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Democracia, abuso de poder e liberdades individuais



O exercício arbitrário e o abuso de poder perante a legislação brasileira

I - Evolução do Direito comparado


1. Nas legislações antigas, a execução arbitrária de medidas privativas de liberdade por parte de autoridades e seus agentes conduzia tão somente na obrigação de compor perdas e danos. Heleno Fragoso cita Baldo (“Judex temere capiens innocentem puniendus est, tenetur ad damna et interesse partis”).


2. O Código Napoleônico (1810), no art. 114, criminalizava o abuso de autoridade (attentato à la liberte) que configurava um crime contra a Carta Política (“Lorsqu’un fonctionnaire public, un agent ou un préposé du Gouvernement aura ordonné ou fait quelque acte arbitraire ou attentatoire soit à la liberté [...] soit à la Constitution, il sera condemné à la peine de dégradation civique”).


3. Pessina abordava o Esercizio illegale ed arbitratrio del potere como uma quarta e última modalidade de prevaricação e como os Códigos sardo e toscano, abarcando três categorias: a) do exercício abusivo de autoridade contra o interesse público; b) do exercício abusivo de autoridade contra os particulares; c) da violência e dano aos detidos.


4. O Código Rocco (1930), na seção referente aos Delitti contro la libertá personale, tipifica isoladamente: a) arresto illegale (art. 606); b) indebita limitazione di libertá personale (art. 607); c) abuso di autoritá contra arrestati o detenute (art. 608); d) perquizione e ispezione personali arbitrarie (art. 609).


5. O Direito Penal alemão também prevê sem figuras autônomas: a) verfolgung unschuldiger 344 § do StGB; b) vollstreckung gegen unschuldige 345 § do StGB.


6. O Código Penal francês (1994) ao tratar “Des abus d’autorité commis contre les particuliers”, referindo-se aos atentados à liberdade individual, prescreve no art. 432-4 (“Le fait, par une personne dépositaire de l’autorité publique ou chargée d’une mission de service public, agissant dans l’exercice ou à l’occasion de l’exercice de ses fonctions ou de sa mission, d’ordonner ou d’accomplir arbitrairement un acte attentatoire à la liberté individuelle est puni de sept ans d’emprisonnement et de 100 000 euros d’amende”) e no art. 432-6 (“Le fait, par un agent de l’administration pénitentiaire, de recevoir ou retenir une personne sans mandat, jugement ou ordre d’écrou établi conformément à la loi, ou de prolonger indûment la durée d’une détention, est puni de deux ans d’emprisonnement et 30 000 euros d’amende”).


7. O Código Penal português (1995) bem estrutura o combate ao abuso de poder ao prever nos arts. 380, sob a rubrica “Emprego de força pública contra a execução da lei ou de ordem legítima” (“O funcionário que, sendo competente para requisitar ou ordenar emprego da força pública, requisitar ou ordenar este emprego para impedir a execução de lei, mandado regular da justiça ou ordem legítima de autoridade pública, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”), 381, sob a rubrica “Recusa de cooperação” (“O funcionário que, tendo recebido requisição legal de autoridade competente para prestar a devida cooperação à administração da justiça ou a qualquer serviço público, se recusar a prestá-la, ou sem motivo legítimo a não prestar, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”) e 382, sob a rubrica “Abuso de poder” (“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”).


8. O Código Penal argentino trata do abuso de autoridade de uma forma genérica e vaga, no art. 248 (“Será reprimido con prisión de un mes a dos años e inhabilitación especial por doble tiempo, el funcionario público que dictare resoluciones u órdenes contrarias a las constituciones o leyes nacionales o provinciales o ejecutare las órdenes o resoluciones de esta clase existentes o no ejecutare las leyes cuyo cumplimiento le incumbiere”).



II - Evolução histórico-normativa do Direito pátrio


1. O Código Criminal do Império (1830), ora mais preciso que o Código Napoleônico (1830), bastante vago e indefinido, que já prescrevia que: a) a prisão deve ser ordenada por autoridade competente; b) quando for feita por ordem de autoridade competente, não deverá ser antes de culpa formada; c) só poderá ser feita antes de culpa formada, preenchidos os quesitos da lei (art. 132 da Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871). Quem decretasse a prisão em oposição a tais princípios violaria a primeira parte do art. 181 do Código Criminal de 1830.


2. O art. 181 do Código Criminal do Império de 1830, assim previa: a)Executar a prisão sem ordem legal escripta de legitima autoridade; exceptuados os militares, ou Officiaes de Justiça, que incumbidos da prisão dos malfeitores, prenderem algum individuo suspeito, para o apresentarem directamente ao Juiz e exceptuado tambem o caso de flagrante delicto”; b)Mandar qualquer Juiz prender alguem fóra dos casos permittidos nas leis, ou mandar que, depois de preso, esteja incommunicavel além do tempo, que a Lei marcar”; c)Mandar metter em prisão, ou não mandar soltar della o réo, que der fiança legal nos cases, em que a lei a admitte”; d)Receber o Carcereiro algum preso sem ordem escripta da competente autoridade, não sendo nos casos acima exceptuados, quando não fôr possivel a apresentação ao Juiz”; e)Ter o Carcereiro, sem ordem escripta de competente Autoridade, algum preso incommunicavel; ou tel-o em diversa prisão da destinada pelo Juiz”; f)Occultar o Juiz, ou o Carcereiro, algum preso á autoridade, que tiver direito de exigir a sua apresentação”; g)Demorar o Juiz o processo do réo preso, ou afiançado além dos prazos legaes; ou faltar aos actos do seu livramento”.


3. O Código Penal de 1890, nos arts. 207, 9º, e 207, 14º, adotou critério diverso incluindo no rol dos Crimes contra a boa ordem e a Administração Pública, como forma de prevaricação (“Ordenar a prisão de qualquer pessoa, sem ter para isso causa ou competência legal, ou tendo-a, conservar alguém incomunicável por mais de 48 horas, ou retêl-o em cárcere privado ou em casa destinada à prisão” e “Executar a prisão de alguém sem ordem legal, escripta, de autoridade legítima; ou receber, sem essa formalidade, algum preso, salvo o caso de flagrante delicto, ou de impossibilidade absoluta da apresentação da ordem”).


4. O nosso Código Penal de 1940, por influência do Código Rocco, dispõe no Capítulo III (“Dos crimes contra a Administração da Justiça”), no art. 350, caput e parágrafo único, sob a rubrica lateral “Exercício arbitrário ou abuso de poder” (“Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”, cominando a pena de detenção, de um mês a um ano. “Na mesma pena incorre o funcionário que: I – ilegalmente recebe e recolhe alguém a prisão, ou a estabelecimento destinado a execução de pena privativa de liberdade ou de medida de segurança; II – prolonga a execução de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de executar imediatamente a ordem de liberdade; III – submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; IV – efetua, com abuso de poder, qualquer diligência”).


5. O Código Penal de 1969, no art. 390, repete o texto de 1940.


6. No anteprojeto de 1984, não consta a figura penal e no anteprojeto de 1999, no art. 328, consta sob o nomen iuris de abuso de autoridade, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la aumentando o elenco casuístico: “I – Ordenando ou executando medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; II – submetendo pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado; III – deixando de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão de qualquer pessoa; IV – deixando o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ilegal que lhe seja comunicada; V – deixando de comunicar ao juiz competente a transferência de pessoa presa ou submetida a medida de segurança para outro estabelecimento ou local diverso daquele no qual estava originalmente custodiada; VI – sonegando à autoridade judiciária informação acerca de pessoa presa; VII – levando à prisão e nela detendo quem se ponha a prestar fiança em lei”; cominando pena de detenção, de seis a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência, se não constitui crime mais grave.


7. O texto do anteprojeto de 1999 retrata as violações praticadas pelas autoridades e seus agentes contra os direitos humanos de presos, condenados e internados em hospitais de custódia para tratamento psiquiátrico no Brasil, que passa a serem atenuados através dos “mutirões carcerários”, institucionalizados através de revisão periódica das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e das internações de adolescentes, no sentido de “zelar pelo cumprimento dos princípios constitucionais da razoável duração do processo e da legalidade estrita da prisão” (Conselho Nacional de Justiça, Resolução nº 89, de 16 de setembro de 2009).


8. Com a edição da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, ficaram especificados os Crimes de Abuso de Autoridade, diante dos arts. (“Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”) e (“Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade”).


9. Pode-se aduzir na Lei de Execução Penal os arts. 105 (“Transitando em julgado a sentença que aplicar a pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para execução”), 109 (“Cumprida ou extinta a pena, o condenado será posto em liberdade, mediante alvará do juiz, se por outro motivo não estiver preso”), 136 (“Concedido o benefício, será expedida a carta de livramento...”), 171 (“Transitada em julgado a sentença que aplicar medida de segurança, será ordenada a expedição de guia para a execução”) e 179 (“Transitada em julgado a sentença, o juiz expedirá ordem de desinternação ou liberação”). Aplicava-se as hipóteses à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto das MC na ADC 43 e MC na ADC 44, julgadas em 5 de outubro de 2016, que manteve por maioria (6 votos a 5), com repercussão geral (STF, REAg 964.246/SP, rel. Min. Teori Zavascki, j. 10.11.2016), a decisão de permitir a prisão de condenados em decisão de segunda instância, sem o trânsito em julgado, em nome da efetividade da sentença sobre o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVIII, CF/88). Repita-se o texto da Carta Política: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; e art. 283 do CPP: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva”.


10. Registre-se, que a condenação em segunda instância com a expedição de mandado de prisão, como execução provisória da pena, incorre em ilegalidade, diante da jurisprudência atual da Suprema Corte (2022). Não é possível ter o início da execução da pena condenatória após o acórdão condenatório em segundo grau, uma vez que ninguém poderia ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença, por força do que dispõe o art. 5º, LVII, da Carta Republicana/88, diante do princípio da presunção de inocência ou da própria não culpabilidade. Assim, na direção do Superior Tribunal de Justiça, há necessidade do esgotamento de todas as possibilidades de recurso para o início do cumprimento da pena, isto é, o trânsito em julgado da sentença condenatória (STJ, AgRg no REsp 937.267/BA, 6ª T., rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 26.5.2020).


11. Finalmente, na nossa Constituição Federativa de 1988 registrem-se: o art. 5º, inciso III (“Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”); o inciso XLV (“Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executados, até o limite do valor do patrimônio transferido”); o inciso XLVIII (“A pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”); o inciso XLIX (“É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”); o inciso LVI (“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”); o inciso LVIII (“Possivelmente identificado, não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”); o inciso LXI (“Ninguém será preso se não em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definido em lei”); o inciso LXII (“A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”); o inciso LXIII (“O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado”); o inciso LXIV (“O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”); o inciso LXV (“A prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”); o inciso LXVI (“Ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”); o inciso LXVII (“Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”); o inciso LXVIII (“Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”).


12. Houve profunda divergência doutrinária, resumindo-se em três posições: a) ab-rogação com revogação completa do art. 350 do Código Penal pelos arts. 3º e 4º da Lei nº 4.898/65; b) derrogação com revogação do art. 350, caput, e inciso III do parágrafo único (“submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado por lei”) pelo art. 4º, alíneas a e b, da Lei nº 4.898/65; c) o art. 350 e parágrafo único do Código Penal foi absorvido pela Lei nº 4.898/65; d) os incisos I (“ilegalmente recebe e recolhe alguém à prisão, ou estabelecimento destinado à execução da pena privativa de liberdade ou de medida de segurança”) e IV (“efetua, com abuso de poder, qualquer diligência”) não estão revogados. O art. 234 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA), derroga o art. 350, parágrafo único, II, pelo critério da especialidade. A Lei nº 4.898/65, pelos arts. 3º e 4º, revogou tacitamente o art. 350 do Código Penal, registrando-se que os incisos II e III e o parágrafo único do art. 350 do Código Penal foram reproduzidos integralmente pelas alíneas a, b e i do art. 4º da Lei nº 4.898/65, sendo que os demais incisos do art. 350 (I e IV) houve grande discordância na doutrina.


13. A Lei nº 13.869/2019 (abuso de autoridade) prescreve no art. 18: “Submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito, ou se ele, devidamente assistido, consentir emprestar declarações. Pena. Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. O novo edito fixou o conceito noturno de 21h a 5h, que não se confunde com noite. A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, em seu art. 1º, fornece o conceito de tortura: “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou pessoa no exercício de função pública, ou por sua instigação ou com seu consentimento ou aquiescência”. A Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que define os crimes de tortura, dispõe no art. 1º, II (“submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de medida de caráter preventivo”), cominando a pena de reclusão, de dois a oito anos; e, no § 1º (“Na mesma pena, incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”), observado o princípio da especialidade. A Lei nº 13.869/2019 (abuso de autoridade) prescreve no art. 18 “Submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito, ou se ele, devidamente assistido, consentir em prestar declarações. Pena. Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. O novo edito fixou o conceito noturno de 21 horas às 5 horas, que não se confunde com a noite. A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, em seu art. 1º, fornece o conceito de tortura: “Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa, a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la ou, por atos cometidos, intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou, por qualquer motivo, baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou por outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos consequência unicamente de sanções legítimas ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”. Vige o princípio da dignidade da pessoa humana. Na tortura, o dolo é com especial fim de agir (sofrimento físico e moral). A nova lei de abuso de autoridade é um leão sem dentes.


14. O Projeto de Lei do Senado nº 280 de 2016, que teve a relevante participação e colaboração por parte do Comitê Gestor do II Pacto Republicano, com efetiva colaboração do Judiciário, e ouvido o Ministério da Justiça, passa a definir 39 tipos de crimes de abuso de autoridade, no capítulo VI, cometidos por membro do poder ou agente da Administração Pública, servidor público ou não, da União, Estados, Distrito Federal e Municípios que, no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las, abusa do poder que lhe foi conferido. O Projeto de Lei nº 4.850-C/2016, que estabelece medidas de combate à impunidade, à corrupção, altera e revoga dispositivos do Código Penal e de Processo Penal e uma gama de leis e dá outras providências. Há que se observar que a onda criminalizatória para consagrar novas figuras penais, adotando um critério maximalista, abarca violações meramente disciplinares transladadas em crimes e por absurdo incluindo divergências doutrinárias e jurisprudenciais na interpretação da lei durante a avaliação concreta de fatos e provas, tornando qualquer irregularidade em ato de improbidade.


15. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, por unanimidade, aprovou o substitutivo do senador Roberto Requião (PMDB-PR) ao projeto que trata dos crimes de abuso de autoridade, após a retirada do texto, do chamado “crime de hermenêutica”. O texto aprovado foi produzido a partir de duas proposições que tramitavam no Senado: o PLS 280/2016, que era o objeto original dos debates sobre esse tema no Senado, do senador Renan Calheiros (PMDB-AL); e o PLS 85/2017, apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que se originou de uma série de sugestões elaboradas pelo Ministério Público Federal.


16. Com a edição da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, e altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Em breve síntese, destaca-se, no caput do art. 1º do novel diploma: “Esta lei define os crimes de abuso de autoridade cometidos por parte do agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abusa do poder que lhe tenha sido atribuído”. Como foi dito acerca da análise ampliada do conceito de funcionário público e servidor público, o conceito de agente público é exemplificativo – servidores públicos civis e militares, a eles equiparados, membros dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais ou conselhos de contas. Repete-se que os agentes públicos só podem agir na esfera de limites do estrito cumprimento do dever legal. Não resta dúvida que o quadro normativo revela a prática de atos mais gravosos à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos que a simples reprimenda administrativa no âmbito disciplinar, civil ou moral, se torna um estímulo de atuares altamente reprováveis.


17. Entende-se revogado o art. 322 do Código Penal pela Lei nº 4.898/65, a qual foi revogada expressamente pela Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019 (crimes de abuso de autoridade - “cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou prevalecendo de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído”), que revogou expressamente o art. 350 do Código Penal.



III - Abuso de Autoridade e o Estado Democrático de Direito


1. O abuso de autoridade constitui uma forma de preocupação constante na reflexão do penalista na ótica jurídica. Seu conceito no Direito Penal incide na função sociopolítica da norma penal que não se limita à satisfação de uma abstrata exigência sistemática. No crime de abuso de poder, também chamado de abuso de autoridade, há uma lesão ao prestígio da instituição pública e ao direito de liberdade individual. A correspondência entre o desvalor do ato e a pena implica a necessidade que o fato previsto a título de crime deva realizar-se com uma lesão relevante ao bem protegido. Há a contrariedade de um bem constitucional relevante em um ato típico do próprio ofício que supera os limites de tolerabilidade estabelecidos do princípio de taxatividade que domina a matéria penal. No desenho constitucional, impõe-se o princípio da clareza e a determinação de norma restritivas em uma vedação das leis restritivas de conteúdo casuístico ou discriminatório, na esteira de Gilmar Mendes, Direitos Fundamentais e Controle da Constitucionalidade, que conclui: “Cumpre indagar, também, se as avaliações impostas pelo legislador não revelam incompatíveis com os princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade (adequação, necessidade e razoabilidade)”.


2. Embora o Brasil viva em um Estado Democrático de Direito, com a imprensa livre e as manifestações populares, em plena democracia, está presente a violência arbitrária dos agentes do Estado, diante da população pobre, favelada e negra, invadindo domicílios, prendendo e interrogando suspeitos para “averiguações”, em nome da segurança pública, ou no caso do crime do colarinho branco, a invasão de escritórios de advocacia (o Presidente da República vetou a proibição de operações de busca e apreensão em escritórios de advocacia que fossem fundadas apenas em declarações dos delatores. O texto vetado foi sugerido pelo Ministro da Justiça, que considerou que poderia “impactar no livre convencimento motivado dos magistrados, além de comprometer a política judiciária” – Lei nº 14.365/2022), à noite, para filmagem e busca de documentos (transformados em “locais de crime”), ou a condução coercitiva de pessoas sem intimação prévia (“prisão para averiguações”), em operações policiais que se caracterizam pela espetacularidade midiática que alimenta a pauta dos grandes grupos jornalísticos, sob o “fundamento” do “combate à impunidade”, além de prisões temporárias e preventivas alongadas, objetivando a obtenção da “colaboração premiada” com a violação da garantia constitucional de não produzir provas contra si. Não se admite a fratura do devido processo legal. Quando se defende um direito penal eficaz não significa olvidar a exigibilidade do cumprimento estrito das garantias fundamentais em um Estado Democrático de Direito. Não se pode desconstruir as normas processuais e o devido processo legal, sob o argumento “justiceiro”, alimentado pela publicidade midiática através de discursos “moralizantes”.


3. Em Jurisprudência Criminal (2002), destaca-se, diante da atualidade, parte da sentença que prolatei no “Caso Aézio”, em 24 de outubro de 1979, na 7ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro: “(...) 3.4. Democracia é um complexo de valores, não se podendo defini-la à luz de critérios isolados, de natureza pluralista; é um produto da cultura ocidental, possibilitando um maior bem-estar pela maior mobilidade nas relações intra e intergrupos. O fundamento político-jurídico está na garantia dos direitos individuais e das liberdades públicas, asseguradas nas ações de um judiciário liberto de limitações para a plenitude da imparcialidade dos julgamentos. A liberdade da vida humana é sempre a liberdade social, é o modo de expressar que a dignidade da vida depende de cada um de nós. Dizia Kelsen, na Teoria General del Estado, que: ‘A liberdade do indivíduo, que fundamentalmente é impossível, perde pouco a pouco a importância diante da comunidade social’; todavia, funda-se a liberdade nas prerrogativas da natureza humana. O Estado de direito não funciona no vácuo, e não é esta a hora da liberdade entendida como um capricho individual; há um novo endereço que á a sua encarnação na sociedade justa. O grande problema das democracias ocidentais é conciliar a liberdade, imprescindível à dignidade do homem, com as exigências de segurança cada vez mais complexas. O descrédito da normalidade jurídica suscita desconfiança na opinião pública a respeito da continuidade e permanência da política legislativa do Estado. O Direito é ontologicamente a projeção do homem na sociedade mediante o exercício de sua liberdade social, traçando os limites através da conduta jurídica. Numa democracia, a sociedade nacional busca viver sob o império da lei. A falta de segurança jurídica, com o mínimo de certeza e de direitos garantidos aos indivíduos, incorre na arbitrariedade e no despotismo. A negação do mínimo de segurança relativa aos direitos fundamentais é uma negativa da própria justiça para com os cidadãos. Os valores supremos da democracia, tais como a liberdade e a justiça, seriam vazios de conteúdo se não fossem desenvolvidos num clima de segurança jurídico-social. A justiça sem segurança seria um programa teórico, e a segurança sem justiça seria o domínio do arbitrário. É no sistema de equilíbrio entre as liberdades individuais e a ordem sociopolítica, que se inspira o bem comum, que se preservam institucionalmente os preceitos de direito, salvaguardando-se mediante a atuação de sanções na medida em que resultem vulnerados através de procedimento legal. A autoridade não pode jamais cortar a liberdade no sentido de opor-se à sua expansão e destruí-la. A autoridade não é senão uma forma de exercício da liberdade. A autoridade justa não pode aniquilar a criatura humana nem subordiná-la aos fins que não estão à altura do homem. 3.5. A crise de nossa época é a crise da fé na liberdade, e a vida diária nos grandes centros urbanos traduz-se em desordem, desassossego, num estado de insatisfação que nem sempre encontra o complemento dialético da satisfação, desembocando às vezes, por isso, na neurose. O humanismo atual encontra-se frente a um homem massificado, despojado de sua personalidade, convertendo-se em órgão de um processo suprapessoal e coletivo, dentro de um regime de massa dominado pelo Estado. As desigualdades de renda, educação, as perspectivas de emprego e as probabilidades de vida, entre indivíduos e grupos sociais, caracterizam nossa sociedade. O enorme recrudescimento na extensão das divisões de trabalho, proporcionada com a industrialização, acarreta padrões altamente complexos de desigualdade relacionados com a educação e o emprego. Quando se analisa as desigualdades, acodem-nos à mente questões tais como os direitos políticos e jurídicos, proventos merecidos e imerecidos, poder, vantagens, distinções e status e acesso às oportunidades educacionais, ao lado dos obstáculos discriminatórios enfrentados por todos que estruturam as desigualdades sociais. A criminalidade deve ser encarada como um fator sociopolítico, e como tal deve ser tratada. Os grupos de indivíduos mais expostos às pressões geradas pelas formas de desorganização social apresentam logicamente maiores probabilidades de ignorar ou impingir as normas sociais. Vive-se num conflito cultural, numa sociedade consumista em que o homem busca a qualquer preço a aquisição de status e, nesta perseguição, viola todos os preceitos ético-jurídicos. 3.6. Surge sempre o questionamento da relação de causalidade omissiva. Quando uma omissão se equipara a uma ação, ou melhor, quando o não evitar um resultado é equiparado à omissão deste? Mezger-Blei, no Strafrecht, I, Allgemeiner Teil, colocaram o problema sob o ângulo puramente causal, e desta forma a pergunta seria: Quando uma omissão é causa de um resultado? Tal questão tem sido respondida no plano da injuridicidade ou da tipicidade, quando se responde que é porque existe um determinado dever de impedir o resultado. A omissão como evento independentemente da conduta, a qual é sempre ativa, consiste sempre no não fazer quando não se deveria fazer e, consequentemente, não fazer quando se deveria fazer. Há uma estrutura típica omissiva na qual o comportamento do agente seria a não execução de um ‘atuar esperado pelo ordenamento jurídico’, isto é, inexecução juridicamente reprovável.


4. Tudo isso foi dito para afirmar que, a nosso juízo, o texto normativo deixa de atingir as finalidades a que se propõe perdendo efetividade na prática e tornando-se apenas simbólico. Cita-se Gilmar Mendes, Direitos Fundamentais e Controle da Constitucionalidade, quando pontua que: “Os direitos fundamentais não contêm apenas uma norma de proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proteção de omissão (Untermassverbot)”. As figuras pecam por serem vagas, diante do princípio da legalidade, aduzindo-se que os elementos subjetivos do tipo são específicos (prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal), o que não ocorria na Lei nº 4.898/65, ora revogada, o que dificulta a prova diante da ação penal incondicionada. De outro lado, parte das penas privativas de liberdade cominadas são igual ou inferior a um ano, possibilitando a aplicação do art. 9º da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional da pena) e, de outro, a cominada, fica no marco de quatro anos, o que possibilita a substituição da pena privativa de liberdade (quando não houver violência ou grave ameaça à pessoa) por restritiva de direitos, fora possibilitar a prescrição intercorrente (na hipótese de prerrogativa de foro) ou superveniente. Ainda tem-se a hipótese da possibilidade de acordo de não persecução penal. O contexto já contém garantias previstas no Código Penal e na Constituição Federal. Reproduz-se o texto da Lei nº 13.869/2019, promulgado e os vetos para uma visão ampla, diante do princípio da especialidade. A simples leitura do texto normativo não exige uma análise mais específica.



IV - Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019


Foi revogado o art. 350 do Código Penal pela Lei nº 4.898/65, que foi revogado expressamente pela Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019 (crime de abuso de autoridade), “cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou prevalecendo de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído”), que revogou expressamente o art. 350 do Código Penal.


 

Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.




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