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Sistemas e Regimes Penitenciários: Olhar Histórico e Crítico - Parte 1*

*Este artigo também pode ser lido de modo completo num único documento



1. Sistemas penitenciários



1.1. Introdução


Hector Beeche, em “Sistemática de la Ciência Penitenciária”, sintetiza que a ciência penitenciária é a disciplina que estabelece os princípios orientadores das normas jurídicas relativas à execução penal e que devem fortalecer e regular as ações de política criminal para otimizar condições para a inserção e adaptação do apenado. Carrasquillas, em Derecho Penal fundamental, afirma que a política criminal realiza o estudo crítico e prospectivo das normas penais e das vias institucionais para a sua aplicação, promovendo as reformas legislativas adequadas às novas conjunturas sociais. É necessária a delimitação conceitual entre as expressões sistema, regime e assistência, usados indistintamente, objetivando a unificação da linguagem e das construções teóricas no Direito Penal executivo. A expressão penologia, introduzida por Francis Lieber (1838), englobaria a ciência penitenciária (Strafvollzugskunde), traduzida pelo conjunto de conhecimentos normativos pertinentes à pena de prisão e às medidas de segurança. O sistema, repetindo García Basalo, em “En torno al concepto de régimen penitenciário”, “é a organização criada pelo Estado para a execução das sanções penais (penas e medida de segurança) que importem em privação ou restrição da liberdade individual como condição sine qua non para a sua efetividade”. Haveria uma relação de gênero (sistema) à espécie (regime), destacando-se a existência de um conjunto de condições e influências, geradas por fatores dirigidos para uma harmônica finalidade. O conjunto de assistências no cumprimento da pena privativa de liberdade é um processo de diálogo entre os condenados e a sociedade, observado o princípio da dignidade da pessoa humana. Na prática, cada estabelecimento penal possui características peculiares impostas por condições diversas, endógenas e exógenas, dando novas matizes, positivas ou negativas, ao próprio regime penitenciário, a partir de um sistema total. Cuello Calón, em La moderna penología, dá sentido específico, entendendo que a expressão “sistema” conduz às diretrizes fundamentais da execução da pena privativa de liberdade (sistema progressivo), enquanto que “regime” reserva-se aos regulamentos carcerários, constituindo-se no conjunto de normas que regulam a vida dos apenados no estabelecimento penal.


O postulado fundamental dos partidários da intimidação diz que a ameaça de uma efetiva punição é um meio relativamente eficaz para inibir possíveis infratores ou para evitar que os que já cometeram um delito voltem a fazê-lo. A pena de prisão é uma absoluta contradição com o espírito e os princípios de liberdade e igualdade. Não se pode dizer que, no século XXI, a pena de prisão poderá desaparecer como ocorreu com a pena de tortura e, em parte, com a pena de morte, devendo a sociedade ao curso ainda deste século encontrar substitutivos penais, mais pedagógicos e menos aflitivos.


Ao revisitar Sutherland, em Criminology, na formulação da teoria da associação diferencial, destacam-se dois grupos principais: a) diferenças individuais; b) processos culturais. As primeiras são herdadas ou adquiridas; já as segundas, dão relevo a pequenos grupos como a família, a vizinhança e as instituições gerais, identificados os sistemas econômicos e políticos, ou aos processos culturais gerais, como a associação diferencial, conflitos culturais e a desorganização social. Todos esses processos devem ser considerados em torno de um comportamento delitivo. Por tais razões, acrescenta-se a atuação no comportamento sistemático criminoso sob a rubrica de carreiras criminais ou de organizações criminosas. O criminólogo americano conclui que a associação diferencial é o processo causado e específico no desenvolvimento do comportamento criminoso sistemático. A probabilidade de uma pessoa participar deste tipo de atuar determina-se pela frequência e consistência de seus padrões de comportamento delitivo. A prisão é uma ferramenta de disseminação da “cultura” delitiva.


A cultura dominante é de que o infrator deve ser motivado a comportar-se conforme a lei, reduzindo total ou parcialmente por meio do encarceramento as possibilidades do cometimento de novo delito. Existem duas realidades, que indicam a ambiguidade, o caráter contraditório, dialético, da intimidação. A primeira tese parece irrefutável, já que o fracasso da intimidação pode ser interpretado como indicação da necessidade de penas mais severas e alongadas para os que necessitam expurgar a impunidade, para desestimular a reincidência, para inocuar os irrecuperáveis. A segunda também dirá, com razão, que os problemas sociais não podem ser solucionados unicamente com a lei penal (ultima ratio). Se bem seja certo que a pessoa tende em geral a evitar as consequências desagradáveis de sua conduta e que, por conseguinte, a ameaça da pena para determinado grupo social exerceria efeito intimidante, também é certo que todas as proibições de caráter penal são relativamente eficazes. Em que pese esse caráter ambíguo da intimidação, os legisladores, os magistrados e a massa social, estimulada pela mídia, continuam pensando que a melhor maneira de lutar contra o delito consiste em aumentar o tempo de duração e o rigor de execução das penas.


Acredita-se que, se a pena tem tido efeitos dissuasivos em uma ou em várias circunstâncias, nãopode ou deve tê-lo em todos os casos. Recorre-se igualmente à intimidação quando outros meios de luta contra o delito fracassam (a polícia, os organismos de prevenção, os meios de comunicação, a justiça e a colaboração dos cidadãos). A noção de intimidação não é um conceito unitário. Existem diversas formas de intimidação: a) geral e individual; b) direta e indireta; c) total ou parcial. A ameaça da pena pode ser também, graças à função educativa do Direito Penal, criadora de hábitos de comportar-se conforme a lei. Veja-se, contemporaneamente, quase um retorno a Jeremy Bentham, na Théorie des peines et des récompenses, defensor da necessidade e da utilidade da pena, a fim de operar, mediante terror, o seu fim à guisa de motivação psicológica.


A pena continua cumprindo, apesar de tudo, relativamente o seu fim: fortalecer a tutela dos bens jurídicos, como instrumento de contenção objetivando restaurar a tranquilidade pública, e contribui, por diferentes vias, para a consolidação dos valores dos não infratores. Se não existisse a punição, ocorreria um desmoronamento emocional da consciência coletiva e da solidariedade social que dela depende.


Posiciona-se no sentido de que a pena tem por finalidade a proteção dos bens jurídicos e a contenção dos conflitos normativos. Incentivar a socialização do apenado é dever do Estado e da sociedade, visando proporcionar a futura inserção para a adaptação social diante do princípio da dignidade da pessoa humana em um Estado de Direito. Ressalte-se que não se pode manipular a sua personalidade respeitando-se a opção de ser diferente, mas ofertando oportunidades para alternativas comportamentais não conflitivas com as normas postas.


1.2. Evolução histórica


A prisão como verdadeira pena era quase desconhecida para deter os processados durante a instrução criminal. Tulio Hostilio, terceiro rei dos romanos (670 a 620 a.C.), fundou o primeiro cárcere de Roma, ampliado depois por Anco Marcio, denominando-se Latomia, o segundo foi a Claudina, construído por Apio Claudio, e o terceiro, Marmertina. Escrevia Ulpiano que a prisão era destinada a guardar os homens e não para puni-los (Carcer enim ad continendos hominem non ad puniendos haberi desit.). A Constituição imperial de Constantino, ditada em consequência do Edito de Milão, assinala pontos de uma reforma carcerária: a) abolição da crucificação; b) separação dos sexos nas prisões, se ocupadas ao mesmo tempo; c) proibição de rigor inútil no cárcere; d) existência de um pátio com sol para lazer e saúde dos presos. Recorde-se que a fonte principal do Direito Penal romano, o Libri Poenitentialis, onde se registraram pecados e penitências, com grande influência sobre o direito comum, segundo Domenico Schiappoli, em Manuale de diritto ecclesiastico, que se exerce em duas direções: a) a pena ou penitência tende a reconciliar o pecador com a divindade; b) despertar o arrependimento no ânimo culpável, consistindo em uma expiação e castigo. Mas não se pode olvidar que foi também utilizada como meio coercitivo imposto por causa da desobediência e existiu como forma de punição por dívidas. Uma ordenance de Henrique II também chama as prisões de lugar destinado à detenção preventiva dos infratores. Na Babilônia, os cárceres eram chamados de lagos dos leões e consistiam em cisternas profundas, onde eram atirados os detidos.


No século XII, com a tomada a cargo da justiça pela Coroa, na Inglaterra, tornou-se importante fonte de receita, o pagamento de uma compensação pelo infrator à vítima e, depois, a Crown. A prisão converte-se em um poderoso instrumento para obrigar o criminoso a efetuar o pagamento da multa, a fim de evitar a prisão provisória até a sua execução.


Na metade do século XVI, iniciou-se um movimento para o desenvolvimento das penas privativas de liberdade, ocasião em que foram construídas prisões organizadas para a correção dos apenados. Há uma discussão sobre as raízes das modernas penas privativas de liberdade: alguns autores defendem os estatutos medievais das cidades italianas, outros indicam a Antiguidade e a Idade Média. As primeiras casas de correção datam do século XVI. Surgiram em uma época em que havia mão-de-obra barata, ao mesmo tempo em que se vivia um período de prosperidade e desenvolvimento econômico. Ocorre a mutação do cárcere-custódia para a custódia-pena, motivada por uma visão construtiva de política criminal.


Nesta época, um ex-palácio de Bridwell foi escolhido como prisão para mendigos e prostitutas que eram chicoteados. A primeira prisão criada no planeta foi no centro de Londres, em 1552, como uma “Vagabond House”, origem das Houses of Corrections, obrigatórias em todos os condados em 1609, sendo que adegas, portarias e torres foram utilizadas como “detention houses”, em condições sub-humanas. Inexistia qualquer espécie de classificação ou seleção de presos, primários ou reincidentes, jovens ou idosos, homens ou mulheres e doentes mentais, pois ficavam todos juntos nas Houses of Corrections. Os encarcerados eram obrigados ao trabalho. Caracterizava-se pelo binômio trabalho-disciplina, com o escopo de que os presos pagassem a sua própria custódia. Em 1596, foi criada a célebre casa de correção Rasphuys, onde o trabalho era duro e monótono, e a disciplina, mantida com severos e variados castigos. Na segunda metade do século XVI, iniciou-se a construção de estabelecimentos penais correcionais, que albergavam mendigos, vadias e prostitutas. Trata-se do Rasphuys (1595), para homens, e do Spínrbyes (1597), para mulheres. O trabalho era contínuo com a inflição de duros castigos corporais.


Lionel Fox, em The English Prision and Borstal System, escreve que as prisões inglesas eram antros de libertinagem, devassidão e corrupção. Harry E. Barnes, em Society Transition, sustenta que, com o advento do século XVII, as colônias na América precisavam de trabalho e da política de transporte de criminosos, o que veio a ser autorizado em 1597 até 1618. Eventualmente, contratos para o transporte eram realizados por pessoas físicas, e permitiam vender os condenados em período de servidão (de 3 a 14 anos). A partir do ano de 1600, foi criada uma seção para menores “incorrigíveis”, levados por seus próprios pais. A instrução e a assistência religiosa eram seus eixos de sustentabilidade. O exemplo foi imitado na Alemanha. Na Itália, diante da influência religiosa, foram criados estabelecimentos destinados a jovens infratores e desocupados (Filippo Franci funda em 1667, em Florença, o Hospício de São Felipe Néri, no qual os infratores ficavam em regime celular e, para que os reclusos não se conhecessem, tinham a obrigação de ficarem encapuzados). Não se pode olvidar que a Constituto Criminalis Carolina, de Carlos V, cuja vigência se inicia em 1532, diante do texto citado em Ulpiano, assinalava que o fim era a custódia dos infratores, e não o castigo dos presos. Tais instituições visavam à emenda do condenado por via do trabalho, punição corporal e assistência religiosa (influências luteranas e calvinistas).


No século XVIII, a idéia reformadora toma maior vulto: fundada em Roma, por Clemente XI, em 1703, a Prisão de São Miguel, um estabelecimento para presos infratores menores de 21 anos e anciãos inválidos (sobre a porta do estabelecimento lia-se a inscrição “It is insufficient to restrain the wicked by punishment unless you render them virtuous by correctiv discipline”).


O regime era o mesmo aplicado no Hospício de São Felipe Néri: silêncio, trabalho e educação religiosa. O Papa mandou escrever a frase parum est coercere improbos poena, nisi probos efficias disciplina, para demonstrar o seu caráter educativo. A instituição era destinada unicamente a pessoas do sexo masculino. O modelo tinha como patamar a educação e a emenda, com trabalho comum diurno diante de absoluta incomunicabilidade e isolamento celular. Mabillón, monge beneditino no século XVIII escreve em suas Reflexiones sobre los cárceres, clamando pela implantação de princípios penitenciários. Na linha da justiça secular, presidiam, por comum, a severidade e o rigor, o espírito de compaixão e misericórdia, o que leva à criação de confrarias destinadas a procurar auxiliar material, moral e espiritualmente os presos, distribuindo alimentos e roupas ou colocando em liberdade os inocentes. Clemente XII, em 1735, criou um estabelecimento análogo para jovens mulheres. Na Itália, surgem institutos semelhantes em Veneza, Milão e Turim destinados aos infratores adultos. No século XVIII, inicia-se o movimento para modificar as condições e regimes das prisões, buscando-se a emenda dos condenados por meio do trabalho e da eficiência religiosa. Não se pode esquecer o que disse um magistrado inglês neste mesmo século a um acusado: “Não o condeno à morte porque o senhor roubou um carneiro, mas para que outros não roubem mais carneiros.” Na denominada fase dos experimentos, na linguagem de Von Hentig, em seu Die Strafe, na Holanda, os distúrbios religiosos, as guerras, a devastação do país, a extensão dos núcleos urbanos e a crise das formas feudais de vida e a economia agrícola provocaram o crescimento descontrolado das taxas de criminalidade nos fins do século XVII e início do século XVIII. O quadro era traduzido pela perda da segurança e o mundo espiritual abarcado por incrédulos, hereges, rebeldes e multidões de desocupados e mendigos. As cidades eram saqueadas e incendiadas. Havia a necessidade de uma reação. Em 1596, em Amsterdã, erigiu-se o primeiro estabelecimento correcional, seguido de outras unidades, como de Berna (1609), Lübeck (1613) e Hamburgo (1622). A terapia de trabalho era acompanhada pelas chibatas. Inicialmente havia a fabricação de tijolos, depois o trabalho em duras madeiras tropicais sob o monopólio estatal, em equipes que deviam entregar a cada dois dias a quantidade especificada, sob pena de castigos corporais ou privação de alimentos. A custódia se dava por mandado judicial ou por simples petição da família. Jean-Jacques Philippe, em 1775, construiu um estabelecimento penitenciário no qual foi introduzido o “tratamento” mais avançado de sua época. Em primeiro lugar: iniciou-se a classificação dos detidos (os infratores eram separados dos desocupados). Os detidos trabalhavam em grupo e após o trabalho eram recolhidos a celas separadas. Pela primeira vez foi o sistema celular aplicado a jovens infratores em Gloucester (1603), posteriormente, levado para a prisão de Grand, na qual foi pioneira a assistência médica aos detidos. Inicia-se também nessa prisão a nova arquitetura penitenciária, tendo sido construída de acordo com um plano pentagonal com a repartição de celas e um coração central destinado à vigilância.


Na Inglaterra, Newgate abrigava em suas diversas fases presos provisórios e definitivos, salientando-se a separação entre devedores, mas não entre homens e mulheres. Havia também doentes mentais. As mulheres se prostituíam, como diz Von Hentig, “na ala burocrática do estabelecimento”. Só os presos célebres e grandes infratores recebiam visitas. Anota que a nova prisão de Newgate (1776) era superlotada. Em carta, escreve Stephen Jansem (1769) que a prisão “was an abominable sink of beastliness and corruption”. Os reformadores ingleses John Howard, Jeremy Bentham e Samuel Romilly influenciaram mais outros países do que a sua pátria. Observa-se que a custódia transitória e forçada pela necessidade, em navios, surge como prisão por ser mais barata e cômoda (em 1814 havia 3.552 apenados em penitenciárias flutuantes). No ano de 1841 havia mais de 11 navios-prisões.


O comerciante escocês Dundan Campbell dá o exemplo da primeira privatização das prisões, pois comprara por preço irrisório navios e transportava presos de Maryland e Virgínia, em travessias que duravam dois meses. Em média, ele transportava 435 apenados por ano. Os gastos de manutenção advinham da mortalidade.


O modelo de Eastern Penitenciary, o sistema celular, fecha os fluxos do mundo exterior, buscando um novo homem, purificado através da reflexão, dos bens, desejos e do silêncio (isolamento total), saindo das celas para breve tomada de ar livre. O sistema de isolamento celular rigoroso parecia a descoberta da solução para a questão penitenciária, com o binômio trabalho educativo e correcional.


O despertar sobre as condições da prisão dá-se com a publicação do livro de John Howard, The State of Prision, que veio a acordar a opinião pública inglesa sobre a violação absoluta da dignidade da pessoa privada de liberdade, diante da não separação de presos de sexos diferentes, gravidade do delito, idade, primários e reincidentes e doentes mentais, nas Houses of Corrections. Postulava pelo trabalho e pelo ensino de artes e ofícios na prisão. Nascido em Hackey, em 1726, foi nomeado sheriff, para o Condado de Bedfordshire. Foi o fundador da corrente conhecida por reforma carcerária, que tinha como tripé: o isolamento, o trabalho e a instrução. A sua marca resume-se na frase: “Make men diligent and you will make them.” Calvinista, adota a religião com o propósito de instruir e moralizar. Por sua influência surgem pela primeira vez as denominadas penitenciary houses na Inglaterrra e nos Estados Unidos. Em Bedfordshire, conheceu o estado das prisões inglesas, onde havia promiscuidade completa e somente em poucas existia separação de sexos. Os doentes mentais conviviam com os demais detidos. Dedicando sua vida à nobre tarefa de melhorar as prisões, visitou a Holanda, Bélgica, França, Alemanha, Rússia, Itália, Portugal e Espanha. Empreendera, em 1775, uma viagem à Europa para estudar o estado das prisões e o meio de melhorá-las, proclamando as bases de uma reforma: higiene, disciplina, educação moral e religiosa, obrigação de trabalhar e sistema celular, logo seguido por Bentham e Mirabeau. Suas observações foram anotadas em seu célebre livro The State of Prisions in England and Wales (1776), traduzido para o francês com o título Howard, États des Prisions et des Hôpitaux (1778). Propunha o isolamento dos presos durante a noite, cada um poderia dormir isolado do outro, porque o silêncio favorecia a reflexão e o arrependimento, mas não era partidário do isolamento absoluto. Difundiu a religião como mecanismo de reforma moral. Com ele, nasce o chamado penitenciarismo, que humaniza as prisões e coloca como fim da pena privativa da liberdade a reforma e a melhora dos detidos.


A obra The State of Prisions in England and Wales, de Howard (1777), contemporâneo de Beccaria, e que faleceu na Criméia em 1790, devido a uma febre contraída nas prisões, tem um sentido político-jurídico, ao passo que a obra de Beccaria (1776), Dei delitti e delle pene, na análise aguda de Calamandrei, não é um método de trabalho de um investigador erudito, mas de um ímpeto repentino de revolta contra as crueldades e as condutas degradantes violadoras da dignidade da pessoa humana, apresentando aspectos filantrópicos e humanitários. Sir William Blackstone, célebre comentador da legislação criminal inglesa, em Commentaries on the Laws of England (1765-69), e William Eden, político e penalista, apresentaram um projeto de lei (1778) para a criação do sistema penitenciário com base no isolamento celular noturno e atividades coletivas diurnas. Aprovado em 1779, jamais foi posto em prática. Bentham foi contratado para a construção de um grande estabelecimento penitenciário, chamado Panopticon, que jamais chegou a ser edificado, mas cujas idéias arquitetônicas influenciaram posteriores construções, foi o primeiro teórico da execução das penas.


Nos séculos XVII e XVIII, recorrem às práticas de repressão medieval. As atrocidades foram consequência das necessidades de organização institucional ou da imposição de hegemonias religiosas. A tortura faz parte do processo penal para o esclarecimento da verdade, pouco importa que o condenado resista ou venha a falecer (quaestio est veritatis per tormentum).


Registre-se o papel desempenhado por Juan Vilain XIV, a último quarto do século XVII, destacando-se como penólogo, fundador do estabelecimento penal de Gantes (Bélgica), em 1772, partidário da disciplina, criou inovações na gestão correcional, sendo chamado de “pai da ciência penitenciária”. Embora rudimentadamente, deu partida à classificação de reclusos separando mulheres e homens, surge o regime de individualização penitenciária com base na quantidade da pena. O trabalho passa a ser realizado durante o dia e à noite o isolamento celular. Mostra-se contrário ao confinamento e aos castigos corporais e se opõe à prisão perpétua. Implanta celas individuais, assistência médica, trabalho produtivo, disciplina voluntária sem crueldade.


A Revolução Francesa de 1789 destruiu o Ancien Régime e todo o ancien régime penal, cujo símbolo foi a queda da Bastilha. O Código Penal de 6 de outubro de 1791 substituiu as penas corporais por penas privativas de liberdade. É nesse momento que começa o regime penitenciário na França (maison de force, maison de correction e maison d’arrêt). Charles Lucas, em Du système penal en general et de la peine de mort en particulier, contribuiu para a reforma do sistema penitenciário e o abrandamento das penas. Mirabeau fazia parte do Comité des Lettres de Cachet, designado pela Constituinte a 24 de novembro de 1789, para a qual preparou um relatório, no início de 1790, em que propunha a substituição de todas as casas de detenção por “novos estabelecimentos” com “a vantagem dupla de uma casa de caridade e de uma instituição penal dirigida inteiramente ao objetivo primordial do castigo, que todas as leis negligenciaram, ou seja, a reforma do infrator”. Desejava que existisse um estabelecimento dessa natureza em cada província e que as mulheres fossem mantidas em seção separada dos homens. Esboçou uma divisão em três classes ascendentes que prefiguram assim o regime progressivo. O seu projeto, baseado no princípio da legalidade estrita do delito e da pena, repousa sobre uma classificação de delinquentes, na busca de ressocialização.


Deve-se assinalar a relevante contribuição de Beccaria, Howard, Marat e Bentham diante da urgência de reconstruir o mundo, clamando por uma pena mais justa e um tratamento mais humano na execução, diante das desigualdades e crueldades vigentes.

A atividade dos quakers, dirigida por William Penn, inaugura o sistema penitenciário americano. Jeremias Bentham, criador do utilitarismo e precursor dos regimes penitenciários modernos, publica em 1802 seu tratado, associando a concepção penitenciária à concepção arquitetônica, salientando duas condições gerais para as prisões, estrutura e regime, tendo idealizado o panóptico.

Continua Parte 2


 

BIBLIOGRAFIA REFERIDA

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* Álvaro Mayrink da Costa

Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.


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