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Estado de necessidade por colisão de deveres e a COVID-19: quem determina a escolha da internação?

Atualizado: 11 de dez. de 2020

No caso de pandemia, com a falta de respiradores para todos os pacientes, a triste decisão sobre o conflito entre o interesse e o dever cabe unicamente ao médico e não por liminar de magistrado. O princípio que rege a atividade médica é o da razoabilidade pela prevenção da durabilidade da vida futura

1. Foi regulado pela primeira vez pelo Código de Manú. É uma situação de perigo para os legítimos interesses juridicamente tutelados e que só pode conjurar-se por meio da lesão de outros interesses legítimos de outro titular. O fundamento justificador do direito de necessidade tem patamar na utilidade social e na imposição de um mínimo de solidariedade comunitária. Roxin assinala que o estado de necessidade tem sido objeto de trabalho intelectual de duas gerações no Direito alemão. Até que a partir de 1930 teve um maior impulso na doutrina científica a posição contrária à corrente que defendia as denominadas teorias unitárias, que se denominou de teoria diferenciadora, devendo os casos de estado de necessidade ser considerados como causas de justificação ou como causa de exculpação. Ficam postas as duas direções doutrinárias que pretendem sustentar a natureza jurídica do estado de necessidade: a)diferenciadora, que conjuga como justificação (bem jurídico superior) e exculpação (bens jurídicos diferentes); b)unitária: disciplina como justificação ou exculpação, independente da hierarquia do bem jurídico protegido. Em síntese, questionava-se se o estado de necessidade se constituiria como causa de justificação ou de exculpação. Foi um grande desafio o surgimento do estado de necessidade justificante supralegal com apoio em todas as causas de justificação (teorias do fim e da ponderação de bens). Observam-se duas direções: a) não são antijurídicas as intromissões nos interesses juridicamente protegidos que suponham um meio adequado para conseguir um fim reconhecido pelo Estado; b) não atua ilicitamente quem lesiona ou coloca em perigo um bem jurídico de valor inferior, se só desse modo pode salvar um bem jurídico de valor superior. Anota-se na evolução histórico-dogmática a busca de linhas reitoras para as orientações legislativas, principalmente em relação à elaboração do estado de necessidade supralegal diante da ponderação dos bens jurídicos em conflito e o interesse a proteger e a elaboração de uma valoração global éticossocial objetivando o fim correto.

2. A doutrina e o direito pretoriano generalizaram a noção de estado de necessidade congregando na codificação da extinta República Federal da Alemanha (Strafgesetzbuch) a teoria diferenciadora, que distingue o estado da necessidade justificante, excludente da ilicitude (RechtfertigenderNotstand), do estado de necessidade exculpante, só excludente da culpabilidade (EntschuldigenderNotstand), fazendo a comparação avaliativa entre bens e interesses em conflito real. O estado de necessidade configura-se pela existência de uma situação de perigoatual, involuntário e inevitável, que exige ação de proteção necessária para garantir um bem jurídico próprio ou de terceiro, evitando um mal próprio ou alheio de outrem, que viole um dever, tornando a conduta lícita, devendo o mal causado não ser superior àquele que se visa a evitar, a situação de necessidade não tenha sido provocada intencionalmente e o necessitado não tenha, por ofício ou cargo, a obrigação de sacrificar-se. A distinção legal do Código Penal de 1940, mantida pela Reforma de 1984, conservou-se atada à teoria unitária, como causa excludente da antijuridicidade, pouco importando que o bem jurídico sacrificado seja de valor menor do que o bem ameaçado, bem como exista igualdade de valores, distanciando-se da dogmática contemporânea. O projeto de Reforma de 2012 propõe nova redação modificativa (“Considera-se em estado de necessidade quem pratica um fato para proteger bem jurídico próprio ou alheio e, desde que: a. o bem jurídico protegido esteja exposto a perigo de lesão atual ou iminente, não sendo evitável de outro modo; b. a situação de perigo não tinha sido dolosamente provocada pelo agente; c. o agente não tem o dever jurídico de enfrentar o perigo; d. não seja razoável exigir-se o sacrifício do bem jurídico, levando-se em consideração sua natureza ou valor. Se for razoável o sacrifício do bem jurídico, poderá ser afastada a culpabilidade ou ser diminuída a pena”). O que determina a exclusão da antijuridicidade é a necessidade de que a lesão ao bem jurídico seja de maior significação do que o bem sacrificado (interesse preponderante).

3. Por lógico, que a necessidade da lesão ao bem jurídico, diante de determinadas circunstâncias, constitui exclusão da culpabilidade. Bacigalupo, no Principios de Derecho Penal, Parte General 2, diz que a justificação outorgada ao autor se constitui em dever de tolerar imposto ao titular do bem jurídico sacrificado, também denominado dever de solidariedade recíproca. Há dois exemplos clássicos que ilustram a definição da norma codificada que adotou a tese unitária: a) o formulado por Carneades, filósofo e orador grego (215-129 a.C.), de dois náufragos que disputam a mesma tábua de salvação que não tem lugar para ambos. Um deles sacrifica a vida do outro para salvar a sua própria; b) Vitor Hugo, em Os Miseráveis, ao narrar a saga de Jean Valjean, condenado a longa pena de prisão por ter furtado um pão. O estado de necessidade não reconhecido pelo juiz fez célebre o personagem faminto e perpetuou o conflito de bens entre a vida e o patrimônio. Recorde-se o processo na França que foi movido contra LuisaMénard, acusada da subtração de um pão, furto propturnecessitatemfamis ou propternimiamnuditatem, em que o Tribunal de Chateau-Thierry a absolveu, provocando grande polêmica à época. O estado de necessidade apresenta duas formas: a)colisão de bens; b)colisão de interesses. São objeto de salvamento de todos os bens jurídicos. Inicialmente, a doutrina dominante estabelece, observando a ponderação dos bens jurídicos, que a eximente do estado de necessidade possui uma dupla natureza jurídica: a) se o conflito se produz entre bens de igual valor, o estado de necessidade se comporta como causa de exclusão da culpabilidade; b) se o conflito se realiza entre bens jurídicos de distinta valoração, sacrificando o de menor valor, o estado de necessidade será justificante.

4. Propõe-se um espectro mais amplo em relação à ponderação de interesses em conflito, permitindo considerar a totalidade das circunstâncias relevantes para a situação. O estado de necessidade não é só um conflito de interesses, mas também um conflito de bens jurídicos que colidem, devendo haver uma acentuada diferença em favor do interesse salvo. Deve constituir-se em um meio socialmente adequado para a resolução do conflito. Não pode alegá-lo quem tem a obrigação de suportar o perigo por função social, bem como invocá-lo quem houver provocadoa situação de necessidade. O instituto não apresenta nítidas fontes na Antiguidade e nas civilizações greco-romanas, razão por que o estado de necessidade não tem história. Enquanto a legítima defesa é uma instituição única, o estado de necessidade é uma instituição plural. Não há um estado de necessidade, mas vários estados de necessidade (o sacrifício do feto para salvar a vida da gestante, o furto do mendigo para alimentar-se). Para conceituar o estado de necessidade justificante, há que se observar a necessidade de um plano geral e a sua função em relação ao papel diante das eximentes. Tem como escopo a necessidade de salvar o interesse maior sacrificado pelo menor. Há que se fazer a distinção das classes de estado de necessidade, que é em sentido jurídico uma expressão demasiado genérica. É uma situação de perigo para os legítimos interesses juridicamente tutelados e que só pode conjurar-se através da lesão de outros interesses legítimos de outro titular.

5. Impõe-se ao mesmo tempo ao obrigado comportamentos contraditórios e excludentes, e a doutrina divide-se entre a vertente que: a)considera que um estado de necessidade próprio por colisão de deveres só ocorre quando colidem dois deveres de atuar; b)aceita um estado de necessidade quando colidem um dever de atuar e outro de omitir. Diante da colisão de deveres de igual hierarquia, só se reconhece àquele que cumpre com um dos deveres, lesionando o outro, uma causa de exclusão da culpabilidade. O exercício de um direito só opera como causa de justificação quando recai sobre bens ou direitos alheios. A doutrina dominante admite o estado de necessidade quando colidem interesses de igual hierarquia e configura causa de exclusão de culpabilidade.

6. Tem-se o estado de necessidade por colisão de deveres (exercício de um cargo, cumprimento de um dever, exercício de um direito) e afirma-se que as mesmas regras que regem a solução dos casos de estado de necessidade por colisão de interesses são aplicáveis ao caso de colisão de dois deveres que impõem ao obrigado, ao mesmo tempo, atuações per secontraditórias e excludentes. O cumprimento de um dever determina a lesão do outro. A doutrina apresenta duas faces do estado de necessidade próprio por colisão de dever: a) quando colidem dois deveres de atuar; b) quando colidem um dever de atuar e outro de omitir. A diferença básica que existe entre a colisão de bens ou interesses e a colisão de deveres situa-se que nesta, de igual hierarquia, o cumprimento de um dos deveres tem efeito justificante, ainda que ao mesmo tempo se lesione outro dever. Bacigalupo destaca que o cumprimento de um dever só será objeto de consideração como causa justificante quando entrar em colisão com outro dever e, para a doutrina estrangeira, reger-se-á pelas regras do estado de necessidade por colisão de deveres.

7. Posiciona-se a relação entre a legítima defesa e o estado de necessidade: na primeira existe uma repulsa a uma agressão antijurídica, ao passo que no segundo chocam-se o direito com o direito, o dever com o dever. A colisão de deveres constitui uma espécie do estado de necessidade, visto que o dever está agrilhoado a determinado interesse ou bem tutelado, como no caso do advogado que, evitando delito iminente, revela segredo confiado pelo cliente. Se é uma conduta que fere legítimos interesses ou bens de terceiro inocente é difícil aceitar-se no pacote das causas de justificação, visto que tal terminologia (Rechtfertigung) leva implícita a ideia de que se trata de conduta conforme o direito e às vezes expressamente autorizada pelo ordenamento jurídico constitui uma injustiça. Löffler escreve que nas lesões corporais e nas intervenções cirúrgicas o estado de necessidade não pode ser esquecido. A única explicação para posicionar o estado de necessidade como causa de justificação está em que a ação persegue a mesma finalidade da norma, isto é, a ação típica lesiva que é finalisticamente dirigida ao mesmo objetivo esculpido por uma norma protetora de bens jurídicos (compensação de direitos). Embora exista o sacrifício injusto de bens jurídicos no exercício do estado de necessidade sob a tutela do Direito, funda-se em normas permissivas que eliminam a ilicitude da ação.

8. É preciso reconhecer que o estado de necessidade agressivo é considerado em oposição ao estado de necessidade defensivo. O estado de necessidade agressivo leva à elaboração da diferença entre a legítima defesa e a defesa das coisas. Neste, a ação do necessitado dirige-se contra a coisa da qual emana a situação de perigo concreto colocando em risco não permitido os seus bens. Jescheck sustenta que “o estado de necessidade agressivo constitui a expressão consequente do pensamento de ponderação de bens (desaparecimento do injusto do resultado mediante o salvamento do bem mais valioso)”. É considerado oposição ao estado de necessidade defensivo. Para este, há perigo a evitar emanado da pessoa cuja esfera jurídica se intervém com a ação de salvação, adotando-se as exigências especiais, e escalonadas, diante do princípio da ponderação de interesses. Há vertente doutrinária que defende, na hipótese, a existência de uma nova causa de justificação. Na verdade, trata-se de uma situação similar ao estado de necessidade. Cita-se a hipótese de perigo criado por não ação da vítima como no caso da lesão corporal leve em função de ataque epiléptico para evitar dano ou destruição do vaso da Companhia das Índias, de alto valor, pois não se pode obrigar a suportar lesões sérias, se não é possível evitar, abrindo-se espaço livre de direito, que admite ponderação de vida contra vida. Portanto, no estado de necessidade agressivo a ação do necessitado se dirige contra coisa da qual emana a situação de perigo concreto colocando em risco não permitido os seus bens (o cão da raça pitbull salta o muro da casa de A e parte em direção ao transeunte B com a finalidade de mordê-lo, podendo causar-lhe até a morte. Para evitar o dano a bem jurídico próprio, integridade física ou a vida, B saca de seu revólver e mata o cão feroz). Leva à elaboração da diferença entre a legítima defesa e a defesa das coisas, e, no dizer de Jescheck, “o estado de necessidade agressivo constitui a expressão consequente do pensamento de ponderação de bens (desaparecimento do injusto do resultado mediante o salvamento do bem mais valioso)”. Dá-se como exemplo: A subtrai o veículo de B para levar C a um hospital, distante da aldeia onde residiam, diante da falta de táxi naquele local. Deve ser observada a conexão adequada aos “superiores conceitos valorativos da comunidade”.

9. Não cabe a situação de estado de necessidade exculpante, quando, pelas circunstâncias, ao autor pode e deve ser exigido suportar o perigo. Na medida da reprovação, dever-se-á estabelecer o grau da culpabilidade na minoração do injusto cometido. A regra geral é de exigir-se que o autor deva suportar o perigo em uma relação jurídica especial. Diz Jescheck que, para a exclusão do efeito exculpante do estado de necessidade em casos de dever suportar o perigo, resulta decisivo a modificação do conteúdo de injusto e culpabilidade de ato. A existência do dever de garantia relativa à vítima conduz o autor a suportar o perigo (o pai não pode salvar-se de um naufrágio abandonando o filho à morte, que não sabe nadar). Correta a legislação alemã ao estabelecer como causa especial de atenuação da pena no caso de exigibilidade de suportar situação em estado de necessidade exculpante, diante da culpabilidade perante o injusto.

10. No estado de necessidade, a ação protetora é idêntica à ação exercida em legítima defesa, ambas dirigidas a eliminar o perigo de dano de uma agressão que desemboca sobre bens jurídicos. O ponto vital radica-se em seu elemento subjetivo, isto é, em sua direção final encaminhada a evitar o mal que ameaça o interesse juridicamente defendido. O elemento puramente objetivo não justifica o atuar típico. Desaparece a integrante subjetiva da ação protetora quando há abuso, isto é, existe um excesso arbitrário aproveitando-se do estado de necessidade objetivo (relações inamistosas entre vizinhos que regam suas terras com servidão de água). Nossa legislação diz expressamente “direito próprio ou alheio”, não se tratando de uma mera intervenção de terceiro não ameaçado pelo perigo, mas no auxílio necessário pela intervenção de terceiro estranho (o socorro a um menor abandonado ou a uma pessoa ferida ou maltratada transforma-se em um dever jurídico e não apenas em um ato de piedade). Para que o auxílio necessário (Nothilfe) constitua-se em causa de justificação do atuar, é imperativo que o perigo seja atual ou iminente e inevitável. O magistrado na legislação penal de 1984 tem um poder discricionário mais amplo para avaliar se ao agente era lícito exigir o sacrifício do bem jurídico questionado, podendo, ao entender que era lícito requerê-lo, somente atenuar na medida da pena (o que presta auxílio necessário e ignora a legitimidade do estado de necessidade, presente a ilicitude da conduta, diante do erro de proibição que elimina a culpabilidade).

11. Quem assume a posição de garantidor para evitar a concretização de um mal só será autor de uma ação antijurídica, se não tiver o amparo do estado de necessidade, na medida em que assume a posição de garante e até onde esta o obrigue (A, bombeiro, não está obrigado a renunciar a sua vida ou integridade física para salvar os móveis de B no incêndio de sua moradia diante do princípio da razoabilidade. Os tripulantes de um barco pesqueiro não obram ilicitamente ao atirar ao mar todo o pescado e material de pesca da empresa proprietária da embarcação para salvar suas vidas ou o barco). Em resumo, os deveres jurídicos derivados da postura de garantidor, diante da doutrina, são: a)comunidade de vida (relações familiares e de parentesco), como a posição de garante do pai/marido para proteger a prole/ mulher (incêndio, naufrágio, acidentes de trânsito), exige suportar o perigo não devendo deixar de salvar o membro da comunidade de vida sob o pretexto de perigo pessoal; b)comunidade de perigo: deveres de cuidado e vigilância são exigíveis nas montanhas e na selva em relação a grupos de exploradores ou turistas, ou na relação professor/aluno, devendo os guias ou professores suportar pessoalmente o perigo; c)situações especiais: nos delitos de maior potencial ofensivo deve-se garantir a segurança pública com um valor maior na ponderação de bens em conflito real, preservando-se o bem mais relevante. A questão se radicaliza em relação à libertação de presos forçada pela ameaça de matar reféns. A liberação indevida de presos não é um delito menor diante do perigo de sua liberação em massa à comunidade social.

12. Na colisão de deveres de igual valor, o autor só está exculpado por infração ao dever cujo cumprimento se tenha omitido. Por outro lado, quando a colisão é de diferentes valores o autor lesionará um dever de atuar ou de omitir, portanto não importando a forma da conduta em que um dever é menos importante (A, médico, quebra o sigilo profissional para a proteção de uma comunidade ameaçada de contágio). O ponto nodal situa-se na distinção de graduação dos deveres em conflito, sem descuidar daqueles em que é impossível a diferenciação (A, soldado, não pode abandonar o posto de sentinela do quartel em que serve para prestar auxílio a um ferido em um acidente de tráfego). No exemplo citado, há uma concorrência de dois deveres de atuar. Observa-se que, quando na colisão de deveres de valor igual, em que em um há o atuar e no outro há o omitir, prevalece o de omitir (A, médico, desconecta um paciente em estado desesperador e sem chances do único coração artificial existente no hospital para ligá-lo a outro que apresenta reais expectativas de sobrevivência. Sustenta a doutrina, a infração do dever de atuar – dever de socorro – frente ao novo quadro, está justificado).

13. Jescheck diz que, se ocorre um dever de ação com outro de omissão, a preferência é o dever de omissão, ficando, consequentemente, justificado o autor ao infringir por inatividade o dever de ação que o incumbe ao mesmo tempo. A violação do dever do socorro frente ao novo paciente estaria justificada, inexistindo qualquer conflito de deveres. Na hipótese de colisão de dois deveres equivalentes de ação ou de omissão, o autor estaria justificado ao cumprir um ou outro (A e B, acidentados em uma colisão de veículos, ingressam no hospital com iguais chances de sobrevida. Como só há um aparelho, o médico C só conecta A, vindo B a falecer). Jescheck se rebela e diz que o correto é não admitir nestes casos qualquer justificação em relação ao dever de atuar infringido, mas contemplá-los como equivalentes. O atuar e o omitir seriam aqui merecedores de desaprovação. O princípio impossibilitumnullaobligatio só é válido para o mandato de norma que o contempla isoladamente, e a colisão de interesses equivalentes se constituem em causa excludente da culpabilidade. A situação de perigo ou estado de necessidade também não pode ser causada voluntariamente pelo autor do fato necessário, sendo requisito de legitimidade expressado ex lege. A ausência de voluntariedade ou culpa do autor típico é requisito de legitimidade do fato cometido para a salvaguarda de interesses próprios, mas dará origem ao procedimento ordinário de indenização de terceiro por danos materiais ou morais.

14. O critério dos casos de risco permitido, isto é, as ações que colocam em perigo os bens jurídicos no interesse da generalidade, do autor e do lesionado, sendo vital que o risco permitido resulte da aplicação como causa de justificação para a salvaguarda de interesses legítimos. Sabe-se que inexiste uma sociedade sem riscos, pois o risco é pertinente à configuração social. O risco de lesão, ou o surgimento de uma situação concreta de estado de necessidade, permite a existência do risco quando resultem lesionadas outras pessoas. Sem a menor dúvida que os meios de comunicação de massa devem se constituir em um instrumento adequado de salvaguarda da finalidade legítima, não podendo o autor estar convencido de que a manifestação é incerta, devendo ser observado antes de divulgá-la o dever de informar-se corretamente. O risco permitido opera como causa de justificação. Tanto no caso fortuito como no risco permitido, há uma causa de exclusão do tipo de injusto. Muñoz Conde, no Derecho Penal, assinala que há casos de risco permitido que podem ser tratados a partir do estado de necessidade e do princípio de interesse preponderante (A, bombeiro, para salvar B, manda-o saltar do 10º andar de um prédio em chamas para cair na lona, sabendo das reduzidas chances de salvamento). Enfim, os casos de risco permitido, mais do que causa de justificação, são causas de exclusão do tipo de injusto culposo, onde o atuar perigoso é permitido à medida que se realiza com o devido cuidado.

15. O estado de necessidade caracteriza-se pela situação de perigo em que se encontram os bens jurídicos tutelados, pois, inexistindo outro meio para proteger os de maior valor, não há outra opção senão o sacrifício ou lesão dos que possuem menor valor. Ao admitir na definição o princípio da preponderância do valor tutelado, o estado de necessidade justificante encontra sua sede de ilicitude no fato típico. Tal postura não exclui a possibilidade de outras hipóteses dignas de escusa de pena que se encontram no juízo de reprovação (aqueles em que o valor dos bens em conflito é equivalente ou superior ao valor do bem sacrificado). Nem todo caso de necessidade gera uma causa de justificação (teoria da unidade), mas para outros tanto pode gerar uma causa de justificação como uma simples causa de exclusão da culpabilidade (teoria da diferenciação). Há vários exemplos, desde a tábua de Carneados (tabulas uniuscapax) até o homicídio famélico seguido de antropofagia.

16. O estado de necessidade se caracteriza pela colisão de vários interesses legítimos e, em tal ponto, exatamente se diferencia da legítima defesa, na qual os bens do agressor perdem a proteção jurídica em razão da antijuridicidade da agressão atual ou iminente. No estado de necessidade, é preciso sacrificar o interesse social que inclui bens tutelados e protegidos, pois para salvar uns é imperativo que sejam sacrificados outros. Como requisitos básicos do estado de necessidade justificante, tem-se: a) o elemento subjetivo (finalidade de evitar um mal maior); b) o interesse merecedor de proteção (lesão ao bem jurídico alheio, embora o salvado possa ser próprio ou alheio que se constitui no único meio para a conservação do bem jurídico); c) a atualidade (admitida a probabilidade de um dano imediato, sendo que o perigo deve existir e ser conhecido do autor); d) a inevitabilidade por outro meio não ou menos lesivo, devendo existir certa proporcionalidade entre os bens em colisão. Seriam, pois, perante o aspecto normativo da legislação nacional, os seguintes requisitos: a) ameaça a direito legítimo próprio ou alheio; b) presença de perigo atual ou probabilidade de ocorrência de dano imediato; c) inevitabilidade da lesão ao interesse legítimo de terceiro; d) inexigibilidade de sacrifício do bem ameaçado e de dever legal de enfrentar o perigo; e) conhecimento factual justificante. Recorde-se que inexiste o estado de necessidade se o autor do ato tinha a seu dispor outras medidas menos gravosas. Perigo deve ser entendido por uma situação em que se considera como provável a produção de um dano, isto é, dentro do princípio de experiência, entendida como uma situação causante de um prejuízo.

17. O estado de necessidade como causa de justificação engloba a ocorrência de elementos objetivos e subjetivos de justificação. Denomina-se estado de necessidade supralegal quando da formação da construção jurídica emergem situações concretas de exculpação, nas quais o autor culpável deve ser desculpado, diante do limite da exigibilidade jurídica fixada no início da dirigibilidade normativa ou motivação, em razão da desnecessidade excepcional de aplicação de pena. O pressuposto da causa de exculpação nas hipóteses de direito de necessidade (causa de justificação) compreende situação de perigo que ameace qualquer bem jurídico e é pressuposto de exculpação tão só no caso de ameaça a bens determinados (vida, integridade física, honra e liberdade). Admite-se o erro do autor sobre quaisquer desses elementos, excluindo o dolo ou a culpa. O fundamento e o critério da desculpabilidade constatou-se que os estados emotivos que debilitam a vontade são os que precedem o ato decisório (o medo, a ira, a indignação, a compaixão pela eventual vítima, as relações particulares de parentesco ou amizade, para admitir-se a maior ou menor desculpabilidade do fato). Há um conteúdo inferior de culpabilidade do fato em razão da condição de excepcionalidade em que se encontra o autor, motivo pelo qual, sem excluir a autodeterminação, a conduta não expressa uma atitude censurável frente ao ordenamento jurídico-penal na proporção em que pudesse ter ocorrido em outro quadro factual. Quando é removida a base do juízo de valor, tal conclusão se modifica (a. pessoas que são obrigadas a suportar o perigo do estado de necessidade como os bombeiros, soldados e agentes policiais; b. casos de legitíma defesa em que o excesso que é reprovável a despeito da ocorrência do medo ou terror; c. quando o aumento de uma ordem manifestamente antijurídica não resulta exculpado). Atua em estado de necessidade exculpante aquele que se situa em condições factuais de perigo para a vida, a integridade física e liberdade, e comete um fato antijurídico, a fim de evitar o perigo que existe para ele, um parente ou pessoa próxima. Seria uma cláusula de exigibilidade de caráter excepcional (A subtrai seu filho B de um estabelecimento de custódia de menores, porque, a par dos esforços para ajudá-lo, ali há um perigo constante à sua vida ou à sua integridade física).

18. O que atua em estado de necessidade possui um dever de exame, cujo patamar depende da gravidade do fato punível. Quem não se preocupa nos delitos graves em evitar a comissão de fato punível não pode arguir o estado de necessidade. A ação realizada em estado de necessidade deve apartar sempre o perigo. Em nossa legislação atual não há a preponderância valorativa do bem em conflito como tangente diferenciadora entre a causa de justificação e a causa exculpante, havendo a ponderação de bens. Não há que se confundir o estado de necessidade exculpante (conduta necessária) com a inexigibilidade de outra conduta. A possibilidade de exigência de comportamento conforme o direito é fundamento da exculpante do estado de necessidade não discriminante, quando nos bens em conflito o sacrifício seja igual ou superior ao bem protegido. Só há relevância na não exigibilidade quando existe a colisão de direitos. Quando em situação de conflito ou colisão de interesses há o sacrifício do bem tutelado de menor valor; há o estado de necessidade exculpante.

19. Conclusão: no caso de pandemia, com a falta de respiradores para todos os pacientes, a triste decisão sobre o conflito entre o interesse e o dever cabe unicamente ao médico e não por liminar de magistrado. O princípio que rege a atividade médica é o da razoabilidade pela prevenção da durabilidade da vida futura.


 

* Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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