Reflexão em torno de uma visão democrática da construção social-normativa, que tem por finalidade regular a vida dos membros do grupo social, como intervenção estatal mínima de ultima ratio nos conflitos sociais relevantes
1. O Direito Penal é constituído de um complexo de normas jurídicas que objetivam disciplinar os conflitos de interesses não resolvidos pelos demais ramos do Direito. Pode ser classificado em relação: às normas, aos sujeitos, ao território, ao tempo e ao objeto da tutela. É tradicional na doutrina classificá-lo: a) em sentido objetivo, é o conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação das infrações de natureza penal e suas correspondentes sanções (penas e medidas de segurança); b) em sentido subjetivo, é a faculdade que tem o Estado de estabelecer e executar as penas e as medidas de segurança (ius puniendi) preestabelecidas pela norma penal a todos os violadores. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito. É a parte do ordenamento jurídico que tem a tarefa seletiva, valorativa e protetora dos bens vitais e fundamentais da pessoa humana e da sociedade, os quais são erigidos à categoria de bem jurídico.
2. Define-se como o conjunto de normas pertencentes ao ordenamento jurídico público interno, de caráter autônomo, subsidiário, pessoal e imperativo, que disciplina a conduta dos indivíduos, tutelando interesses sociais fundamentais, mediante a imposição de mecanismos sancionários de caráter retributivo e preventivo, objetivando obter determinados comportamentos individuais na vida social preservando os bens jurídicos. Há várias definições subjetivas, objetivas, descritivas e jurídicas.
3. Na visão sociológica, como sistema normativo de controle social, primário e formalizado, é um instrumento de ultima ratio, através do qual o Estado procura estabelecer um modelo de conduta para garantir o processo de socialização mediante um mínimo de sanções para fatos intoleráveis à convivência grupal, impondo limites ao comportamento a fim de permitir o normal funcionamento das relações e manter as formas de vida e de cultura. Só o legislador pode selecionar e hierarquizar os bens jurídicos que são objetos de proteção penal (criminalização primária) sem se descuidar do atuar dos mecanismos de persecução, ou seja, da ação dos operadores que obram na aplicação das normas (criminalização secundária).
4. O Direito Penal é uma construção social-normativa que tem por escopo regular a vida dos membros do grupamento social. Em uma visão democrática deve proteger os reais interesses (relevantes e não bagatelares) dos cidadãos e não só das normas jurídicas. Sua construção teórica abarca também valorações culturais metajurídicas, aproximando-se das ideias de Von Liszt (Tratado de Direito Penal Alemão), de dotar de objetividade científica a dogmática jurídico-penal, colocando-a à disposição do cidadão na construção diária do equilíbrio social. Registre-se, que a combinação dos elementos fáticos e normativos que caracterizam a realidade social são a fotografia e objeto permanente do laboratório de análise jurídica. Parte-se de que o Direito é uma construção caracterizada pela função de regular a vida, que em última instância depende da orientação política do Estado no desenho de Santiago Mir Puig, em Limites do Normativismo Penal, “corresponde a uma função de preservação limitada de delitos, entendidos estes como fatos danosos para os interesses diretos ou indiretos dos cidadãos”. Reconhece a vinculação analógica expressada entre a função da pena e a do Estado, cujo diálogo só poderá existir sobre bases racionais.
5. Tem como missão assegurar a ordem de convivência social e a sua função especial é a proteção das áreas particularmente importantes de convivência humana e dos bens jurídicos, constituindo-se na última etapa do controle social. O Direito Penal de um Estado social e democrático deve garantir a efetiva proteção de todos os membros da sociedade, objetivando a prevenção da realização de comportamentos lesivos para os bens jurídicos. Desta forma, orienta a função preventiva da pena jungida aos princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos, de proporcionalidade e de culpabilidade. Aduza-se, a função de orientar a conduta da pessoa humana (presunção geral), buscando compelir o sujeito a comportar-se conforme o direito, abstendo-se de violar a norma posta (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”).
6. O sistema penal inculca nos cidadãos a noção de certos valores jurídicos que se manifestam no esquema de comportamento moral e que representam uma barreira contra a tendência ao atuar desviante dos padrões toleráveis pela sociedade. Acentua-se que no estado social e democrático devem-se reservar a pena privativa de liberdade, a todos os fatos especialmente intoleráveis por sua grave lesividade social (hediondos ou equiparados, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, a corrupção e os comandos das organizações criminosas), e as restritivas de direitos para os de pequeno potencial ofensivo. Tobias Barreto já escrevia que “o Direito Penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade do povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza, em suma onde se espelha a sua alma”. É um direito público: sua fonte exclusiva é o Estado; não regula as relações dos indivíduos entre si, senão destes com o aquele. Dir-se-ia que, além de ser direito subjetivo, é relativo, acessório, prescritível e intransmissível. É uma ciência cultural, normativa e valorativa. Nilo Batista, no Direito Penal Brasileiro - I, escreve que “para proteger os valores elementares da vida comunitária, o Direito Penal deve saber que não regula o poder punitivo, mas sim pode apenas – e deve – contê-lo e reduzi-lo, para que não se amplie, aniquilando tais valores”. Só o Estado pode ser titular, sendo que as normas penais se dirigem a todos os cidadãos, impondo-lhes fazer ou não fazer alguma coisa. É indiferente que sejam imputáveis ou não, pois trabalha com dois mecanismos: penas e medidas de segurança. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito.
7. O método é comum a todas as ciências jurídicas, isto é, o método lógico-abstrato, dentro do qual se compreendem tanto o método axiomático ou formalista como o método indutivo. A meta a que aspira ao dogmático é a construção da arquitetura jurídica. Polaino Navarrete, no Derecho Penal, destaca dois pontos: a) o Estado intervencionista versus o Estado de autorresponsabilidade dos cidadãos e b) o Direito Penal mínimoversus o maximalista. Ressalte-se que o Estado de autorresponsabilidade do cidadão se corresponderia melhor com um sistema de Direito Penal mínimo. Os sistemas contemporâneos tendem a uma intervenção mínima do Direito Penal nos Estados democráticos de Direito, fortalecendo a autorresponsabilidade dos cidadãos e assim criando uma ampla esfera de liberdade, minimizando os custos sociais que a pena comporta e maximizando os benefícios logrados na cominação punitiva. Daí o avanço do Direito Penal minimalista diante do endurecimento através de um direito maximalista (autoritário). Continua e deve continuar minimalista para o questionamento de limites e garantias. A censura penalé sempre uma intrínseca brutalidade que faz problemática e incerta sua legitimidade moral e política. Para que tenha respostas mais imediatas e positivas é fundamental a redução das taxas de crescimento da violência, visto que a legitimação deve aceitar critérios garantistas, buscando medidas alternativas à pena privativa de liberdade nos tipos penais menos graves. Configura-se mínimo como a intervenção limitada, razoável e proporcional no sistema punitivo em consonância com a intolerabilidade do conflito e a exigibilidade da paz social para atingir o bem comum. Cita-se a passagem de Luís Roberto Barroso, no Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, quando assinala que “Há uma tensão permanente entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos individuais dos acusados. Para serem medidas válidas, a criminalização de condutas, a imposição de pena e o regime de sua execução deverão realizar os desígnios da Constituição, precisam ser justificados e não poderão ter a natureza arbitrária, caprichosa ou desmesurada. Vale dizer, deverão observar o princípio da razoabilidade-proporcional, inclusive e especialmente na dimensão da vedação do excesso”.
8. Busca-se no sistema penal do futuro: a) a necessidade de uma intervenção limitada e limitadora do sistema punitivo com a minimização quantitativa da intervenção penal; b) a ampliação de garantias para os cidadãos com a maximização da prevenção; c) a diminuição de meios coercitivos inidôneos para a repressão. O desejado Direito Penal mínimo e garantista, não obstante a progressiva democratização e racionalização da maioria dos ordenamentos jurídico-penais, no início deste século XXI, constitui-se em uma figura retórica, mais utópica do que real. Há movimentos flutuantes, funcionais, variáveis e até contraditórios. Destaca-se a definição resumida proposta por Soler, no Derecho Penal Argentino (“denomina-se Direito Penal a parte do Direito que se refere ao delito e às consequências que este acarreta, isto é, geralmente a pena”), e, sem alongar em uma visão ilustrativa, é respeitável a posição de Köhler, que se abstém de toda forma de definição, visto que toda definição é um silogismo que, bem colocados os problemas, é resolvido tautologicamente.
9. Apregoa Mezger, no Strafrecht, que é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, conectando no delito como pressuposto a pena como consequência jurídica. É a parte do ordenamento jurídico que tem a tarefa da proteção dos bens vitais e fundamentais da pessoa humana e da comunidade, os quais são erigidos à categoria de bens jurídicos. É o bem ou valor considerado pela norma penal como merecedor e necessitado de proteção jurídica, diante do princípio de intolerabilidade do conflito, para garantir a paz social. Portanto, embora não requeiram especial tipo de classificação, pois todos têm sua origem na pessoa humana, segundo seu titular, a doutrina diferencia: a) individuais (vida, integridade física, honra, liberdade, patrimônio); b) coletivos (incolumidade pública, meio ambiente, fé pública e paz pública); c) estatais (administração da justiça, soberania, ordem pública e econômica); segundo a percepção: a) concretos (vida, integridade física, patrimônio); b) abstratos (incolumidade pública, fé pública, paz pública); segundo a natureza: a) naturais (vida, integridade física); b) somativos (patrimônio, administração pública e econômica). Toda norma tem um objeto e todo objeto possui um interesse.
10. Na hierarquização legal da proteção aos bens e interesses, tem-se: a) pessoa humana; b) patrimônio; c) propriedade imaterial; d) organização do trabalho; e) sentimento religioso e respeito aos mortos; f) dignidade sexual; g) família; h) incolumidade pública; i) paz pública; j) fé pública; l) administração pública. A sanção penal é a extrema ratio de que utiliza o Estado, depois de esgotados todos os meios e em um plano lógico-sistemático; pode ser posterior às outras normas não penais, no sentido de acrescentar, reforçar ou completar a tutela prestada. O legislador, que tem a função de cominar, deve evitar a incriminação de condutas por meras razões políticas de oportunidade (simbolismo), pois a reprovação pela imposição da pena deve incidir sobre a conduta ética, social e culturalmente de real potencial danoso à sociedade. O princípio da legalidade impõe que o tipo normativo deva ser sempre mais restrito (fechado) objetivando uma maior resistência à volúpia do poder punitivo, limitando-se a tentação do “estado de polícia”, inventando-se novas fontes do direito, pelo desenfreado ativismo judicial. Carlos Alexandre Campos, em Dimensões do Ativismo Judicial do STF, aponta a ampliação da presença “normativa da Corte Suprema na vida pública e privada brasileira e o efeito por diferentes decisões ativistas”, estando “motivado pela dinâmica político-democrática de intervir nos processos decisórios cruciais, no governo e na sociedade com intensidade e profundidade”. Humberto Ávila, ao abordar a descrição, construção e reconstrução da norma, ressalta que “A interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas com um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”. O Poder Judiciário concretiza o ordenamento jurídico perante o caso concreto.
11. Repita-se, a única fonte do Direito Penal é a lei formal. A pena é a ultima ratio na defesa da ordem social, isto é, só deve ser recorrida quando imprescindível, diante da ineficácia de outras formas de reação jurídica (tem caráter subsidiário e, assim, fragmentário). O princípio da intervenção mínima, como princípio fundamental, é dirigido pelo princípio da intolerabilidade nos limites de utilidade social. A dignidade do bem jurídico impõe o dever de atuar na proteção dos imprescindíveis à vida social (princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos), passando pelo princípio da ofensividade. Cumpre uma função de garantia diante da intolerabilidade de atuares violadores de valores de transcendência social (princípios da liberdade e da tolerância). Poderia ser considerado como direito de ultima ratio, secundário em relação a outros ramos do ordenamento jurídico. A relação com os demais é complexa em várias vertentes, não se podendo emitir um juízo único sobre a sua independência. Porém, é certo que é basicamente independente, e suas consequências, pelo contrário, dependentes em seus pressupostos. É independente em relação às suas consequências jurídicas – utilização de meios que lhe são reservados (penas e medidas de segurança).
12. Caracteriza-se por seu perfil de caráter pessoal (intransmissibilidade da sanção penal), autônomo, sancionador, imperativo, aflitivo, preventivo e assegura as liberdades individuais. É um instrumento de controle social primário que se vincula aos comportamentos desviantes, cujos critérios de seleção são de difícil sistematização, através da ameaça de sanções concretas. Embora a criminalização primária constitua a primeira etapa de seleção, operando em certo plano abstrato, só se atinge o nível do concreto pela criminalização secundária. Schmidhäuser, no Strafrecht (1984), advoga que a ciência do Direito Penal trabalha dentro do âmbito das denominadas ciências espirituais, culturais e normativas, tendo a pena como ferramenta mais importante. A sanção jurídica constitui fenômeno da vida espiritual valorativa. A missão científica essencial tem como patamar estabelecer, de forma coerente para ser compreendida, as conexões espirituais e as estruturas já existentes no Direito, tendo como objeto primário de tais aspirações as leis penais vigentes.
13. A proteção dos bens jurídicos é o objetivo do Direito Penal, sendo vital para a sociedade, para o indivíduo e, por sua finalidade, de última etapa do controle social, é juridicamente tutelado. O conceito de bem jurídico só pode configurar-se partindo do pertencente à teoria geral dos valores. Bem é tudo que satisfaz às necessidades físicas, intelectuais ou morais da pessoa humana e, à medida que recebe a proteção do Direito. Os valores existenciais para o indivíduo e a coletividade, objetos de proteção, são: a vida, a integridade física e a saúde, a honra, a liberdade individual, o patrimônio (material e imaterial), a organização do trabalho, o sentimento religioso, o respeito aos mortos, a sexualidade, a família, a incolumidade, a paz, a fé e a administração pública, que se traduzem em bens jurídicos. A seleção, diante das exigências concretas individuais, observados os princípios de proteção, liberdade e tolerância, escolhidos pela classe dominante, é ditada pelos interesses fundamentais da pessoa humana no cotidiano do convívio. O conceito é amplo e não restrito, visto que se incluem os valores materiais e imateriais, abrangendo coisas e direitos multidisciplinares.
14. No campo do Direito Penal, o bem jurídico tutelado pela norma se caracteriza pela ameaça penal, objetivando prevenir possíveis agressões ao indivíduo e à massa social. É para efeitos pedagógicos de melhor técnica na sua investigação partir da análise concreta da Parte Especial, sendo incontestável a inexistência de um ilícito penal sem bem jurídico tutelado. Impõe-se, pois, a distinção entre o bem juridicamente tutelado e o objeto-fim da norma penal. Admite-se a renúncia à tutela jurídica pelo titular do bem disponível (teoria do balanceamento dos interesses).
15. Repita-se que, a função do Direito Penal consiste na proteção dos bens jurídicos, especialmente importantes (valores e interesses). As penas impostas como contenção, do grave conflito social, serve para, no futuro, diante do princípio da dignidade da pessoa humana presa, ser reinserida, se possível, na comunidade social, no prazo do exercício de uma vida útil. No reconhecimento do princípio da culpabilidade, de que a pena está jungida, em princípio, no fundamento e na medida da culpabilidade, como uma declaração em favor da dignidade da pessoa a que se deve proteger de uma redução a mero objeto de medidas intimidantes e correcionais. A culpabilidade do autor é o fundamento da individualização da pena. A primeira edição do projeto alternativo alemão (1966) defendia que as penas tendem “a proteção dos bens jurídicos e a reinserção do autor na comunidade jurídica” (§ 2º, I), sendo para alguns uma despedida radical a Kant e a Hegel. Não se pode olvidar o requisito de proteção, razão pela qual o Direito Penal tem uma natureza fragmentária. A pena não só se justificará pela culpabilidade, mas que será limitada por ela. Grife-se a formulação feita por Hanz Schultz pertinente ao § 2º do projeto alternativo: a pena “não é parte de um processo metafísico, senão uma amarga necessidade em uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens”.
16. Desta interpretação sobre a proteção dos bens jurídicos deriva a concepção do injusto penal como lesão do bem jurídico. Cumpre uma função reparadora de equilíbrio diante do sistema social a fim de evitar uma sociedade anômica, buscando a paz social e a segurança pública, pois se constitui em instrumento de controle social. O bem jurídico desempenha duas funções relevantes: a) garantidora ou limitadora da tarefa legiferante penal; b) teleológica-sistemática, básica para limitar a tentação de aumento da matéria de proibição, avassaladora do Direito Penal. Tal tarefa implica introduzir o pensamento teleológico na construção dogmática. Assume iniludível função de caráter axiológico de singular relevância no plano científico, com destaque para o momento de ponderação dos singulares objetos estimados normativamente como merecedores da tutela. Aduza-se a determinação dos fins das normas jurídico-penais e dos singulares tipos, tanto em referência ao âmbito de fundamento do injusto penal, quanto às causas de justificação.
17. Note-se que se impõem novas estruturas sociais, políticas e econômicas perante a sociedade em contínuo processo de mutação, surgindo novos conflitos que conduzem o Direito à dilucidação e correta equação nos seus múltiplos níveis da problemática atinente à legitimação, impulsionando rupturas criadoras e normativas em um discurso com raízes na vivência prática e normativa da comunidade. Admite-se a função de controle social (“conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetivam promover, organizar e garantir os indivíduos dentro de modelos e normas comunitárias”). Como último instrumento de controle, utiliza a ameaça sancionária à liberdade, à restrição de direitos e de perdas no patrimônio dos cidadãos. Igualmente, não é o único, e sim o último, instrumento de controle social (escolarização, religião, trabalho, organizações sindicais, partidos políticos, educação familiar, meios de comunicação e esportes). Como instrumento de controle formalizado, sua atuação deve estar garantida por normas (seguras, prévias, previsíveis e controláveis) para a sua legitimidade. É parte dos mecanismos que objetivam alcançar determinados comportamentos sociais para buscar a segurança pública e a paz social, declarando certos atuares como indesejáveis e ameaçando a sua realização com a aplicação de sanções de acordo com o grau de censura (razoabilidade-proporcionalidade), diante da danosidade social, operando junto a outros instrumentos de idêntica finalidade.
18. A função éticossocial (mínimo ético) é defendida por Welzel, no Das deutsches Strafrecht, que reconhece ao Direito Penal uma significativa função, configuradora dos costumes (sittenbildende Funktion). Portanto, para ele, o bem jurídico é o “mínimo ético socialmente reconhecido”, de fundamento jurídico-natural, garantido pelo Direito Penal. A proteção de normas morais, religiosas ou ideológicas, cuja violação não tenha repercussão social, não pertence ao campo de proteção do Estado social e democrático de Direito, salvo quando normas morais elementares, de observância exigida para evitar negativas consequências sociais. Ao legislador é defeso legitimar, nesta esfera de âmbito, uma intromissão na liberdade da pessoa humana. Foi afastada a determinante do merecimento de pena por mera violação de determinados valores éticos estabelecidos pela sociedade dominante, diante da separação do direito e da moral, situando-se a questão na danosidade social. Os comportamentos desvalorados são os que causam relevante dano social. A teoria do bem jurídico cumpriria uma dupla função: a) dogmática, quando interpreta a lei; b) crítica, quando identifica o objeto da lesão constitutiva do injusto. O bem jurídico já entendido por Von Liszt, seria o interesse juridicamente protegido (indivíduo-comunidade).
19. Repita-se que a seleção e o ordenamento hierárquico de bens jurídicos pressupõem uma concepção social cuja danosidade encontra como apoio um fenômeno social que é definido de forma relativa com referência a decisões estruturais prévias. A consequência jurídica de maior transcendência é a pena que atinge exclusivamente o autor do injusto penal que obrou reprovavelmente. Partindo desta função e da particularidade de seus meios de reação, torna-se necessário dizer que a atual denominação Direito Penal é bastante limitada, em razão do âmbito de suas tarefas. Contemporaneamente, se converte em um instrumento de domínio das grandes perturbações sociais, tornando os bens jurídicos universais a maioria dos alvos de proteção. Registre-se que pressionado pelas mídias ou resultados de prevenção e rápidas respostas, o legislador penal busca saída política através do aumento das penas, do incremento dos crimes de perigo abstrato, da restrição aos benefícios no cumprimento da pena, e pelo direito penal simbólico. Bacigalupo, no Derecho Penal, lembra que os conceitos fundamentais do Direito Penal dependem basicamente do referencial ato-autor, classificando-se em direito penal do ato (contemplando, primeiramente, a lesão à ordem jurídica ou à ordem social e, em segundo plano, o autor, com seu perfil, que carece de identidade para dar como cumpridos os pressupostos da pena) e direito penal do autor, que possui tão só uma função sistemática. O Direito Penal contemporâneo se traduz pelo direito do ato (conduta) e jamais pelo do autor, o qual só pode ser reprovável por aquilo que fez e não pelo que é.
20. A metodologia dogmática se ocupa da análise histórico-dogmática das escolas e vertentes jurídico-penais e dos critérios configurativos dos conceitos, sendo que as fontes estão ligadas com a teoria da lei penal, com destaque para o princípio da legalidade (normas constitucionais), o exame da lei penal em sua vigência espacial, temporal e a sua interpretação. Não existe uma definição única, exata ou completa, pecando todas por omissão, mas o que se pretende é chegar a uma aproximação do conceito de Direito Penal. Adota-se, em síntese, como definição, ser um conjunto de disposições jurídicas que descreve, através dos tipos penais, as concretas figuras do injusto, cominando com uma pena proporcional à sua gravidade, que é o objeto de conhecimento a que se referem como ciência, política e arte. Não se pode deixar de registrar a influência das ideias políticas na esfera de âmbito da criação legislativa, diante dos conflitos sociais, políticos, culturais e econômicos, e dos modelos libertários ou repressores estimulados pelos órgãos de formação da opinião pública, com destaque as redes sociais (fonte política de orientação dos atuais legisladores). Toda reforma constitucional vai seguida de uma parcial reforma da legislação penal, que tem força obrigatória por sua positividade. O legislador deve evitar o simbolismo da incriminação de condutas com irrelevância éticossocial ou cultural.
21. A legitimação do Direito Penal ocorre com a demonstração de que é capaz de produzir efeitos satisfatórios sobre o infrator e a sociedade. A crise da legitimação surge com os movimentos conservadores que afetam o caráter humanitário e garantista com a real expansão do modelo repressivo e consequente redução das garantias individuais e manutenção de privilégios. A doutrina penal tem atualmente a concepção do bem jurídico em uma teoria da danosidade social, marcando importantes orientações da política criminal. A denominada teoria tridimensional do Direito (Miguel Reale) coloca em relevo as três dimensões essenciais da experiência jurídica: sociedade, norma e valor. A posteriori sustentou-se a necessidade de incorporar uma nova dimensão, útil para o conhecimento do Direito: o tempo, medido ao curso da história (teoria tetradimensional). A dimensão social do Direito situa-se no fato social, ou melhor, em um fato com relevância ou projeção social. Todo delito implica lesão ou perigo de dano a um bem jurídico; daí a necessidade da proteção social contra o injusto penal, pois a ação delitiva transcende as barreiras da própria pessoa individualmente, lesionando a esfera alheia de forma grave a ponto de a sociedade considerar intolerável e merecedora a cominação de pena.
22. A função de garantia de identidade normativa da sociedade é dada pela contemporânea construção normativista de Günter Jakobs, no Tratado de Direito Penal, que não prescinde de valores éticossociais na proteção e tutela penal e oferta uma dura crítica ao bem jurídico, pois se separa de uma visão tradicional do Direito Penal como ordenamento protetor de bens jurídicos, sustentando que não são lesionados tão só por ações humanas, mas também por acontecimentos naturais e não são suscetíveis de reparação. A função do Direito Penal, sustenta, está no “asseguramento cognitivo da vigência da norma” (Scherung ou Bestätigung der Normgeltung), no reconhecimento ou manutenção da validade do Direito, cuidando-se de uma “função de garantia da identidade normativa da sociedade”. Assim, objetiva que suas normas sigam “os olhos da sociedade” vigente e que sejam válidas, que façam espargir seus efeitos. A norma é a identidade da sociedade e a sua validade dispensaria mediatamente os bens jurídicos protegidos.
23. Por último, tem-se a função promocional como produtor da mudança social, limitando-se a proteger ou consolidar um status quo existente (modelo conservador), ou a impulsionar a sociedade de forma ativa e empreendedora, buscando mudanças de atitudes. Daí a ideia de uma função pedagógica com patamar em determinados bens jurídicos como paradigma do cidadão. Tal postura conduz às graves consequências de um processo de neocriminalização, com o aumento de “esferas da realidade” que originam riscos. Haveria um intervencionismo inaceitável como modelo punitivo. A função simbólica, isto é, o efeito psicológico do Direito Penal como símbolo de respeito aos bens jurídicos, é a vertente em que alguns autores imaginam legitimar o sistema penal sobre a função simbólica da pena. Como um mito, teria uma função psicológica sobre a massa social (sentimento de segurança ou adverso de desconfiança, descrédito ou frustração), mas não olvidando que a sociedade tem que possuir a convicção de que as normas se aplicam com eficácia na proteção dos bens jurídicos. Luigi Ferrajoli, no Diritto e ragione, diz que “a lei penal não tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados pelos efeitos lesivos para terceiros”.
24. Não se pode nem se deve pedir mais ao Direito Penal. O fim é servir à Justiça através da busca de soluções justas diante das questões jurídicas dos conflitos sociais intoleráveis, procurando alcançar a segurança jurídica. Aliás, Radbruch, na Rechtsphilosophie, sustenta que a segurança jurídica, ao lado da justiça e da conformidade a fins, são os elementos que compõem o núcleo do Direito e sem os quais ele não se caracteriza. Enquanto se refere ao fato, diz respeito a uma norma-princípio. Na dogmática penal contemporânea, cumpre uma função de tutela e proteção do bem jurídico, valores fundamentais para a pacífica vida em sociedade, objetivando a paz social e o bem comum. Jescheck, no Lehrbuch des Strafrechts, escreve que a missão do Direito Penal é a proteção da convivência humana, de maneira especial, o ordenamento jurídico deve garantir a obrigatoriedade geral de todas as normas vigentes e fazer frente a suas violações. Acode a coação estatal para assegurar que não se frature a ordem jurídica, contendo a arbitrariedade das pessoas, mediante adequada (proporcional) limitação da liberdade, fazendo que seja compatível com o nível global da Nação para garantir a proteção da sociedade e assegurar a paz pública. O Direito Penal “não só restringe, mas também cria a liberdade”. O discurso midiático da impunidade retroalimenta um processo desidentificado com o da criminalização, catapultando a voracidade da punição a qualquer título, para acalmar o pânico coletivo, fraturando os princípios básicos de um Estado de Direito. David Garland, em A cultura do controle, pontua que no “[...] discurso político fortemente carregado de temas relacionados ao controle social, [...] toda decisão é tomada sobre as luzes dos holofotes e a disputa política e todo erro se transforma em escândalo”. Ninguém nasce delinquente, o crime não se herda, não se imita, não se inventa, não é algo fortuito ou irracional, o crime se aprende.
25. Deve-se ter em mente que o Direito Penal necessita manter seus laços com as mudanças sociais. Ele precisa ter respostas prontas para as perguntas de hoje, e não pode sempre retroceder a um puritanismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre a norma e sua violação. Precisa continuar desenvolvendo-se em contato com a sua realidade. A questão decisiva, porém, será de quando de sua tradição deverá abrir mão a fim de manter esse contato. Essa questão será afinal decidida politicamente, sem influência significativa das ciências penais. Assim, elas têm a tarefa de produzir ou de desenvolver alguns topoi mínimos, que sem uma decisão política, não deveria ser legitimamente adotada. Entre essas bases mínimas, inclui-se com destaque a difusão das garantias penais e processuais, não se constituem relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, como requisitos de sua legitimação. A busca de um ponto de equilíbrio não significa o retrocesso à emergência, nem a renúncia aos postulados garantistas. É relevante mencionar o papel da criminologia, definida como ciência empírica, causal-explicativa, e multidisciplinar, que se ocupa da realidade social, do estudo do delito, do perfil do autor, da vítima e do controle social, objetivando avaliar os conflitos do cotidiano para informar ao Direito Penal, o grau de intolerabilidade, sugerindo ou não a criminalização/descriminalização de atuares e a elaboração de programas de conscientização e mobilização, buscando a prevenção geral positiva, através dos diversos modelos e respostas, preservando a dignidade da pessoa humana no sistema criminal. Assim, a criminologia, a política criminal e o Direito Penal, integrados, podem e devem contribuir para o desenvolvimento social e democrático. Os problemas criminológicos atuais são bem diferentes do passado, ante as mutações sociopolíticas das sociedades contemporâneas. Grife-se que a criminologia, como ciência, em um enfoque multidisciplinar e integrado tem objeto e método próprio nos campos operativos, funcionando como uma central de informações para o Direito Penal, que permite a formulação de regras jurídicas para disciplinar o comportamento do grupo social, preservando os bens jurídicos. Aduza-se, na linha de David Garland, que a ideologia do espetáculo foi definitivamente institucionalizada na sociedade pós-moderna, formando a consciência deformada da realidade social.
26. A prevenção de futuros comportamentos criminais é realizada através de duas estratégias: da prevenção geral e da prevenção especial. Para uns, a prevenção se realiza mediante a retribuição como exemplo, dirigindo-se a todos integrantes da comunidade jurídica; já para outros, a prevenção deve ser especial, procurando acirrar a pena sobre o violador da norma, a fim de que aprenda a conviver sem realizar condutas que perturbem a tranquilidade social. O princípio da prevenção conjuga-se com o princípio dos bens jurídicos, confundindo-se em seus efeitos, pois o Direito Penal desempenha uma tarefa seletiva, valorativa e protecionista de bens jurídicos, enquanto bens e valores da pessoa e da coletividade. Hassemer, nos Fundamentos del Derecho Penal, ressalta que a formalização evita uma atuação de surpresa, possibilita saber as consequências de sua intervenção e seleciona, limita e estrutura a possibilidade de um comportamento do sujeito do injusto. Colhem-se como conclusões que deve ser mantido o modelo de Direito Penal mínimo, diante do racionalismo jurídico, garantista com limites ou proibições, presidido pelo Estado Democrático de Direito, isto é, um tipo de ordenamento no qual o Poder Público, em especial o ius puniendi, esteja rigidamente limitado e vinculado às leis e à Constituição. É certo que o Direito Penal é racional na proporção da previsibilidade da intervenção estatal, afastando-se a aspiração autoritária. Nem a incerteza do ato, nem a incerteza do Direito.
* Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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