A quebra da moratória acordada na Resolução da Assembleia Geral da ONU, apontando para a abolição da pena de morte. A volta das execuções nos EUA, a partir de 2019, após decisão favorável da Corte Suprema por cinco votos a quatro, foi rejeitada a arguição de inconstitucionalidade. O retrocesso e a direita radical no mundo dos povos civilizados
1. A história da pena de morte é difícil de ser escrita, diante das questões sociais, morais, filosóficas e religiosasque envolvem sua discussão. Mittermaier, em sua obra Die Todesstraffe, defende a abolição da pena de morte, citando três princípiosbasilares na antiguidade: a) princípiode talião; b) necessidade de intimidação para prevenir delitos; c) ideia de cólera divina e necessidade de acalmá-la com a punição. A palavra supplicium era utiliza- da para designar a execução da pena de morte. A morte do culpado devia apaziguar o deus (Numen), protetor do ofendido. Ao nascer umbilicalmente ligada ao mesmo, podem-se destacar os grandes períodos de sua evolução: até os finsdo século XVIII e daí até os nossos dias. A execução é marcada na Idade Média e no Renascentismo por determinados atos públicos que res- pondem ao pensamento do homem medieval, de que o mal haveria de sair à luz e, em consequência, a justiça seria cruelmente ostentosa. O verdugo, desde a Idade Média, aparece na execução da pena de morte como executor da justiça, sendo um personagem temido, odiado, depreciado e ao mesmo tempo respeitado. Faz recordar o Fausto de Goethe: “Wer hat dir, Henker, diese Macht über mich gegeben?” (Quem te deu, verdugo, este poder sobre mim?). Tem-se a presença de um Direito Penal cruel, vingativo e intimidante.
2. Historicamente, cinco razões são alinhadasem favor da pena de morte: a) a rapidez da decisão final diante dos longos anos de espera do trânsito em julgado dos processos comuns; b) a irrevogabilidade da decisão; c) a eficácia para a prevenção de atos que abalam a opinião pública e criticam a serenidadeda justiça; d) o real efeito intimidativo; e) o barateamento do custo da execução do processo penal. O repúdio à crueldadeostentosa surge de forma organizada no século XVIII, no campo das ideias, com o Iluminismo, e, no dos fatos, com a Revolução Francesa de 1789. Montesquieu, Rosseau e Voltaire, preconizavam a propositura de uma abolição parcial, objetivando o combate à tortura. Pode-se dizer que a guilhotina constitui um avanço em determinado momento evolutivo da execução da sanção penal, quando se configura a penade morte como “uma simples privação da vida”, fazendo o Código Penal francês de 1791 suprimiros martírios, sofrimentos e as torturas prévias infligidas ao condenado, e, desde o fim do século XVI, observa-se o nascimento da pena privativa de liberdade. A corrente humanitária nos finais do século XVIII, por meio dos reformadores, como Beccaria (1764) e Howard (1777), é responsável pelo duro golpe contra a pena de morte e a situação material das prisões européias.O arco da pena de morte, que já se encontrava tenso, veio romper-se após 18 séculos, mas a curva da criminalidade jamais diminuiu, o que demonstrou a sua inutilidade e ausênciade força intimidante, e, daí a sua desnecessidade. Para os países que ainda a adotam como método executivo, encontram as seguintes formas de execução: a) fuzilamento; b) forca; c) gás mortífero; d) eletrocutação; e) injeção letal.
3. No Brasil, o Código Criminal do Império de 1830 adotara a pena de morte para os escravos, nas hipóteses de homicídio praticado em certas circunstâncias, ou quando se verificasse o latrocínio. Em resumo, havia três hipóteses de cabimento: a)insurreição (art. 133); b) homicídio premeditado (art. 192); c) latrocínio (art. 231). A pena de morte era executada com solenidade na força e, para tanto, o condenado era conduzido pelas ruas mais movimentadas acompanhado pelo juiz da execução e o escrivão, garantidos pela força militar, quando requisitada. O porteiro dos auditórios lia a sentença em voz alta antes da execução e, após, o corpo do condenado era entregue à família e aos amigos, se requisitado, porém advertidos que não poderia ser enterrado com pompa, sob pena de prisão, de um mês a um ano de cárcere. A mulher grávida não era executada, nem mesmo julgada, senão 40 dias após o parto. A questão crítica à época se resumia se a pena de morte era justa ou necessária.
4. Em breve bosquejoconstitucional, as Ordenações Filipinasestabeleciamem grande abundância penas corporais(não se deve confundir com as penas privativas de liberdade). O Código Criminalde 1830 previa a pena de morte, galés, banimento, degredo, desterro e açoites para os escravos, quando a Constituição doImpério de 25 de março de 1824 já a havia expressamente abolido(“desde já ficam abolidos os açoites, a tortura,a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”). A Constituição republicana de 24 de fevereiro de 1891, em seu art. 72,§ 20, declarava que: “Fica abolidaa pena de galés e a de banimento judicial”;e no § 21: “Fica igualmente abolida a pena de morte, reservadas as disposições da legislação militar em tempo de guerra.” Na Carta outorgada de 10 de novembro de 1937 prescrevia a possibilidade da pena de morte nos seguintes casos: a) tentar submeter o território da nação ouparte dele à soberania estrangeira; b) tentar com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da nação, procurando desmembrar o território sujeito à suasoberania; c) tentar por meio armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lose torne necessário proceder a operação de guerra; d) tentar com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização internacional, a mudança da ordem política e social estabelecidapela Constituição; e) tentar subverter por meio violento a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura deuma classe social; f) homicídio cometido por motivo fútil e com extrema perversidade. A Constituição de 1946 novamente declarava, em seu § 31, que: “Não haverá penade morte, de banimento, de confisco, nem de caráter perpétuo. São ressalvadas, quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar em tempo de guerra com paísestrangeiro.” O texto é repetido na Constituição de 24 dejaneiro de 1967 e na Emenda nº 1 de 17 de outubro de 1969. Pelo Ato Institucional nº 5, em 1968, a pena de morte foi introduzidapara os delitos políticos em razão da alteração do art. 150, § 1º, da Carta Federativa de 1967, peloAto Institucionalnº 14, de 5 de setembro de 1969, e pelo Decreto-Lei nº 898, de 21 de setembro do mesmo ano. A revogação da pena de morte ocorreu na Emenda nº 11, de 18 de outubro de 1978, no âmbito dos delitos políticos, mantendo a tradição pátria, para a sua aplicação pela legislação militar, em caso de guerra externa. A Carta Republicana de 1988,ao tratar dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, explicitou que não haverá penade morte, salvo em caso de guerra declarada.
5. Os partidários e adversários da pena de morte se encontram entre os corifeus de todas as correntes filosóficas, políticas e científicas, de sorte que é lícito inferir estar a solução do problema sob a influência do sentimento individual. Manzini, defensor de sua aplicação, sustenta que “Decidir se tal penaé, ou não, necessária,no Estado e em determinadomomento, é questão exclusivamente política, não jurídica e muito menos filosófica.” No apogeu da escola técnico-jurídica (1935), escrevia: “A questão da pena de morte, apesar deter dado lugar a intermináveis e tediosíssimas diatribes por parte de filósofos e pseudojuristas, não é uma questão filosófica, nem jurídica.” A questão é meramente política, porque somente pode ser decidida segundo critérios políticos. E, conclui: “[...] trata-se somente de decidir se a dita pena, dadaa sua extrema gravidade, deve ser considerada necessária, e até que ponto, em um Estado e em determinado momento histórico”. Os sequazes da pena capital repetem, diante de novas roupagens, o pensamento deS. Tomás de Aquino, na Súmula Teológica, que sustenta a sua necessidade: Occidere malefactorem licitum est in quantum ordinaturad saluten totius communitatis. Cita-se o Código da Baviera, que adotara para a execução da pena de morte a decaptação ou a degolação. Impunha uma execução solene que dizia reclamar a gravidade do ilícito cometido. Von Liszt, definido por Radbruch como “racional eclético com ânimo espiritual humanista e liberal” admitia a pena de morte para os habituais multirreincidentes. Seus seguidores, Kohlrausch e Ebehard Schmidt, que inadmitiam-na, mudaram de posição, aderindo a Exner, Mezger e Frank, como colaboracionistas do nacional-socialismo (1933-1945). O Presidente da Corte Suprema do Reich, Roland Freisdler, no atentado contra Hitler, emitiu 2.097 condenações à morte.
6. A melhor síntese dos argumentos em prol da pena de morte está na Relazione sul Codice Penale (Código Rocco). Alega-se que: a) pena alguma tem a eficácia da pena de morte, nenhuma intimida mais, seja no momento da ameaça, seja no da execução; nenhuma aplaca melhor osentimento ofendido dos parentes e amigos da vítima e satisfaz mais completamente a opinião pública indignada; b) dizer que a pena de morte torna impossível a emenda do réu parte do falso pressuposto de que a função de reeducação e de emenda seja essencial à pena; c) a irreparabilidadenão é argumento decisivo contra a pena de morte; o erro é inseparável da natureza humana e, se o temor de incidir em erro devesse obstar a ação, toda a vida individual e social ficaria paralisada; assim, a irreparabilidade da pena só pode conduzira uma consequência: subordinar a execução a cautelas especiais; d) quanto à pretensa crueldade da pena de morte, há que considerar que, quando a de- fesa do Estado o exige, não existe meio ou providência que se possa relegar porque pareça cruel do ponto de vista individual.
7. Para tais argumentos, responde-se: a) adecantada intimidação da pena de morte não está aprovada desde a moderna doutrina. Maggiore sustenta que a pena máxima aterroriza as pessoas honestas, mas deixa impassíveis os infratores empedernidos; e acrescenta que estatística alguma demonstrou, de maneira segura, que a prática e o usointensivo da pena capital tenham feito diminuir a criminalidade. Sem dúvida, como doutrinaMezger, a pena deve ter sobre a coletividade um efeito pedagógico-social(prevenção geral), a par da prevenção especial (proteger a sociedade do condenado e corrigi-lo). Mas só a pena justa (necessária, oportuna e proporcional) pode reali- zar, com eficácia, a função preventiva que lhe cabe. À luz desses princípios, a pena de morte é excessiva, inadequada e infamante. Há casos em que o desejo do criminoso é o de ser executado. São inúmeros os exemplos dados pela crônica policiale judiciária mundialde indivíduos que, depois do cometimento de um homicídio com requintes de perversidade,se apresentam como se tivessem sido seu verdadeiro autor. O melhor exemplo é o do caso Peter Kürten, o vampiro de Düsseldorf: à época maisde duzentas pessoas se apresentaram à polícia declarando-se autores dos homicídios sádicos por ele praticados. Inaceitável a alegação de que a pena capital é a que melhor aplaca o sentimento ofendido dos parentes e amigos da vítima. Faz lembrar o talião, como se a Justiça fosse longa manus da vendetta. Intolerável também a afirmação de que é a pena que mais completamente satisfaz a opinião pública indignada.A pena, por sua natureza e quantidade, não deve visar a atender ao estado emocional dacoletividade, decorrente de pressões, influências e fatores de toda a ordem. Inexiste qualquerargumento plausível a favor da adoção da pena de morte. A razão histórica não pode pretender impor-se nos tempos contemporâneos com caráter de argumento decisivo. Aduza-se que não mais é admissível uma postura como a dos seguidores de Carpzovio, um dos mais ilustres criminalistas germânicos de seu tempo, que se vangloriava de ter ditado como magistrado, entre os anos de 1620 e 1666, aproximadamente 20 mil condenações à morte. Como diz Del Vechio, a história das penas é, em muitas de suas páginas, desonrosa para a humanidade.
8. Destarte, ao refutar o argumento histórico, afirmava que a pena de morte se traduzia em místicas reminiscências de sacrifícios sangrentos a airadas divindades, manifestações de aprazimento de desejos sádicos dos instintos ancestrais de violência. Exemplo candente nos séculos XV e XVI eram as decisõesjudiciais no sentido de que se ativassem as dores pela morte, por exposição em roda, a fim de que pudessem os condenadosexecutados ao cair da roda terem uma morte doce; b) a função de reeducar o criminoso e de conseguir a sua emenda não é essencialà pena. Mas é uma das funções simbólicas da pena. No entanto, le pene devono tendere alla reducazione dei condannati, qual está determinado na Constituição da Itália, e a nossa Lei de Execução Penal estabelece como objeto de aplicação da execução proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do apenado. A pena de morte, eliminandoa possibilidade da tentativa de emenda do condenado(nemo desperandus est), é incompleta. Cumpre não esquecer que na formação do povo brasileiro, de início, registram-se criminosos e degredados, o que também ocorreu nos Estados Unidos e,especialmente, na Austrália; c) airreparabilidade continua sendo o argumento decisivo contra a pena de morte. Em primeiro lugar, o homem mais perverso e abjeto pode ressuscitar da morte moral, redimindo-se pela conversão e pelo arrependimento. Já dizia São Paulo: no homem velho existe sempre, potencialmente, um homem novo. A morte suprime a possibilidade de uma regeneração. Como conciliar a irreparabilidade da morte com a possibilidade real e efetiva de erro judiciário? Dizer que a possibilidade de erro tem o mesmo valor na pena de morte e nas demais penas é puro sofisma. A pena de morte e as demais são ontologicamente diferentes. As outras penas não eliminam a possibilidade de uma reparação, embora parcial ou incompleta. O juiz do Tribunal Distrital de Shizuoka suspendeu em março de 2014, a sentença de morte do cidadão japonês Iwao Hakamada, de 78 anos, após 48 anos preso, sendo os dois últimos no “corredor da morte” para que solto aguarde a realização de novo julgamento, diante de novas provas de DNA colhidas em seu recurso. A decisão foi resultado de um recurso interposto em 2008. Subordinar a execução a cautelas especiais de modo algum afasta a possibilidade do erro irreparável (cita-se o exemplo histórico do caso Mota Coqueiro). Carlos Maximiliano relata que Dom Pedro II, no começo de seu reinado, deixava executar os grandes criminosos; depois, só não salvava da morte o escravo que tivesse assassinado o senhor; mas, de 1856 a 1889, ninguém mais foi enforcado; d) Não há como negar a crueldade da pena de morte. Com ela, o Estado produz o crime e desce ao nível do criminoso. Em suma, não é justa no sentido humano, não é necessária, não é adequada, não é sequer conveniente.
9. Frisa-se que esse castigo sanguinário, vestígio da justiça penal primitiva, não poderiater guaridaem um sistema de política criminal humanista, pois: a) é incompatível, evidentemente, com um sistema de tentativa dereinsersão social; b) encoraja o instinto de vingança como forma de expiação e alimenta um clima de violência e de ódio em si mesmo criminógeno; c) éirreparável e contrário à noção de justiça humana relativa;d) constitui uma violência inútil, tendo em vista que sua pretensa necessidade só se baseia em postulados não comprovados; e) é não somente a expressão de uma justiça que se pretende absoluta, mas de uma organização político-social que reconhece ao Estado, maisou menos divinizado, um direito de vida e morte sobre seus súditos, não obstante o que se possa alegar. A pena de morte é, portanto, incompatível com uma doutrina penal humanista.
10. A grande maioria dos países apoiou resolução da Assembleia Geral da ONU para restabelecer uma moratória das execuções, apontando para a abolição total da pena de morte. Em 18/12/2014, em um total de 117 dos 193 Estados membros votaram a favor da resolução, três a mais do que havia obtido em novembro, na Terceira Comissão da entidade, a de Direitos Humanos. Os países contrários à medida somaram 38, além de 34 abstenções. No ano de 2019, os EUA fazem a primeira execução por crime federal, após 17 anos (desde 2003), depois de a Suprema Corte decidir por cinco votos a favor e quatro contra, reverter a liminar da juíza federal Tanya Chutkan, de Washington, que entendera inconstitucional o procedimento de através de injeções letais, poderiam causar “dor extrema e sofrimento desnecessário, configurando punição cruel e incomum”, vedadas pela legislação americana. A Corte Suprema cassou a liminar sob o fundamento da inexistência de evidências para justificar a suspensão. Assim, o ativista Daniel Lewis Lee foi executado em Terre Haute, Indiana, mesmo o promotor ter pedido a conversão em pena perpétua. A Anistia Internacional se opõe à pena de morte em todos os casos, sem exceção, independentemente do caráter ou circunstâncias do delito e do método utilizado peloEstado para realizar a execução. Contemporaneamente, ainda há uma longa estrada a ser percorrida para a conscientização dospovos civilizados, no sentido da desnecessidade da aplicação da pena de morte, diante do arco de soluções alternativas, para alcançar-se a sua total abolição.
* Álvaro Mayrink da Costa
Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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