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O Estado punitivo e a violência arbitrária

Foto do escritor: Álvaro Mayrink *Álvaro Mayrink *

O autor traça um desenho do papel do direito penal, percorrendo o fascínio pela visão histórica, e faz ressurgir, diante da contemporaneidade de novos e reciclados conflitos sociais, uma abordagem crítica temática do direito do Estado de punir, observados os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa, e o abuso do seu exercício pelos agentes do Estado, violando o princípio da legalidade no estado social e democrático de direito

Álvaro Mayrink da Costa*


1. O Direito Penal é constituído de um complexo de normas jurídicas que objetivam disciplinar os conflitos sociais não resolvidos pelos demais ramos do Direito. Pode ser classificado em relação: às normas (tarefa seletiva, valorativa e protetora), aos sujeitos, ao território, ao tempo e ao objeto da tutela. É tradicional na doutrina classificá-lo: a) em sentido objetivo, é o conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação das infrações de natureza penal e suas correspondentes sanções (penas e medidas de segurança); b) em sentido subjetivo, é a faculdade que tem o Estado de estabelecer e executar as penas e as medidas de segurança (ius puniendi) preestabelecidas pela norma penal a todos os violadores. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito. É a parte do ordenamento jurídico que tem a tarefa seletiva, valorativa e protetora dos bens vitais e fundamentais da pessoa humana e da sociedade, os quais são erigidos à categoria de bem jurídico. Luís Roberto Barroso salienta que “Nas circunstâncias brasileiras, o direito penal deve ser moderado, mas sério. Moderado significa evitar a expansão de medidas de seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional das penas. Sério significa que sua aplicação deva ser efetiva, de modo a desempenhar o papel disuasório da criminalidade, que é a sua essência”.


2. Define-se como o conjunto de normas pertencentes ao ordenamento jurídico público interno, de caráter autônomo, subsidiário, pessoal e imperativo, que disciplina a conduta dos indivíduos, tutelando interesses sociais fundamentais, mediante a imposição de mecanismos sancionários de caráter retributivo e preventivo, objetivando obter determinados comportamentos individuais na vida social preservando os bens jurídicos. Há várias definições subjetivas, objetivas, descritivas e jurídicas. O valor do Direito é a justiça como unidade concreta dos atos humanos que configuram o bem comum e representa o pressuposto de toda a ordem jurídica. Contemporaneamente, a palavra justiça é vista em sentido objetivo como ordem social, segundo valores da liberdade e da igualdade. Kant definia que “o direito é um conjunto de condições mediante as quais o arbítrio de cada qual deve se acordar com o direito dos outros, segundo uma lei universal de liberdade”. Na lição de Miguel Reale, na Filosofia do Direito, “Realizar o direito é, pois realizar os valores de convivência”. E, conclui que “jamais se poderá compreender o direito como uma abstração, lógica ou ética, destacada a experiência social, pois o direito é uma das dimensões essenciais da vida humana”.   


3. Na visão sociológica, como sistema normativo de controle social, primário e formalizado, é um instrumento de ultima ratio, através do qual o Estado procura estabelecer um modelo de conduta para garantir o processo de socialização mediante um mínimo de sanções para fatos intoleráveis à convivência grupal, impondo limites ao comportamento a fim de permitir o normal funcionamento das relações e manter as formas de vida e de cultura. Só o legislador pode selecionar e hierarquizar os bens jurídicos que são objetos de proteção penal (criminalização primária) sem se descuidar do atuar dos mecanismos de persecução, ou seja, da ação dos operadores que obram na aplicação das normas (criminalização secundária).


4. O Direito Penal é uma construção social-normativa que tem por escopo regular a vida dos membros do grupamento social. Em uma visão democrática deve proteger os reais interesses (relevantes e não bagatelares) dos cidadãos e não só das normas jurídicas. Sua construção teórica abarca também valorações culturais metajurídicas, aproximando-se das ideias de Von Liszt (Tratado de Direito Penal Alemão), de dotar de objetividade científica a dogmática jurídico-penal, colocando-a à disposição do cidadão na construção diária do equilíbrio social. Registre-se, que a combinação dos elementos fáticos e normativos que caracterizam a realidade social são a fotografia e objeto permanente do laboratório de análise jurídica. Parte-se de que o Direito é uma construção caracterizada pela função de regular a vida, que em última instância depende da orientação política do Estado no desenho de Santiago Mir Puig, em Limites do Normativismo Penal, “corresponde a uma função de preservação limitada de delitos, entendidos estes como fatos danosos para os interesses diretos ou indiretos dos cidadãos”. Manifestações por parte da imprensa, de natureza crítica, satírica, agressiva, grosseira ou deselegante não autorizam, por si sós, o uso do direito penal para, mesmo que de forma indireta, silenciar a atividade jornalística (STJ, AgRg no HC 691.897/DF, 6ª T., rel. p/ acórdão Min. Sebastião Reis Junior, j. 17.5.2022). Reconhece a vinculação analógica expressada entre a função da pena e a do Estado, cujo diálogo só poderá existir sobre bases racionais.


5. Tem como missão assegurar a ordem de convivência social e a sua função especial é a proteção das áreas particularmente importantes de convivência humana e dos bens jurídicos, constituindo-se na última etapa do controle social. O Direito Penal de um Estado social e democrático deve garantir a efetiva proteção de todos os membros da sociedade, objetivando a prevenção da realização de comportamentos lesivos para os bens jurídicos. Desta forma, orienta a função preventiva da pena jungida aos princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos, de proporcionalidade e de culpabilidade. Aduza-se, a função de orientar a conduta da pessoa humana (presunção geral), buscando compelir o sujeito a comportar-se conforme o direito, abstendo-se de violar a norma posta (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”).


6. O sistema penal inculca nos cidadãos a noção de certos valores jurídicos que se manifestam no esquema de comportamento moral e que representam uma barreira contra a tendência ao atuar desviante dos padrões toleráveis pela sociedade. Acentua-se que no estado social e democrático devem-se reservar a pena privativa de liberdade, a todos os fatos especialmente intoleráveis por sua grave lesividade social (hediondos ou equiparados, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, a corrupção e os comandos das organizações criminosas), e as restritivas de direitos para os de pequeno potencial ofensivo. Tobias Barreto já escrevia que “o Direito Penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade do povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza, em suma onde se espelha a sua alma”. É um direito público: sua fonte exclusiva é o Estado; não regula as relações dos indivíduos entre si, senão destes com o aquele. Dir-se-ia que, além de ser direito subjetivo, é relativo, acessório, prescritível e intransmissível. É uma ciência cultural, normativa e valorativa. Nilo Batista, no Direito Penal Brasileiro - I, escreve que “para proteger os valores elementares da vida comunitária, o Direito Penal deve saber que não regula o poder punitivo, mas sim pode apenas – e deve – contê-lo e reduzi-lo, para que não se amplie, aniquilando tais valores”. Só o Estado pode ser titular, sendo que as normas penais se dirigem a todos os cidadãos, impondo-lhes fazer ou não fazer alguma coisa. É indiferente que sejam imputáveis ou não, pois trabalha com dois mecanismos: penas e medidas de segurança. No plano do dever-ser, tem por fim a manutenção e a integração da ordem jurídica e social contra o delito.


7. Busca-se no sistema penal do futuro: a) a necessidade de uma intervenção limitada e limitadora do sistema punitivo com a minimização quantitativa da intervenção penal; b) a ampliação de garantias para os cidadãos com a maximização da prevenção; c) a diminuição de meios coercitivos inidôneos para a repressão. O desejado Direito Penal mínimo e garantista, não obstante a progressiva democratização e racionalização da maioria dos ordenamentos jurídico-penais, no início deste século XXI, constitui-se em uma figura retórica, mais utópica do que real. Há movimentos flutuantes, funcionais, variáveis e até contraditórios. Busca-se uma nova onda de Iluminismo, diante da tendência ao obscurantismo, sob o rótulo da impunidade, estimula-se o populismo vingança. Destaca-se a definição resumida proposta por Soler, no Derecho Penal Argentino (“denomina-se Direito Penal a parte do Direito que se refere ao delito e às consequências que este acarreta, isto é, geralmente a pena”), e, sem alongar em uma visão ilustrativa, é respeitável a posição de Köhler, que se abstém de toda forma de definição, visto que toda definição é um silogismo que, bem colocados os problemas, é resolvido tautologicamente. 


8. Na hierarquização legal da proteção aos bens e interesses, tem-se: a) pessoa humana; b) patrimônio; c) propriedade imaterial; d) organização do trabalho; e) sentimento religioso e respeito aos mortos; f) dignidade sexual; g) família; h) incolumidade pública; i) paz pública; j) fé pública; l) administração pública. A sanção penal é a extrema ratio de que utiliza o Estado, depois de esgotados todos os meios e em um plano lógico-sistemático; pode ser posterior às outras normas não penais, no sentido de acrescentar, reforçar ou completar a tutela prestada. O legislador, que tem a função de cominar, deve evitar a incriminação de condutas por meras razões políticas de oportunidade (simbolismo), pois a reprovação pela imposição da pena deve incidir sobre a conduta ética, social e culturalmente de real potencial danoso à sociedade. O princípio da legalidade impõe que o tipo normativo deva ser sempre mais restrito (fechado) objetivando uma maior resistência à volúpia do poder punitivo, limitando-se a tentação do “estado de polícia”, inventando-se novas fontes do direito, pelo desenfreado ativismo judicial. Carlos Alexandre Campos, em Dimensões do Ativismo Judicial do STF, aponta a ampliação da presença “normativa da Corte Suprema na vida pública e privada brasileira e o efeito por diferentes decisões ativistas”, estando “motivado pela dinâmica político-democrática de intervir nos processos decisórios cruciais, no governo e na sociedade com intensidade e profundidade”. Humberto Ávila, ao abordar a descrição, construção e reconstrução da norma, ressalta que “A interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas com um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”. O Poder Judiciário concretiza o ordenamento jurídico perante o caso concreto.


9. Repita-se, a única fonte do Direito Penal é a lei. A pena é a ultima ratio na defesa da ordem social, isto é, só deve ser recorrida quando imprescindível, diante da ineficácia de outras formas de reação jurídica (tem caráter subsidiário e, assim, fragmentário). O princípio da intervenção mínima, como princípio fundamental, é dirigido pelo princípio da intolerabilidade nos limites de utilidade social. A dignidade do bem jurídico impõe o dever de atuar na proteção dos imprescindíveis à vida social (princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos), passando pelo princípio da ofensividade. Cumpre uma função de garantia diante da intolerabilidade de atuares violadores de valores de transcendência social (princípios da liberdade e da tolerância). Poderia ser considerado como direito de ultima ratio, secundário em relação a outros ramos do ordenamento jurídico. A relação com os demais é complexa em várias vertentes, não se podendo emitir um juízo único sobre a sua independência. Porém, é certo que é basicamente independente, e suas consequências, pelo contrário, dependentes em seus pressupostos. É independente em relação às suas consequências jurídicas – utilização de meios que lhe são reservados (penas e medidas de segurança).


10. Repita-se que, a função do Direito Penal consiste na proteção dos bens jurídicos, especialmente importantes (valores e interesses). As penas impostas como contenção, do grave conflito social,serve para, no futuro, diante do princípio da dignidade da pessoa humana presa, ser reinserida, se possível, na comunidade social, no prazo do exercício de uma vida útil. Desta interpretação sobre a proteção dos bens jurídicos deriva a concepção do injusto penal como lesão do bem jurídico. Cumpre uma função reparadora de equilíbrio diante do sistema social a fim de evitar uma sociedade anômica, buscando a paz social e a segurança pública, pois se constitui em instrumento de controle social. O bem jurídico desempenha duas funções relevantes: a) garantidora ou limitadora da tarefa legiferante penal; b) teleológica-sistemática, básica para limitar a tentação de aumento da matéria de proibição, avassaladora do Direito Penal. Tal tarefa implica introduzir o pensamento teleológico na construção dogmática. Assume iniludível função de caráter axiológico de singular relevância no plano científico, com destaque para o momento de ponderação dos singulares objetos estimados normativamente como merecedores da tutela. Aduza-se a determinação dos fins das normas jurídico-penais e dos singulares tipos, tanto em referência ao âmbito de fundamento do injusto penal, quanto às causas de justificação.


11. A função éticossocial (mínimo ético) é defendida por Welzel, no Das deutsches Strafrecht, que reconhece ao Direito Penal uma significativa função, configuradora dos costumes (sittenbildende Funktion). Portanto, para ele, o bem jurídico é o “mínimo ético socialmente reconhecido”, de fundamento jurídico-natural, garantido pelo Direito Penal. A proteção de normas morais, religiosas ou ideológicas, cuja violação não tenha repercussão social, não pertence ao campo de proteção do Estado social e democrático de Direito, salvo quando normas morais elementares, de observância exigida para evitar negativas consequências sociais. Ao legislador é defeso legitimar, nesta esfera de âmbito, uma intromissão na liberdade da pessoa humana. Foi afastada a determinante do merecimento de pena por mera violação de determinados valores éticos estabelecidos pela sociedade dominante, diante da separação do direito e da moral, situando-se a questão na danosidade social. Os comportamentos desvalorados são os que causam relevante dano social. A teoria do bem jurídico cumpriria uma dupla função: a) dogmática, quando interpreta a lei; b) crítica, quando identifica o objeto da lesão constitutiva do injusto. O bem jurídico, já entendido por Von Liszt, seria o interesse juridicamente protegido (indivíduo-comunidade).


12. O excesso punitivo leva à destruição do direito penal. O justo e o injusto de uma conduta se determinam, segundo o critério do conteúdo eticossocial para o amparo dos bens jurídicos, conforme o grau de sua utilidade ou dano social. Despertar, criar e conservar o sentido jurídico legal, constitui um dos maiores fundamentos do direito. A missão do direito penal é a proteção dos valores eticossociais elementares da conduta, e só depois, incluído nele, o amparo dos bens jurídicos individuais. Welzel salienta que a missão central do direito penal reside em assegurar a validade inviolável dos valores eticossociais, mediante a aplicação da pena para atos que se apartem do modelo ostensivo dos valores que fundamentam o atuar humano. Sua missão primária, repita-se, é o amparo aos bens jurídicos. O excesso na aplicação das penas desacredita a sua existência, pois deve limitar-se a sanção aos fatos relevantes que lesionam os deveres eticossociais elementares e, nesse sentido, tem caráter fragmentário (BINDING, Karl / MAYER, Helmut). Por último, pode-se resumir que Welzel foi o mais destacado defensor e formulador da ação definida como “exercício da atividade final” – uma conduta dirigida a um fim ou objetivo (BELING, Ernest). São componentes do conceito de ação a antecipação do fim ou objeto, a escolha, seleção e domínio dos meios adequados a sua realização, a vontade dirigida à execução e à execução dos meios e concretização do objetivo colimado. 


13. Embora o Brasil viva em um Estado Democrático de Direito, com a imprensa livre e as manifestações populares, em plena democracia, está presente a violência arbitrária dos agentes do Estado, diante da população pobre, favelada e negra, invadindo domicílios, prendendo e interrogando suspeitos para “averiguações”, em nome da segurança pública, ou no caso do crime do colarinho branco, a invasão de escritórios de advocacia (o Presidente da República vetou a proibição de operações de busca e apreensão em escritórios de advocacia que fossem fundadas apenas em declarações dos delatores. O texto vetado foi sugerido pelo Ministro da Justiça, que considerou que poderia “impactar no livre convencimento motivado dos magistrados, além de comprometer a política judiciária” – Lei nº 14.365/2022), à noite, para filmagem e busca de documentos (transformados em “locais de crime”), ou a condução coercitiva de pessoas sem intimação prévia (“prisão para averiguações”), em operações policiais que se caracterizam pela espetacularidade midiática que alimenta a pauta dos grandes grupos jornalísticos, sob o “fundamento” do “combate à impunidade”, além de prisões temporárias e preventivas alongadas, objetivando a obtenção da “colaboração premiada” com a violação da garantia constitucional de não produzir provas contra si. Não se admite a fratura do devido processo legal. Quando se defende um direito penal eficaz não significa olvidar a exigibilidade do cumprimento estrito das garantias fundamentais em um Estado Democrático de Direito. Não se pode desconstruir as normas processuais e o devido processo legal, sob o argumento “justiceiro”, alimentado pela publicidade midiática através de discursos “moralizantes”.


14. Em Jurisprudência Criminal (2002), destaca-se, diante da atualidade, parte da sentença que prolatei no “Caso Aézio”, em 24 de outubro de 1979, na 7ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro: “(...) 3.4. Democracia é um complexo de valores, não se podendo defini-la à luz de critérios isolados, de natureza pluralista; é um produto da cultura ocidental, possibilitando um maior bem-estar pela maior mobilidade nas relações intra e intergrupos. O fundamento político-jurídico está na garantia dos direitos individuais e das liberdades públicas, asseguradas nas ações de um judiciário liberto de limitações para a plenitude da imparcialidade dos julgamentos. A liberdade da vida humana é sempre a liberdade social, é o modo de expressar que a dignidade da vida depende de cada um de nós. Dizia Kelsen, na Teoria General del Estado, que: ‘A liberdade do indivíduo, que fundamentalmente é impossível, perde pouco a pouco a importância diante da comunidade social’; todavia, funda-se a liberdade nas prerrogativas da natureza humana. O Estado de direito não funciona no vácuo, e não é esta a hora da liberdade entendida como um capricho individual; há um novo endereço que á a sua encarnação na sociedade justa. O grande problema das democracias ocidentais é conciliar a liberdade, imprescindível à dignidade do homem, com as exigências de segurança cada vez mais complexas. O descrédito da normalidade jurídica suscita desconfiança na opinião pública a respeito da continuidade e permanência da política legislativa do Estado. O Direito é ontologicamente a projeção do homem na sociedade mediante o exercício de sua liberdade social, traçando os limites através da conduta jurídica. Numa democracia, a sociedade nacional busca viver sob o império da lei. A falta de segurança jurídica, com o mínimo de certeza e de direitos garantidos aos indivíduos, incorre na arbitrariedade e no despotismo. A negação do mínimo de segurança relativa aos direitos fundamentais é uma negativa da própria justiça para com os cidadãos. Os valores supremos da democracia, tais como a liberdade e a justiça, seriam vazios de conteúdo se não fossem desenvolvidos num clima de segurança jurídico-social. A justiça sem segurança seria um programa teórico, e a segurança sem justiça seria o domínio do arbitrário. É no sistema de equilíbrio entre as liberdades individuais e a ordem sociopolítica, que se inspira o bem comum, que se preservam institucionalmente os preceitos de direito, salvaguardando-se mediante a atuação de sanções na medida em que resultem vulnerados através de procedimento legal. A autoridade não pode jamais cortar a liberdade no sentido de opor-se à sua expansão e destruí-la. A autoridade não é senão uma forma de exercício da liberdade. A autoridade justa não pode aniquilar a criatura humana nem subordiná-la aos fins que não estão à altura do homem. 3.5. A crise de nossa época é a crise da fé na liberdade, e a vida diária nos grandes centros urbanos traduz-se em desordem, desassossego, num estado de insatisfação que nem sempre encontra o complemento dialético da satisfação, desembocando às vezes, por isso, na neurose. O humanismo atual encontra-se frente a um homem massificado, despojado de sua personalidade, convertendo-se em órgão de um processo suprapessoal e coletivo, dentro de um regime de massa dominado pelo Estado. As desigualdades de renda, educação, as perspectivas de emprego e as probabilidades de vida, entre indivíduos e grupos sociais, caracterizam nossa sociedade. O enorme recrudescimento na extensão das divisões de trabalho, proporcionada com a industrialização, acarreta padrões altamente complexos de desigualdade relacionados com a educação e o emprego. Quando se analisa as desigualdades, acodem-nos à mente questões tais como os direitos políticos e jurídicos, proventos merecidos e imerecidos, poder, vantagens, distinções e status e acesso às oportunidades educacionais, ao lado dos obstáculos discriminatórios enfrentados por todos que estruturam as desigualdades sociais. A criminalidade deve ser encarada como um fator sociopolítico, e como tal deve ser tratada. Os grupos de indivíduos mais expostos às pressões geradas pelas formas de desorganização social apresentam logicamente maiores probabilidades de ignorar ou impingir as normas sociais. Vive-se num conflito cultural, numa sociedade consumista em que o homem busca a qualquer preço a aquisição de status e, nesta perseguição, viola todos os preceitos ético-jurídicos. 3.6. Surge sempre o questionamento da relação de causalidade omissiva. Quando uma omissão se equipara a uma ação, ou melhor, quando o não evitar um resultado é equiparado à omissão deste? Mezger-Blei, no Strafrecht, I, Allgemeiner Teil, colocaram o problema sob o ângulo puramente causal, e desta forma a pergunta seria: Quando uma omissão é causa de um resultado? Tal questão tem sido respondida no plano da injuridicidade ou da tipicidade, quando se responde que é porque existe um determinado dever de impedir o resultado. A omissão como evento independentemente da conduta, a qual é sempre ativa, consiste sempre no não fazer quando não se deveria fazer e, consequentemente, não fazer quando se deveria fazer. Há uma estrutura típica omissiva na qual o comportamento do agente seria a não execução de um ‘atuar esperado pelo ordenamento jurídico’, isto é, inexecução juridicamente reprovável.


15. Tudo isso foi dito para afirmar que, a nosso juízo, o texto normativo deixa de atingir as finalidades a que se propõe perdendo efetividade na prática e tornando-se apenas simbólico. Cita-se Gilmar Mendes, Direitos Fundamentais e Controle da Constitucionalidade, quando pontua que: “Os direitos fundamentais não contêm apenas uma norma de proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proteção de omissão (Untermassverbot)”. As figuras pecam por serem vagas, diante do princípio da legalidade, aduzindo-se que os elementos subjetivos do tipo são específicos (prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal), o que não ocorria na Lei nº 4.898/65, ora revogada, o que dificulta a prova diante da ação penal incondicionada. De outro lado, parte das penas privativas de liberdade cominadas são igual ou inferior a um ano, possibilitando a aplicação do art. 9º da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional da pena) e, de outro, a cominada, fica no marco de quatro anos, o que possibilita a substituição da pena privativa de liberdade (quando não houver violência ou grave ameaça à pessoa) por restritiva de direitos, fora possibilitar a prescrição intercorrente (na hipótese de prerrogativa de foro) ou superveniente. Ainda se tem a hipótese da possibilidade de acordo de não persecução penal. O contexto já contém garantias previstas no Código Penal e na Constituição Federal. Reproduz-se o texto da Lei nº 13.869/2019, promulgado e os vetos para uma visão ampla, diante do princípio da especialidade. A simples leitura do texto normativo não exige uma análise mais específica.



 

*Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).


 
 
 

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