquant, As prisões da Miséria, trad. André Telles, Rio de Janeiro, Zahar, 2001, 127. [4] Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de Direito Constitucional Brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, v. 1, 1958. [5] A Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris, em 10.12.1948, é a mais relevante conquista dos direitos humanos fundamentais no plano internacional. [6] E. Stuart Chapin, Contemporary American lnstitution, New York, 1935, 36-40. [7] Gomes Canotilho, Direito constitucional, 3ªed., Coimbra, Livraria Almedina,1983, 127. [8] Mayrink da Costa, Álvaro. Crimes contra a Administração Pública, 2 ed., Rio de Janeiro, GZ Editora, 2022. [9] O termo iluminismo indica um movimento de ideias que tem suas origens no século XV, mas que se desenvolve especialmente no século XVIII, denominado por isso de “século das luzes”. O iluminismo é uma filosofia militante de crítica da tradição cultural e institucional, seu programa é a difusão do uso da razão para distinguir o progresso da vida em todos os seus aspectos. O sentimento de solidariedade entre os povos e o cosmopolitismo iluminista têm seu fundamento nesta concepção.

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